Segunda-feira, 17 de Dezembro de 2018

Joaquim Alberto

A vila de Riachos, no concelho de Torres Novas, tem a sua dose de revolucionários. Joaquim Alberto será um dos mais emblemáticos. Do seminário às cooperativas agrícolas de Árgea (Torres Novas) e Moçambique, até Paris apoiando os emigrantes e integrando a Liga da Unidade e Ação Revolucionária (LUAR), Joaquim Alberto envolveu-se em todos os grandes movimentos revolucionários da sua época. Na filosofia política chamar-lhe-iam uma homem de ação, aquele que tem o impulso de agir e construir algo novo, mas Joaquim Alberto não quer saber de teorias, mas de pessoas. Viveu o seu tempo como poucos, dizendo “presente” sempre que houve apelo para agir. Faltava apenas a biografia, apresentada no sábado, 15 de dezembro, no dia em que celebrou 80 anos.

“A minha divisa é assim: toda a gente tem obrigação de tentar, ninguém tem a obrigação de conseguir. Portanto, eu ando sempre a tentar”.

Joaquim Alberto

A frase faz a contracapa da obra “Crescem flores onde estiveres – A vida de Joaquim Alberto contada pelo próprio”, uma edição de O Riachense, com autoria de Carlos Simões Nuno e Carlos Tomé. O livro é a condensação de mais de 12 horas de entrevistas a Joaquim Alberto Lopes Simões, nascido riachense em 1938 e residente atualmente nos arredores de Paris (França), cuja vida repleta de atribulações é digna de um filme, conforme constatou o seu amigo e músico Pedro Barroso na cerimónia de apresentação da obra.

Mais que uma compilação biográfica realizada mediante as palavras do próprio protagonista, o livro torna-se automaticamente um documento histórico, tanto de Riachos como do próprio país. Joaquim Alberto será um dos derradeiros revolucionários portugueses a quem faltaria redigir o testemunho e, deste modo, preservar a memória de um tempo que parece cada vez mais distante da realidade.

Filho de Carlos Simões, sapateiro, e de Emília Lopes Portelinha, encontra-se no meio de seis irmãos. Fez os estudos secundários em Tomar e tornou-se serralheiro, passando também pelos CTT e pela Renova. Com 21 anos, em 1959, ingressou no Seminário dos Olivais, onde permaneceu até 1966, tirando o curso superior de Teologia.

O então diácono não chegou porém a ser ordenado padre e partiu para Paris, no intuito de estudar filosofia. Os tempos do Concílio Vaticano II, indica a biografia, parecem ter marcado esta inesperada mas importante transição na vida do riachense.

Em 1969 regressa a Portugal, fixando-se em Vila Franca onde trabalhou numa instituição de acolhimento de crianças. Na década de 70 está novamente em França, apoiando a comunidade emigrante que então lá afluía, travando conhecimento com o músico Zeca Afonso. Por esta época liga-se à LUAR, movimento radical que realizava atos de sabotagem ao Estado português. Tendo já ficha na PIDE, é preso em Espanha aquando uma viagem clandestina ao país. Entretanto ocorre o 25 de abril.

Joaquim Alberto esteve profundamente ligado ao movimento cooperativo, tendo-se envolvido na criação da cooperativa agrícola “Comunal”, em Árgea, freguesia de Olaia, logo em 1974. O mesmo ímpeto de reforma agrária levou-o a Moçambique, onde permanece vários anos desenvolvendo quer projetos cooperativos, quer de reconstrução. Entre os anos 80 e 90 viveu uma intensa vida associativa e autárquica, em projetos de desenvolvimento rural quer em Riachos, quer no Alentejo. Pelo caminho Paris esteve sempre na sua rota, acabando por ali se fixar. É pai de três filhos e avô de quatro netas.

A obra biográfica descreve-o na introdução como um “democrata radical”, a quem interessa “muito mais o envolvimento, a cooperação e o compromisso das pessoas com as suas vidas e com aquilo que se passa à sua volta, que propriamente os resultados conjunturais que daí vão resultando, porque a sustentação do processo e a participação das pessoas é o caminho mais seguro para que esses resultados possam ir sempre melhorando, não de forma abstrata e genérica, mas para as pessoas concretas que eles implicam”.

Nunca terá procurado a felicidade de toda a gente, mas a de cada pessoa, salientam os biógrafos, na busca de uma sociedade socialista, livre, onde temos a obrigação de pelo menos tentar.

Ao mediotejo.net, numa entrevista que antecedeu a apresentação do livro na Casa do Povo de Riachos, Joaquim Alberto confessou que nunca procurou nada, simplesmente agiu quando assim sentiu o dever.

“Eu nunca quis coisa nenhuma. As coisas acontecem e há duas maneiras de encarar as coisas: ou a gente vira-lhe as costas, não passa cartão nenhum, ou então, quando as coisas acontecem, entra nelas. Eu nunca gostei de virar as costas, porque não se deve virar as costas ao inimigo”. Porém “nunca me aconteceu nada que fosse eu a ir procurar”, admite.

Na sua vida procurou assim sempre combater o “medo”, enfrentando-o de frente e tentando fazer parte da solução. Foi deste modo que se envolveu nas cooperativas agrícolas, acreditando que “é pela parte mais simples do viver que as coisas têm que evoluir”. Na construção de um novo modelo de sociedade é necessário porém a vontade de todos os envolvidos, sobretudo de quem gere o sistema, algo que, constata, nunca aconteceu.

A mesma deceção teve em Moçambique, não obstante aí ter voltado nos anos 90 e ajudado à reconstrução de um país destruído pela guerra civil. Humanista no ser, evita o título quando é questionado. “Normalmente isso do humanista são coisas teóricas”, comenta, e ele é um homem de agir. “Se humanista é fazer coisas que têm a ver com as pessoas, está bem pode ser”, reflete.

A questão sobre o significado deste livro biográfico, escrito por amigos, deixa-o de lágrimas nos olhos. Não chega a responder.

No sábado, a Casa do Povo de Riachos encheu, albergando mais de uma centena de pessoas que compareceram para a apresentação do livro sobre a vida de Joaquim Alberto.

O músico Francisco Fanhais tocou a música, com letra de Pedro Lobo Antunes, “Nascem flores”, um hino ao protagonista da tarde, tendo aberto a sessão com ‘Utopia’, de Zeca Afonso. Já Pedro Barroso entoou a sua “Menina dos olhos d’água”, entre um conjunto de baladas que fizeram recordar os tempos de abril. Zeca Afonso foi o letrista e compositor mais citado, no contexto dos vários artistas que subiram a palco.

“O pólo central deste livro é Riachos”, explicou ao mediotejo.net o co-autor da obra, Carlos Tomé. O livro nasceu da constatação da quantidade de histórias que Joaquim Alberto tinha para contar, tornando-se um documento histórico não só sobre a luta contra o fascismo como da vida associativa e autárquica da vila torrejana.

“Há muita coisa de novo, pode-se descobrir muita coisa”, frisou, nomeadamente sobre esta figura que foi importante para a História local.

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Quinta-feira, 7 de Junho de 2018

ANTERO – ONTEM, HOJE E AMANHÃ

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Lido e admirado por Tolstoi, traduzidos nas principais línguas europeias, Antero de Quental foi um dos poetas portugueses de maior projecção e reconhecimento universal. Fernando Pessoa também não seria o que é se não tivesse recebido o impacto da aproximação profunda da obra de Antero

Por António Valdemar

 

Um ciclo se abre e outro se encerra com a publicação das Odes Modernas. Este primeiro livro de Antero de Quental motivou em várias dimensões, a controvérsia literária - o repúdio do sentimentalismo vazio e retórico; a controvérsia moral - a desmontagem do elogio mútuo e da corrupção intelectual: e, ainda, a controvérsia política - o incitamento à indignação e à revolta para instaurar a República, como regime político e o Socialismo, como estrutura social.

A poesia portuguesa vai ser outra e também outra será a acção política, a abordagem da questão social, a urgência da transformação da mentalidade. É o ímpeto seminal que se vai repercutir no primeiro ultimato para modernizar Portugal; a denúncia das Causas de Decadência dos Povos Peninsulares, apresentada nas Conferências Democráticas do Casino. Antero alertou para os efeitos calamitosos do estabelecimento da Inquisição, para os condicionalismos do catolicismo dogmático e repressivo imposto no Concílio de Trento e para as consequências irreparáveis da expulsão dos Judeus, três factores que acentuaram a intolerância, o isolamento e a impossibilidade de integração de Portugal na Europa.

A criação poética inicial de Antero permite avaliar a influência cultural e a militância cívica que exerceu. Foram de tal amplitude que transpuseram, entre os seus contemporâneos e numa perspectiva de futuro, a área da literatura para incidir noutros domínios da sociedade portuguesa. A primeira edição das “Odes Modernas” (1865) tem estado circunscrita a bibliógrafos. A segunda edição, de 1875, -que Antero considerou definitiva- não se reduziu, apenas, ao apuramento formal e à substituição de títulos de poemas. Antero retirou, por exemplo, dois textos essenciais e que reaparecem, na íntegra, na recente edição crítica organizada por Luiz Fagundes Duarte e edição de Abysmo, por iniciativa do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e integrada nas Obras Clássicas da Literatura Portuguesa. Trata-se da carta-dedicatória da Odes Modernas a Germano Meireles, um dos seus mais íntimos amigos; e do posfácio no qual desenvolve e propõe o entendimento da poesia como arma de combate e de expressão revolucionária.

A polémica desencadeada, em 1865, teve origem na primeira edição das “Odes Modernas”, nas interpelações enérgicas de Antero ao magistério de Castilho e incluídas nos dois textos agora recuperados. Neles se depara o rastilho da agitação que se estendeu através de todo o país, durante mais de um ano, em jornais e revistas e em panfletos virulentos e oriundos de dois sectores: dos adeptos da tradição intransigente personificada em Castilho; e da nova geração empenhada na revolução política e social e, ao mesmo tempo, em desenterrar a língua que jazia nos túmulos do vernaculismo. Tudo isto e muito mais elegeu Antero como a mais emblemática figura intelectual da Geração de 70.

Fez desmoronar a pontificação de Castilho e a irrelevância dos seus epígonos que tiveram em Pinheiro Chagas um dos paradigmas nacionais. O perfil deste e outros personagens será objecto das implacáveis caricaturas de Eça de Queirós: n’O Primo Basílio, do conselheiro Acácio; na Correspondência de Fradique Mendes, de Pacheco, ministro, conselheiro, um “imenso talento” elogiado por todos e que só a viúva, não deu por isso, quando, após a morte, recebia condolências nacionais…

Contudo, o renome nacional e universal de Antero tem derivado dos “Sonetos” (1861-1886) sistematizados em diversas fases. Condensam as indagações em torno da angústia metafísica e o desespero físico que o torturaram e conduziram, numa tarde cinzenta, húmida e opressiva de Setembro, e numa praça pública da sua ilha de S. Miguel, ao trágico encontro com a morte.

Antero de Quental (1842-1891) além de uma recolha de sonetos de juventude               -Coimbra, 1861- a chamada edição Sténio, pseudónimo literário do seu colega, amigo e também açoriano Alberto Teles (1840-1917) publicou, no Porto, em 1881, uma outra edição de Sonetos, numa altura em que já atingira o maior prestígio intelectual, e, cinco anoa mais tarde, em 1886, Os Sonetos Completos, acompanhados de um estudo introdutório de Oliveira Martins, incluíram com a anuência de Antero, cinco outras poesias a que chamou “lúgubres”: Os Cativos, Os Vencidos, Entre Sombras, Hino da Manhã e A Fada Negra

Em 1886, Antero acrescentou sonetos inéditos e dispersos e repartidos em cinco ciclos correspondentes à evolução intelectual e filosófica, às intervenções cívicas, aos combates políticos e às efusões sentimentais: 1860-1862, vinte; 1862-1866, vinte e oito; 1864-1874, dezassete; 1874-1880, vinte e três; e 1880-1884, vinte e um.

Desta compilação surgiu uma segunda edição (1890), ainda em vida do autor, sem alterações nos textos dos sonetos, mas incluindo 46 traduções de 32 sonetos para alemão (por Wilhelm Storck), espanhol (Curros Enriquez e Baldomero Escobar), italiano (Giuseppe Cellini, Marco Antonio Canini, Emilio Teza e Tommaso Cannizzaro) e francês (Fernando Leal).

O conjunto de cento e nove Sonetos de Antero teve sucessivas reedições, muitas das quais repetindo gralhas e outras incorrecções que afectaram a autenticidade do texto. Entretanto, António Sérgio organizou, no âmbito do centenário do nascimento de Antero, celebrado em 1942, uma edição anotada, mais tarde inserida nos Clássicos Sá da Costa, e que não só manteve lapsos tipográficos como, também, alterou por completo a sistematização preconizada por Antero e Oliveira Martins.

A edição crítica, realizada por Luiz Fagundes Duarte, apresenta as sucessivas variantes introduzidas pelo poeta, a partir dos manuscritos autografados, quando disponíveis, ou da última edição em vida.

Numa secção da Addenda, estão três sonetos apócrifos, um dos quais a propósito de Camões, no centenário de 1880 -ao qual Antero não se associou e assumiu atitude crítica – o soneto Ananké, que se provou não ser de Antero, mas sim de Joaquim de Araújo, pelo que desaparece do corpus anteriano. Mais ainda: dois sonetos atribuídos a Antero que circulavam, desde 1916, nos meios espíritas como sendo ditados por Antero através de um médium.

Na carta autobiográfica, Antero classificou os Sonetos como “a notação de um diário íntimo e sem mais preocupações do que a exactidão das notas de um diário; as fases sucessivas da minha vida intelectual e sentimental” (…) “uma autobiografia de um pensamento e como que as memórias de uma consciência”. E Oliveira Martins afirmou que os Sonetos de Antero “não são os quaisquer episódios particulares de uma vida de homem; são a refracção das agonias morais do nosso tempo, vividas, porém, na imaginação de um poeta”.

Antero optou quase sempre pelo soneto que imortalizara ”Dante, Miguel Ângelo, Shakespeare e Camões” para exprimir, conforme salientou, “a forma completa do lirismo puro”. Foi, portanto, na concisão lapidar do soneto, que Antero manifestou as crises de incerteza, as dúvidas pertinentes, os fantasmas interiores, as derrocadas sentimentais que exacerbaram o pessimismo em que mergulhara. O suicídio acabou por ser o desfecho para se libertar de uma vida insuportável.

A obra poética de Antero teve o maior impacto na sua geração e continuou a motivar, no século XIX e no século XX, as gerações seguintes. Marcada por Cesário Verde e Camilo Pessanha, a geração do Orpheu não ficou indiferente à poesia de Antero, em especial aos Sonetos.

Manuscritos existentes na Biblioteca Nacional revelam que Pessoa deixou traduções em inglês de muitos sonetos e projectou uma edição das Poesia de Antero, constituída por seis pequenos volumes, uma edição encadernada, de 370 páginas, do tipo da de Coleridge, por W. & Foyle. Existe um exemplar, na Casa Fernando Pessoa, com a sua assinatura, na sua biblioteca pessoal. Tal facto leva-nos a admitir que Fernando Pessoa não seria o que é se não tivesse havido a aproximação e a forte influência da obra poética de Antero de Quental.

Podemos ainda referir que os Sonetos de Antero -através de Wilhelm Storck- chegaram ao conhecimento do Tolstoi que registou a profunda emoção que lhe causaram. Antes da obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa -e o Livro do Desassossego de Bernardo Soares é um dos exemplos mais significativos- Antero de Quental foi um dos poetas portugueses de maior projecção e reconhecimento universal.

 “Tempo Livre” (INATEL)

 

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Quarta-feira, 31 de Maio de 2017

QUINTA DE BONJÓIA [PORTO]

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Bonjói, ou Bonjóia, é um topónimo antigo, conhecido desde os tempos medievos.

Nos fins do século XIV, existia ali uma quinta, que pertencia ao Chantre Martim Viegas. Por sua morte, ficou para Maria Martins e seu marido Afonso Dinis. Foram estes que a doaram ao Cabido da Sé do Porto, com a obrigação de algumas missas (31 de Dezembro de 1402).

No século seguinte, foram sucessivamente enfiteutas: Álvaro Gonçalves Almotim, o Mestre Escola da Sé Diogo Dias e o Cónego Afonso Luiz. Este último, por ausente do Porto, renunciou em favor do Arcediago do Porto.

A 9 de Julho de 1479, foi celebrado novo contrato, agora com o Cónego Fernão Aranha, novo enfiteuta do prazo de Bonjói, pelo foro de mil réis em dinheiro e oito galinhas por ano, prazo renovado a 14 de Abril de 1502, em sua sobrinha (ou filha?) Mécia Aranha, mulher de Manuel Gonçalves, Cidadão do Porto, em cuja descendência permaneceu até meados do século VIII.

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Em 1758, a Quinta foi adquirida por Dom Lourenço Amorim da Gama Lobo. Natural de Ponte de Lima, era Fidalgo-Cavaleiro da Casa Real, Senhor da Casa do Campo das Hortas (na Praça Nova, hoje da Liberdade – edifício entretanto demolido, para a abertura da Avenida dos Aliados). No Porto, foi ainda Prior da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo (1757-1758), Provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, Cavaleiro Professo na Ordem de Cristo e Mestre-de-Campo de Infantaria Auxiliar do Porto.

Casou por cá, com Dona Maria Violante Guimarães, filha de João Antunes Guimarães, importante negociante do Porto, cuja quinta confrontava a poente com Bonjóia.

Foi Dom Lourenço Amorim da Gama Lobo quem mandou construir a Casa actualmente existente. A obra de pedraria foi executada por Miguel dos Santos, contratado a 1 de Março de 1759. O risco foi atribuído, por Robert Smith, ao italiano Niccolò Nasoni, celebrado autor da Torre dos Clérigos e do Palácio do Freixo, a quem também atribuíra a autoria das Quintas da Prelada (dos Noronha e Menezes) e de Ramalde (dos Pereira Leite), com parecenças nítidas com a Casa de Bonjóia.

O edifício nunca foi concluído, faltando-lhe a ala Nascente, cujos arranques ainda lá estão. A porta principal volta-se para Norte, para a Rua de Bonjóia, onde Dom Lourenço quis marcar a sua propriedade e fidalguia, com o seu brasão-de-armas: esquartelado, I Amorim, II Gama, III Lobo, IV Magalhães. Contudo, é o alçado Sul do edifício que maior grandeza possui, mesmo faltando-lhe a torre e o corpo Nascente.

A sua localização é estratégica, voltando-se para um patamar de jardim e para o Vale de Campanhã, com o Douro como fundo.

Após a morte de Dom Lourenço, sucede-lhe na Casa o filho Dom António Amorim da Gama Lobo, casado com Dona Maria do Carmo de Portugal e Menezes, da Casa da Torre da Marca. Como não lhes sobreviveu qualquer filho, os bens vinculados passaram para a irmã, Dona Maria Antónia de Amorim e os restantes (a Quinta de Bonjóia) para a viúva. Desta, foi herdeira uma sobrinha, Dona Maria da Natividade Guedes de Portugal e Menezes, filha dos 1.os Viscondes da Costa, que veio a casar com um seu parente, o Conselheiro José Guedes Brandão de Mello (Conde de São Vicente, pelo seu casamento com a 9ª titular), Dom Francisco Brandão de Mello e Dom José Brandão de Mello. Embora todos tenham casado, só este último deixou descendência, que acabou vendendo a Quinta ao Juiz Abílio Augusto Mendes de Carvalho, em 1935.

Nas décadas que se seguiram, a casa sofreu algumas alterações pontuais e, sobretudo, uma enorme degradação quando, em 1995, foi adquirida pela Câmara Municipal do Porto.

Actualmente, acolhe a Direcção Municipal de Desenvolvimento Social, da Câmara Municipal do Porto. 

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Domingo, 28 de Maio de 2017

POMPEIA: A vida petrificada

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Uma visita a Pompeia, a cidade que a erupção do Vesúvio sepultou há vinte séculos sob um manto de lava. Casa a casa, um olhar sobre a intimidade dos seus antigos habitantes. Rua a rua, a revelação do último instante, quando a tragédia apagou o esplendor de uma porção do Império Romano mas, ao mesmo tempo, a eternizou.

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Ao deambular por entre as casas de Pompeia, tudo parece suspenso num impasse misterioso, como se os seus vinte mil habitantes dormissem uma longa sesta. Os fanáticos das teorias da conspiração encontrariam um belo argumento para a hipótese da sesta de Pompeia ao leram um anúncio ainda exposto numa parede do Fórum: "Macerior pede ao magistrado que proíba que se faça barulho na rua e que se incomode as pessoas decentes que estão a dormir". É possível imaginar que, a qualquer momento, a actividade frenética da cidade poderia ser restabelecida, com pessoas a passear pelas estreitas ruas de empedrado, dirigindo-se ao mercado, ao teatro, à lavandaria ou a algum dos 35 bordéis com escravas gregas e orientais que faziam furor entre os habitantes de Pompeia.

Ao transpor o átrio de qualquer uma das casas -a maioria com o nome do seu antigo proprietário-, poderia pensar-se que um dos seus habitantes vem receber-nos, vestindo uma túnica branca e sandálias romanas. Talvez Popidio Prisco, Marco Lucrecio (comandante decurião e sacerdote de Marte) ou Juana Felicce, uma aristocrata arruinada que colocou um anúncio oferecendo quartos para alugar, para enfrentar a crise.

Mas quando entramos, descobrimos que todos se foram. Modesto, o padeiro, deixou as portas abertas e 81 pães acabados de cozer. Numa outra casa, a mesa ficou posta, com um recipiente cheio de ovos. Na casa de Lucio Jocundo, o banqueiro, a caixa forte foi encontrada cheia de valores, e numa outra, um cirurgião deixou 40 peças de bronze cuidadosamente dispostas para a próxima operação.

O último dia de Pompeia é uma das atracções turísticas mais visitadas do planeta, juntamente com a Disneylândia. Mas as diferenças entre as duas é abismal. Enquanto numa a feira de vaidades é a apoteose cenográfica -com castelos, cidades e bosques decorativos, cujo encanto é assemelharem-se aos verdadeiros-, em Pompeia tudo é absolutamente real. E atroz.

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Em vez de sorridentes figuras de cera, aqui existem imagens de gesso -também em tamanho natural e com rostos expressivos -, mas esculpidos por um cruel fenómeno natura.

Quando um inferno de lava libertou a sua fúria sobre Pompeia, aqueles que não conseguiram fugir morreram sepultados numa mortalha vulcânica hermética. A lava arrefeceu e com o passar dos anos os corpos desintegraram-se, deixando um espaço vazio na posição em que estavam quando faleceram, nalguns casos tapando a cara com as mãos, em desespero. Os arqueólogos só tiveram de localizar esses espaços fantasmagóricos por meio de ressonância e voltar a enchê-los com gesso líquido que, ao endurecer, resultou em estátuas esculpidas sobre o contorno dos corpos já desintegrados.

POMPEIA.Panorâmica da cidade destruída por erup

Recriação da cólera do Vesúvio

Foram encontradas cerca de 2 mil vítimas por toda a cidade. Algumas no meio da rua, num esforço sobre-humano para se erguerem. Outras morreram sob os escombros das suas moradias, como a proprietária da Casa do Fauno, petrificada quando se apressava a sair para a rua, levando consigo uma bolsa coma as suas pulseiras de ouro, espelhos de prata e moedas valiosas. Na solidão de outros quarto, uma menina escondia a cabeça debaixo de uma túnica e, no Jardim dos Fugitivos, um homem corpulento morreu, sentado junto a um saco que continha os seus pertences. Foram também encontradas pessoas com uma garrafa de veneno a seu lado -possíveis suicidas- e gladiadores acorrentados, impossibilitados de escapar. As imagens das vítimas estão expostas no Antiquarium -junto à Porta Marina- e em expositores de vidro nas Termas de Estabia.

"Os frescos que decoram as paredes parecem cadáveres maquilhados", disse o príncipe Maximiliano da Áustria quando visitou uma casa de Pompeia. A violenta exactidão desta frase pode ser verificada num retrato nítido encontrado na casa de Paquio Proculo, que posa para o quadro com a sua mulher, pouco antes de um apocalipse de fogo se abater sobre eles.

Em Pompeia, o ireemediável espectáculo da morte deizou um traço selvagem. Mas a distância no tempo tende a suavizar a marca trágica, que outros iludem com a técnica do humor negro.

Povoação democrática

Como em todas as cidades ao longo da História, também em Pompeia a arquitectura é um reflexo da política, uma cidade democrática no sentido mais clássico do termo. No seu centro geográfico encontram-se os restos das colunatas que rodeavam três lados do Fórum, enquanto a frente era ocupada pelo templo de Júpiter. O Fórum situa-se num nível elevado, sobre uma pequena plataforma em frente da qual, por vezes, o povo se reunia para decidir, por aclamação, sobre as propostas dos magistrados. A vida política, religiosa e social decorria nesse local e respectivos arredores. De um lado, na Basílica, administrava-se a justiça e faziam-se as transações comerciais mais importantes. Ao fundo da nave principal, ainda se mantém de pé uma tribuna de onde os oradores falavam.

No extremo oriental do Fórum situa-se o "macellum", o grande mercado de produtos alimentares de Pompeia, onde foram descobertos restos de cereais e espinhas de peixe num lavadouro. Na rua da Abundância, o edifício do Comisio albergava os actos eleitorais que inspiravam as campanhas de grafitos, que ainda podem ser vistos em muitas paredes nas ruas.

A Oeste, o templo de Apolo impressiona com o seu grande pórtico que albergava uma estátua da maior divindade de Pompeia. 

POMPEIA.A vida petrificada.Fonte numa rua de Pompe

Tarde de gladiadores

O anfiteatro de Pompeia, semelhante ao Coliseu romano, é o mais antigo dos que chegaram aos nossos dias. Manteve-se quase intacto e a entrada ainda se faz pelas masmas galerias empedradas por onde, uma vez, transitou Espártaco antes de entrar na arena. Chegados ao centro, observamos a elipse perfeita formada pelo anfiteatro de 135 metros de comprimento, que podia albergar 20 mil pessoas. 

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Era aqui aqui que começava, pela manhã, um espectáculo sangrento, no qual se defrontavam elefantes, rinoceronte, tigres, leões e hipopótamos, enfurecidos à força de tiros de flecha. O anfiteatro ia enchendo lentamente com público vindo de outras cidades e, nos dias de calor ou de chuva, era estendido o velarium, um tecto em tela atado a anilhas, que ainda podem ser vistas no cimo das bancadas.

A tarde pertencia aos gladiadores, recrutados entre os escravos e prisioneiros de guerra para enfrentarem as feras num cenário decorado com árvores e grandes rochas. Cada combate terminava numa orgia de sangue, salpicando as primeiras filas. Durante a celebração da vitória de Trajano sobre os dácios, num só dia, 11 mil animais lutaram até à morte ou foram atravessados por lanças de aço, provocando a extinção dos hipopótamos da Núbia e dos elefantes do Norte de África.

Ao imaginarmos aquelas cenas na arena, parece lógico que, muitas vezes, a violência se estendesse também às bancadas, como no futebol de hoje. Em 59 d.C., uma briga entre os habitantes de Pompeia e os seus vizinhos de Nocera resultou num massacre com numerosos mortos, um incidente que enfureceu o colérico Nero que, no Senado em Roma, decidiu suspender estes espetáculos por dez anos.

Este violento episódio é descrito com grande pormenor numa pintura encontrada na casa de Aczio Aniceto e pode ser vista actualmente no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, onde se encontram os melhores tesouros artísticos de Pompeia.

Não há no mundo outra viagem tão genuína a um passado milenar, tão abrangente dos aspectos quotidianos de uma civilização. Pompeia é, para além disso, o sonho de qualquer arqueólogo, o summum para estes cientistas que, por exemplo na Patagónia, têm de se conformar com o facto de que uma ponta de flecha é quase o maior achado a que podem aspirar.

Em Pompeia, pelo contrário, encontraram uma cidade inteira de pé com os seus habitantes em plena acção. E ainda não acabaram de a investigar. Foi descoberta por Domenico Fontana em 1594. Mas os trabalhos de investigação só começaram em 1748.

 

Um mosaico gigantesco

As muralhas de Pompeia encerram 70 hectares densamente edificados. Decorreram 263 anos desde as primeiras escavações, que voltaram a colocar pedra sobre pedra, quando necessário, ou simplesmente escoraram paredes. Mas os teimosos arqueólogos continuam a desenterrar sinais e a recolher pegadas estranhas. Já reconstruíram quatro quintos da cidade; um mosaico gigantesco onde não falta uma única peça, por pequena que seja. No entanto, a tarefa é tão vasta como o tempo.

A Via de Estabia é uma das ruas da cidade em melhor estado. Aos pés do Vesúvio, o registo arqueológico permaneceu quase intacto e bastou um trabalho paciente para ir desenterrando com escovas e pincéis, centímetro a centímetro, uma cidade completa da época da Cristo.

Assim foram aparecendo as ruas com o seu empedrado, as casas mantendo a cor das paredes e os prodigiosos mosaicos embutidos, sem que lhe falte uma só peça, as fontes e as termas em condições de funcionar, dois anfiteatros com suas bancadas, onde porventura a Antígona poderá ter estado em cena quando era ainda novidade e onde também se apresentou o grupo Pink Floyd, em 1971, e um ginásio com uma grande piscina. Pompeia é, seguramente, um caso irrepetível na História, em que a Natureza quebrou as leis do tempo congelando, num só instante, todo o quotidiano de uma cidade. Haverá outras Pompeias perdidas no coração da Terra? A cidade, entretanto, continua a produzir novos detalhes de como se vivia nos tempos do grande império - uma vida tão comum como a nossa, mas a que os séculos conferem uma importância crescente.

 

Conservada até ao ínfimo pormenor

As tragédias -uma bomba atómica, um "tsunani", um terramoto- destroem por completo as cidades, por vezes até às suas fundações. E o homem destrói o que resta para começar tudo de novo, deixando apenas uma amostra em forma de ruína para servir de memória.
Na verdade, as poucas cidades comprovadamente milenares que ainda existem -Varanasi, Atenas, Jerusalém- têm sido permanentemente destruídas e reconstruídas, não restando muito da sua matriz original. O que continua em uso e está de pé é, na maior parte, medieval. Mas no caso de Pompeia foi tudo ao contrário. Embora a cidade tenha desaparecido do mapa de um dia para o outro, ficou conservada até ao pormenor mais ínfimo.

Mas desenterrar Pompeia foi, ao mesmo tempo, condená-la a desaparecer. A sua mortalha vulcânica já não a protege e num futuro distante, pouco a pouco, os tectos restaurados caírão e as paredes começarão a desfazer-se em pó, por muito cuidado que se tenha. Se não tivesse sido descoberta, Pompeia continuaria a existir -não para os homens- debaixo da terra, ainda secreta. E, porventura, continuaria oculta para além do desaparecimento do homem sobre a Terra.

Mas Pompeia está hoje à vista de todos, muito perto do seu esplendor máximo: os arqueólogos recuperaram-na um pouco e quase se tornou numa cidade viva em majestosa decadência. O contacto com o ar, a chuva, a poluição e o perigo de alguma eventual guerra irão derrubá-la um dia (em 1943, por exemplo, o Fórum e o Teatro Grande foram danificados por bombardeamentos dos Aliados).

Pompeia tem os seus dias contados. Mais tarde ou mais cedo terá de desaparecer. A menos que o Vesúvio desperte e volte a sepultá-la, provando que os deuses do Olimpo a predestinaram à eternidade.

in Courrierinternacional, Junho 2011

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sábado, 22 de Abril de 2017

JOSÉ CARDOSO PIRES: UM ESCRITOR NÃO CHORA

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Faz hoje dez anos que morreu José Cardoso Pires, o escritor cinematográfico que cortou com o neo-realismo vigente.

As homenagens começaram no princípio do mês e continuam domingo fora.

De qualquer maneira, e como se sabe, um escritor não morre enquanto houver gente a lê-lo.

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A pieguice é a assassina, besta devoradora que tenta o escritor. Um escritor mostra, mas não mostra o que sente. Deixa-se aliciar pela torrente sentimental, é como pendurar a forca à volta do pescoço e empurrar o banco debaixo dos pés. O escritor senta-se à mesa e contém o caudal de emoções, inventa-lhes canais, subverte-as e elabora-as para as sugerir de outra maneira. Implícita, jamais explicitamente. O escritor concentra-se e pensa como dizer sem ter de dizer. O leitor que chore se quiser. Mas isso não fica escrito. O escritor controla-se porque um escritor não é sentimental. Quando escreve. Já quando fala, a voz é entidade autónoma. Tenta carregar apressadamente na tecla de “pause” mas já a voz adiantou em inflexões que o atraiçoam e o escritor não tem como dominá-la. A não ser assim: “Estou a ficar comovido, passo a palavra ao Júlio Pomar”. António Lobo Antunes remete-se ao silêncio para fazer o trabalho de contenção. Ainda que, dez anos depois, dê vontade de chorar a absurda ausência de um amigo.

Isto passa-se na casa Fernando Pessoa, em Lisboa, Campo de Ourique, no mesmo dia 2 de Outubro em que Cardoso Pires nasceu, há 83 anos. Morreu dez anos, também no mês de Outubro e, no presente, há apenas uma grande vaga de gente a apinhar a sala para ouvir dois amigos íntimos a falar sobre o escritor. Uma homenagem entre as muitas que este mês acontecem em seu louvor, esta de algum modo especial por não ser apenas uma exposição pelo seu trabalho, mas acabando por ser também a “exposição” de uma amizade. E da nossa avidez de intimidade, nem que seja da dos outros.

Enquanto aqui em baixo (imagem infantil esta de imaginar que os mortos passaram a um plano superior, mas adiante), enquanto aqui em baixo esperamos por revelações, José Cardoso Pires “está a passar no purgatório”. A informação é de Lobo Antunes. “As editoras são máquinas terríveis e horrorosas", diz a propósito de “o Zé não estar agora a vender o que podia estar a vender”. A sala apinhada e o Lobo Antunes a blasfemar contra a rapidez com que, hoje em dia, se faz um escritor: O problema é que ser ou parecer um tipo inteligente não chega. “É o livro que tem de ser inteligente, não o escritor.” E tenta esmiuçar o que está a dizer a partir da escrita do José Cardoso Pires: “Todas as palavras que a gente leu, mas que não estão lá. Isto é muito difícil de fazer!” “É uma prosa seca, não é adjectivada, só aparentemente é simples.”

Como é possível escrever ou descrever sem recorrer a adjectivos, como Cardoso Pires tão trabalhosamente conseguia? Como é que se fica sem adjectivos? Lobo Antunes pergunta e responde: “O Zé era um alpinista que trepava sem corda.” Mas como não há milagres nem grandes escritores instantâneos, o seu processo era o de um infindável riscar e apagar. Inês Pedrosa, directora da Casa Fernando Pessoa e mediadora da conversa, diz, ou melhor, pede confirmação: “A Edite dactilografava-lhe vezes sem conta as inúmeras versões, não era?”, e olha para o público onde a mulher de Cardoso Pires acena afirmativamente.

“O que ele sofria para chegar ali, podia passar uma tarde inteira com uma frase”, diz António Lobo Antunes. E Inês Pedrosa, com um misto de espanto e ternura, acrescenta: “Tinha vergonha de escrever pouco.” Coisa irónica, esta de se medir um escritor pelo amontoado de caracteres que se consegue expelir.

O público aproveita a intervenção de Inês Pedrosa para se queixar de que não ouve nada. Vozes irritadas: “Viemos aqui ansiosos por ter esta oportunidade única e não se ouve nada!” A responsabilidade parece não ser da acústica da sala mas de Lobo Antunes, que fala baixo e se afasta do microfone. O escritor justifica-se com a dificuldade que o tema lhe causa. Fala baixo porque ainda lhe “custa muito estarem ali os dois (ele e o Júlio Pomar) sem o Zé aparecer”. O que é de facto uma daquelas ilusões causadas pela própria realidade porque o Zé Cardoso Pires está ali todo o tempo e em todas as palavras de Lobo Antunes, que se percebe não ter desistido de dialogar com o amigo.

Enquanto vai tentando violentar-se por empatia a esta homenagem pública ao amigo, risca e apaga antes de dizer aquilo que a memória provavelmente lhe vai trazendo. Cada revelação é pontuada pela dúvida: “Há coisas que talvez o Zé não quisesse que eu estivesse a contar.” Arrisca outra vez: “O Zé escrevia no apartamento da Costa da Caparica em frente ao mar; precisava de uma grande concentração para escrever. Até as badaladas da igreja o perturbavam. Precisava de estar num isolamento completo. E, às vezes, por sentir que outros escritores seus contemporâneos recebiam mais atenções, perguntava-me: O meu trabalho não é assim tão mau, pois não?”

O pintor Júlio Pomar, menos verbal, também frisa em Cardoso Pires o sentido de responsabilidade que punha naquilo que escrevia. “O sentido de gravidade perante o objecto que estava a fazer e a quantidade de versões que escrevia. Havia uma diferença abissal entre o contador de histórias, ao vivo, e o escritor.” E diz que “o Zé era um homem eternamente solitário apesar de estar sempre rodeado de gente”. Lobo Antunes conta que em casa dele havia muito poucos livros e que não havia um único livro seu à vista. “Tinha muito pudor.” Recebia imensos livros, rasgava a página da dedicatória e deitava fora o resto, revela. Tal como não tinha fotografias suas ou da família na sala, mas tinha três do Hemingway.

De repente, Lobo Antunes está a falar da morte, a dizer que Cardoso Pires “achava a morte uma coisa indigna”, e das coisas indignas a que ele próprio assistiu, como a maneira como Cardoso Pires foi tratado no hospital, da segunda vez que esteve doente. “A tratarem-no por tu quando ele estava semiconsciente! Não me apetece falar sobre os últimos tempos, foram de uma grande revolta.”

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Aplica-se o que Cardoso Pires explicou ainda melhor numa entrevista ao “Jornal de Letras”, um ano antes de morrer. A entrevistadora perguntara-lhe “como encara a morte?”. Cardoso Pires responde: “É mais uma puta. É isso. Pena que a definição não seja minha mas do Hemingway”. E disse também, num documento gravado para a RTP, no ano da sua morte: “Eu tenho medo físico, não tenho medo da morte. Tenho medo do sofrimento, da dor e da humilhação. (…) Morrer, a mim, não me faz diferença nenhuma, desde que me tirem as dores, que é obrigação da medicina. (…) Tenho uma grande admiração pela eutanásia, tenho um grande respeito pela morte ajudada e um grande desprezo pelos tais heróis do sacrifício.”

 

No CCB e na estante

Cardoso Pires morreu na madrugada de 26 de Outubro de 1998. Se se apressar, hoje, dez anos volvidos sobre o dia da sua morte, ainda vai a tempo de participar numa homenagem que acontecerá no Centro Cultural de Belém (CCB), com leituras da sua obra por António Mega Ferreira, Inês Pedrosa, Mário de Carvalho, Lídia Jorge ou Eduardo Agualusa; com o visionamento da adaptação a cinema de “O Delfim”, de Fernando Lopes, ou com a conferência “Memória e Autoficção”, de João Lobo Antunes, médico, amigo e autor do prefácio de “De Profundis, Valsa Lenta, onde Cardoso Pires descreve e revisita a experiência do acidente vascular cerebral que sofreu em Janeiro de 1995.

Todas as homenagens para que depois possa regressar a casa e reencontrar José Cardoso Pires entre as páginas de “O Anjo Ancorado, de “O Delfim” ou de “Alexandra Alfa”, e redescobrir a inigualável companhia deste homem e deste escritor, improvável e danadamente vivo

 

Não me beije

Há cinquenta anos, podia “coçar-se o sexo” sem problemas e até violar em grupo uma vadia porque “ou bem que uma mulher pertence só a um homem ou então, catrapus, arroz fingido” (“Ritual dos Pequenos Vampiros” in “Histórias de Amor”). Podia sugerir-se as coisas só não se podia verbalizá-las. Do que a censura não gostava era de palavrões, coisas tipo “comeu-a”, “galdéria” ou “camandro” e, evidentemente, de ninguém que aparecesse nu ou aos beijos num livro. Cardoso Pires escreve: “Não me beije”, a censura corta. Ele escreve: “Com a coberta enrodilhada aos pés, o jovem fitava-a. Estava nu e fitava-a”. A censura corta.

Nelson de Matos, que foi seu editor durante vinte anos, primeiro na Moraes Editores e, depois, na Dom Quixote (onde está editada grande parte da obra de Cardoso Pires), volta agora a sê-lo em nome próprio (Edições Nelson de Matos), com a recente edição do inédito “Lavagante” e do livro de contos “Histórias de Amor”, que não sendo inédito porque foi publicado, e logo apreendido, no Verão de 1952, é original por tudo o que reúne no mesmo volume. E é de leitura deliciosa como curiosidade histórica. Aos contos de José Cardoso Pires, escritor que na altura ainda não completara trinta anos de idade, mas que já deixa inscritas as marcas da obra ímpar que viria a criar, juntam-se todos os cortes que a censura tentou impor-lhe (assinalados a cinzento no texto), bem como a carta que dirige à censura e com que tenta contra-argumentar, mais as críticas ao livro que então foram publicadas, da autoria de Mário Dionísio, Luís de Sousa Rebelo e Óscar Lopes.

A censura regista o livro como “imoral”, sublinhando o retrato que o escritor faz das “misérias sociais” onde “o aspecto social se revela indecorosamente”. “De proibir”, classifica. A crítica enaltece e glorifica o escritor mas aproveita para lhe apontar uns pecados a corrigir e para lhe dar uns pequenos conselhos paternalistas. Felizmente, Cardoso Pires nunca desistiu do pecado que a crítica lhe aponta em uníssimo, corre o ano de 1952. Nas palavras de Mário Dionísio, “grandes escritores americanos continuam a ser presença excessiva nos contos do autor de “Caminheiros” (primeiro livros de contos de 1949). (…) Faulkner, Caldwell, Hemingway, estão demasiado presentes nestas histórias que desejam ser portuguesas”. E mais adiante o conselho de que “o contacto mais estreito com os europeus lhe será utilíssimo na desamericanização dos seus processos e até da sua construção linguística”.

Mas o estilo de Cardoso Pires perdurará, como diz Inês Pedrosa na fotobiografia que escreveu e organizou sobre o autor. José Cardoso Pires “sempre se guiou pela lei anglo-saxónica que manda agarrar o leitor pela gola do casaco e empurrá-lo para dentro do livro – mas educadamente, como convém a um cavalheiro de cartilha. Sempre se deu ao trabalho de neutralizar a resistência à leitura através da técnica da surpresa”.

Imagens retiradas de José Cardoso Pires,

 Fotobiografia, de Inês Pedrosa. Dom Quixote, 1999

Notícias magazine

26 Outubro 2008

Texto: Cláudia Moura

 

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Segunda-feira, 10 de Abril de 2017

PELA VIA FRANCÍGENA, NO TRILHO DOS PEREGRINOS

(Uma estrada cujas origens remontam ao Império de Júlio César volta a conquistar caminhantes. Vamos à descoberta das suas formações geológicas únicas e de vinhos, queijos e enchidos sem igual. [Revista ULYSSE-Paris]

Ponte de Saint-Martin sobre o rio Lys, no vale de

Ponte de Saint-Martin sobre o rio Lys, no Vale do Aosta [Foto: Nicholas Thibaut]

“Todos os caminhos vão dar a Roma”, diz o provérbio. É esse precisamente o destino da Via Francígena, a estrada dos Francos ou Franceses que, na Idade Média ligava o Norte da Europa à Cidade Eterna. Era usada pelos peregrinos que se dirigiam ao túmulo de São Pedro.

Caída no esquecimento, esta estrada histórica conheceu novo alento desde que foi nomeada “Grande Itinerário Cultural”, pelo Conselho da Europa, em 2004. A designação pretende proporcionar aos europeus a descoberta do seu património cultural comum, numa viagem pelo espaço e, ao mesmo tempo, pela História. Divulgado pelos organismos de turismo e por numerosas associações de entusiastas beneméritos, este regresso às origens europeias tem conhecido um grande desenvolvimento em Itália. É o caso do troço que atravessa a região da Canavese, no Piemonte, entre Turim e o vale de Aosta.

Cinquenta e cinco quilómetros de caminhos de terra e pedra -cujo pavimento, em alguns pontos, remonta à época romana ou medieval- serpenteiam por uma das regiões mais verdes da Europa. O itinerário começa em Pont-Saint-Martin, uma pequena comuna no vale de Aosta, cuja ponte, construída em 25 a.C. para permitir o acesso das legiões romanas à Gália, marca a entrada no território piemontês; passa, em seguida, por meia dúzia de comunas medievais e pitorescas, entre elas a sedutora cidade de Ivrea, e termina em Cavaglia, na direcção de Vercelli. Na verdade, este traçado é apenas uma pequena parcela da Via Francígena, que se estende por cerca de 1600 km.

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 No ano 58 a.C., Júlio César inaugurou a “Estrada de Roma”, que depressa se transformou na espinha dorsal do sistema rodoviário da Europa Ocidental.

Em consequência do domínio árabe sobre Jerusalém (no ano 640), Roma passou a ser o principal destino das peregrinações cristãs, assim se mantendo até ao início do culto de Santiago, em Compostela (Galiza), no século X. Em Itália, na Alta Idade Média, o percurso seguiu itinerários lombardos baseados nas vias romanas.

A Via recebeu a designação de “Iter Francorum” em 725, passando a ser conhecida como Via Francígena em 876. Com a proclamação dos Anos Santos a partir de 1300 [através dos quais o Papa concedia pleno perdão aos pecadores que iniciavam a peregrinação a Roma], o fluxo chegava a ser, frequentemente, de dezenas de milhares por ano. A peregrinação a Roma pela Via Francígena caiu em desuso por volta do século XVII.

 

Uma estrada que mudou muito

Segundo Adelaide Trezzini, presidente da Associação Internacional da Via Francígena (CAIVF), em 1985, Giovanni Caselli, especialista em arqueologia rodoviária, registou, nos mapas e no terreno, o itinerário do arcebispo Sigéric de Cantuária, que foi a Roma, em 990, para receber o pálio das mãos do papa João XV.

No caminho de regresso à Grã-Bretanha, o arcebispo saxónico manteve um diário onde anotou meticulosamente as 79 etapas da sua viagem. São estas as etapas que constituem a Via Francígena tal como a conhecemos hoje.

No entanto, esta conheceu numerosas variantes ao longo dos séculos. Em vez de ser uma via com traçado definitivo, assemelhava-se a um encadeado de trajectos e caminhos que ligavam igrejas, mosteiros e outros locais de devoção, onde os peregrinos podiam reunir-se, como a Sacra di San Michele, no vale de Susa, a poucos quilómetros de Turim.

Se o peregrino moderno pode continuar a pernoitar nos inúmeros edifícios religiosos que cruzam o caminho, deve-o à natureza luxuriante envolvente que lhe inspira o sentimento de aproximação ao divino e à riqueza infinita da criação. Paisagens ostentando a paleta completa do verde e lagos de águas calmas aguardam a caminhante ao longo dos caminhos.

Este não deixará, sem dúvida, de se maravilhar perante a majestade imponente do “circo glaciar” de Ivrea. Esta formação geológica, um vasto anfiteatro que se estende por 530 quilómetros quadrados, surgiu durante o Pleistoceno e resulta de sucessivas fases de expansão e retracção do glaciar Baltoro, que veio do vale de Aosta depois de ter passado pelas vertentes meridionais do Monte Branco.

Cordilheiras e depósitos glaciares, blocos erráticos, turfeiras, bacias lacustres… são alguns dos elementos geomorfológicos que fazem do “circo glaciar” de Ivrea um dos locais de origem glaciar mais notáveis e melhor conservados do planeta. É também nos arredores de Montalto Dora que passa a “linea insubrica”, a maior falha tectónica da cadeia dos Alpes.

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Toscânia.Troço da Vila Francigena

Os da montanha

Os apaixonados pelas grandes caminhadas e os amantes dos prazeres terrenos podem ficar tranquilos. O troço de Canavese reserva-lhes boas surpresas. Em Carema, a primeira vila depois de Pont-Saint-Martin, encontrar-se-ão face-a-face com um exército de “pilun”, pilares de pedra de forma característica que suportam as pérgulas das vinhas plantadas em socalcos. De noite, libertam o calor acumulado durante o dia e permitem uma maior resistência das plantas ao frio das montanhas.

É nestas terras altas que se produz o “carema”, um vinho tinto cor de rubi e de gosto aveludado, que beneficia da designação de origem controlada.

Algumas etapas mais à frente, antes de chegar a Borgofranco d’Ivrea, os amantes de Baco não deixarão de apreciar as "balmetti". Incrustadas nas montanhas, estas adegas naturais, escavadas na rocha, permitem manter a humidade e a temperatura a níveis constantes. Correntes de ar, chamadas “ore”, causadas por um fenómeno natural no interior do maciço de Mombarone, são captadas por uma rede de pequenos orifícios e permitem conservar vinhos, queijos e enchidos ao longo de todo o ano. Estas “balmetti”, que remontam a meados do século XVIII, são transmitidas de geração para geração e constituem o orgulho dos seus proprietários.

Ao longo do tempo, tornaram-se locais de convívio entre amigos em volta dum copo de vinho e um petisco. Como prova disso, a rua onde se situa a maioria tem o nome de Via del Buonumore (rua do bom humor).

Todos os anos, no terceiro domingo de Junho, as portas abrem-se para uma jornada de festa popular, baptizada de “Andona ai Balmit”, em que todos podem apreciar as delícias desta tradição local, baseada na cordialidade e na hospitalidade.

A redescoberta da Via Francígena não teria sido possível sem o esforço de associações como a de Trezzini que, gratuitamente, sinalizam os caminhos, organizam excursões, fornecem mapas e listas de alojamentos, trocam testemunhos na sua página na Internet, etc. Com resultados excelentes, pois o número de peregrinos tem aumentado regularmente desde 2001.

[…]

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Quinta no Vale de Susa, na Sacra di San Michele, no Piemonte italiano [Foto Yvan Travert]

 

Anichada no cimo do monte Pirchiriano (962m) como uma sentinela silenciosa, a Sacra di San Michele vigia a entrada do Piemonte. Não foi por acaso que este imponente monumento religioso, de formato singular, foi escolhido como símbolo da região. Construída no século X, a abadia foi uma etapa obrigatória da Via Francígena, além de se situar a meio caminho dum percurso que une os três grandes locais de devoção ao arcanjo, desde o Monte Saint-Michel, na Baixa Normandia, até ao santuário do Monte Gargano, na Apúlia (Itália). Por vezes, esta rota chega a ser conhecida como Via Francígena do Sul.

Depois de chegarem a Roma, os peregrinos fazem uma última paragem no santuário de Gargano, na ponta da península, antes de continuarem a sua peregrinação e embarcarem para Jerusalém.

Peregrinos diplomados

São já 1850, os peregrinos que percorrem a Via Francígena desde 2001, e obtiveram o respectivo “testimonium”, um pergaminho de edição limitada, emitido pela Associação Internacional Via Francígena e entregue na Basílica de São Pedro aos caminhantes que tenham percorrido, pelo menos, o caminho entre Acquapendente e Roma (150 km), ou feito o percurso em bicicleta desde Lucques (400 km). Apenas 35% dos caminhantes efectuam a peregrinação por motivos religiosos.

 A marca F

Encontramos a marca do peregrino, por vezes denominada por um F, ao longo de todo o trajecto da Via Francígena que atravessa a região de Canavese, entre Turim e o Vale de Aosta.

 

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Segunda-feira, 3 de Abril de 2017

CHILE: O mundo dos índios Mapuche

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Fotógrafo ambulante: Temuco [Chile, 1972]

Os mapuches -Gente da Terra-, são depositários duma civilização antiga que persistiu até aos nossos dias. Povo orgulhoso da sua história de luta pela sobrevivência da sua cultura, vivia nos vales férteis do sul do Chile, ao tempo da chegada dos espanhóis. O conflito entre eles durou cerca de 300 anos, tendo ficado conhecido por Guerra de Arauco, nome por que era designada, pelos espanhóis, a terra que habitavam.

Separados de outras civilizações da América do Sul, os mapuches viviam da caça e das colheitas, organizados em clãs, tendo esta dispersão em pequenos grupos separados tornado mais difícil a conquista espanhola e o seu total domínio nos territórios a Sul do rio Biobío.

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Mercado indígena [Temuco, 1973]

Conquistada a independência do Chile, os mapuches foram sobrevivendo como cultura, constituindo actualmente 4% da população chilena. Vivem, sobretudo, na região de Temuco, no Sul do Chile, se bem que, na procura de uma melhor situação económica, alguns se tenham integrado nas grandes cidades.

As imagens incluídas neste portefólio – seleccionado de uma exposição que esteve patente na Fundação Mário Soares, em Lisboa, e no Fórum Romeu Correia, em Almada – referem-se ao início dos Anos 70, ao tempo do Governo da Unidade Popular, tempo em que o orgulho dum povo foi encorajado e respeitado, e processo no qual o autor destas linhas e destas imagens entusiasticamente participou. Nestas fotografias, agora recuperadas, presenciámos reuniões e celebrações próprias deste povo. Encontros de homens sábios que debatem o seu destino, preparação de rituais das “machi” e simples gestos do quotidiano.

As suas “machi” – curandeiras espirituais de uma comunidade – são portadoras duma sabedoria antiga, que através das gerações foi passando de velhas a novas o conhecimento das ervas medicinais, mas não se limitam à cura de doenças físicas, sabem afastar o mal, prever o tempo e até interpretar os sonhos.

Os rituais de cura e outros cerimoniais mágicos estão vedados a estranhos. Possível foi apenas fotografar momentos de convívio com a “machi” e a sua família e os vários objectos sagrados: entre estes, máscaras, o “rehue” – escadas de sete degraus de onde a “machi” executava os seus rituais, os “metahue”, cântaros também sagrados. Entre o mero convívio nos campos e a ida aos mercados, onde tentavam vender os seus produtos, olhámos o rosto de um povo e o que nele habitava de antigo e perdurara através do tempo.

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 Rehue de sete degraus onde os “mochi” (curandeiras) executavam os rituais sagrados [Nueva Imperial, Temuco, 1972]

1970-1973

A minha visão do Chile

Foram pouco mais de três anos em que tanta coisa mudou, mas, ao mesmo tempo, foi tudo tão rápido! Em Setembro de 1970, Salvador Allende e a Unidade Popular venciam as eleições chilenas com um programa político – as 40 medidas que incluíam desde a nacionalização do cobre, principal riqueza e fonte de divisas, até ao fornecimento gratuito de leite a todas as crianças. O programa da Unidade Popular expressava as aspirações da maioria do país e reunia as suas energias mais profundas para o cumprimento dos objectivos revolucionários. A coluna central dessa marcha histórica era a classe operária; ao seu redor, camponeses pobres e médios, pequenos e médios empresários, largos sectores dos funcionários públicos e dos intelectuais.

o mundos dos índios mapuche4.jpg Machi (curandeira) na sua botica [Nueva Imperial, Temuco, 1971]

A plataforma política abrangia marxistas e cristãos, maçons e agnósticos, reformistas e revolucionários, organizados em sete partidos e movimentos.

Na crista dessa vasta movimentação, o Presidente Allende, médico, político e revolucionário, ídolo dos trabalhadores que se recordavam do juramento que fizera, ainda muito jovem, de dedicar a vida às lutas sociais.

Em 1970, o Chile começa a procurar a sua identidade, e nessa procura tudo aquilo que estava no fundo, escondido ou sufocado, vem à superfície, gera tensão: o número de desempregados que já não é escondido, manipulado; saber se há desnutrição, que há falta de leite para as crianças nas escolas e nos hospitais. Que nos campos reinam os caciques latifundiários e que, com a exploração do cobre por estrangeiros, se vai a riqueza do país. De repente, a nação dá-se conta do que existe para além “barrio alto”, de belas vivendas e ruas ajardinadas, e descobre o outro lado da face. Até os índios Mapuche, conhecidos como “Gente da Terra”, que resistiram e sobreviveram aos conquistadores espanhóis, saem dos campos do Sul para entrarem na cidade contemporânea, sob o espanto dos “caballeros” da retórica que só os conheciam de fotografias, moldura de uma chilenidade que escondia as costas partidas dos índios nas sementeiras. E a roupagem nacional estoura com a chegada dessas súbitas multidões, cujos passos ressoam no país dos terramotos.

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Mapuches reunidos numa escola [Nueva Imperial, Temuco, 1972] 

De agora em diante, mudará a linguagem, os gestos, as aspirações, a rua será tumulto e a palavra “señor” dará lugar a “compañero”. O primeiro ano foi uma festa e descobrimento. Descobrir que há um motor, uma pulsação desconhecida, um sonho, dentro de mim, de ti, e descobrimo-nos juntos nesta alameda, cantando canções de Violeta Parra. 

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 Família Mapuche [Nueva Imperial, Temuco, 1972]

Para que o Chile deixe de ser o “centro da injustiça” e para que as aspirações dos vales, da Patagónia, dos salitreiros, cristalizem uma nova identidade nacional. O programa da UP passa a ser cumprido desde o primeiro dia: nacionalização do cobre, da Banca, dos grandes monopólios privados e a reforma agrária.

Mas a burguesia, perplexa num primeiro momento, começa a reagir, fortificada no outro Chile, cujas fronteiras começam na Praça de Itália e terminam no sopé da cordilheira. Ela utilizará todos os processos para juntar ódio e medo. Cobrará indevidamente os seus dólares e não se deterá até que o projecto de transformação social seja letra-morta, queimado pelas bombas.

o mundos dos índios mapuche 8 001.jpgIndígenas a cavalo [Temuco, 1972]

Três anos pouco dizem do Chile popular: foi tudo muito intenso, profundo, um outro sentimento do tempo, dias condensando anos, décadas.

Nas avenidas, multidões indescritíveis davam apoio ao Companheiro Presidente: tempo em que as lutas de classe podiam ser fotografadas quotidianamente nas esquinas da cidade.

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 Índios reunidos para tratar de assuntos da terra, à qual lhes voltara a ser reconhecido direito [[Nueva Imperial, Temuco, 1972]

Mas os ricos, os mais abastados de sempre, não podem aceitar a ofensa dos “rotos”, dos chilenos de segunda e, dispondo de maioria no Parlamento, dos Tribunais de Justiça e de Contas, dos dólares da CIA e das multinacionais, mobilizam a maioria das camadas médias, cujo padrão de vida era comparável ao dos países industrializados, para assaltar o Governo com o ódio mais espantoso. Nesse cerco tudo foi permitido: bombas, assassinatos, açambarcamentos, greves, manipulação da informação; “juntem raiva, chilenos” era o lema da burguesia sublevada que, acusando o Governo de violar a Constituição, instigava os militares ao golpe.

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 À fogueira [Aldeia de Osorno, 1973]

A 11 de Setembro de 1973, por fim, uma junta militar toma o poder, culminando a sedição iniciada logo após o anúncio da vitória eleitoral de Allende, três anos antes. O objectivo era derrubar o Governo e vencer a Unidade Popular, reinstalando um regime de fachada democrática, mas autoritário por dentro, favorável aos monopólios privados, nacionais e estrangeiros.

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Jovem com máscara tradicional [Colon, Nueva Imperial, 1972]

Contudo, o que desmoronou sob os foguetes da aviação não foram apenas as paredes do palácio – com a morte de Allende e dos defensores que lá estavam – nem a Unidade Popular; com os escombros ruíram as instituições democráticas levantadas ao longo de século e meio de vida republicana.

E, no lugar de La Moneda, surge – para o espanto de muitos do “barrio alto” – um imenso campo de concentração por onde irão passar milhares de chilenos.

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 Colares em prata para rituais [Nueva Imperial, Temuco, 1972]

Estas fotografias devolvem-nos, aqui e agora, o Chile daqueles anos que, tão profundamente vividos, não deixarão de existir. A História faz uma pausa.

 

ARMINDO CARDOSO (autor de fotos e textos) trabalhou,

no Governo de Unidade Popular de Salvador Allende,

entre 1970 e o golpe militar de Pinochet de 11 de Setembro de 1973.

Perseguido pelos golpistas, saiu do Chile sob protecção da

Embaixada Francesa e conseguiu salvar muito do seu espólio fotográfico.

 

Publicado no COURRIER INTERNACIONAL, Dezembro 2013

 

 

 

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Domingo, 26 de Março de 2017

NUNCA MAIS LHE CHAMEM DRÁCULA…

 Reduz-se Vlad III à sua reputação de autocrata sanguinário, quando não bebedor de sangue humano. A imagem deste príncipe do século XV, em guerra contínua contra os turcos, foi objecto de 500 anos de manipulações e fantasias

         REVISTA HISTÓRIA

Bucareste

Drácula jj 001.jpgO mais conhecido dos retratos de Vlad III.Quem foi ele? Um patriota ou um tirano sanguinário?As opiniões divergem

 

Vlad Tepes é, sem dúvida, o romeno mais famoso da Idade Média. O seu nome era conhecido desde o Império Otomano até aos países germânicos.

Ainda em vida era já herói de histórias de terror. Registou um aumento de popularidade póstuma no final do século XIX, graças ao romance Drácula, de Bram Stoker [publicado em 1897], e essa celebridade nunca mais foi abalada. Mas quem era ele afinal?

 

Nascido em 1431, Vlad III era filho de Vlad Dracul II, voivoda [príncipe] da Valáquia [sul da Roménia].

O apelido de Dracul (“o diabo” em romeno) vem do latim draco (=dragão), porque Vlad II foi feito cavaleiro da Ordem do Dragão por Segismundo de Luxemburgo [imperador romano-germânico de 1410 a 1437]. Vlad III foi por isso chamado de “Drácula” pelos seus contemporâneos, ou seja, filho de Dracul, ao passo que os turcos o apelidaram de “Tepes”, ou seja, “Empalador”, devido à punição que mais lhe agradava infligir aos inimigos: o empalamento.

A tradução romena do cognome turco “Tepes” ficou nos livros de História, ao passo que o epíteto de Drácula, preferido pelos ocidentais, se encontra associado à imagem fantasiosa da personagem do romance de Bram Stoker.

Vlad III passou a infância e a adolescência na Transilvânia e na Hungria com o pai. Quando este se tornou vassalo do sultão, Vlad foi enviado como refém para o Império Otomano. Antes de assumir o poder, terá conhecido várias culturas: a húngara e a alemã na Transilvânia, a otomana e a romena. Os contactos com meios diversos permitiram-lhe forjar uma concepção própria do poder.

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O poder dos boiardos

Situada entre o Império Otomano e o reino da Hungria, a Valáquia [para a qual Vlad é chamado a reinar] é um Estado-tampão, situação que só lhe é vantajosa enquanto haja equilíbrio entre as duas potências. Rei húngaro e sultão otomano reivindicam o título o título de soberano dos voivodas romenos. Consoante os interesses e a preponderância militar de cada um, o príncipe será repudiado, ora pelos turcos, ora pelos húngaros.

O antagonismo entre húngaros e otomanos agrava a instabilidade na Valáquia, com os nobres divididos em facções, cada uma apoiando um pretendente. Os boiardos [classe de aristocratas] detêm, para além do poder económico decorrente de serem grandes proprietários de terras, o poder militar, desempenhando papel importante na mobilização do exército.

Vlad Tepes está ciente da necessidade de garantir a lealdade destes últimos. Já passou pela experiência dum reinado efémero, em 1448, quando subiu ao trono com a ajuda dos turcos sem ter conseguido ganhar o apoio do país. Ao voltar ao poder em 1456, Drácula sabe que não pode governar sem os boiardos. Correndo sempre o risco de perder o trono, decide submetê-los, acusando alguns de traição. Manda-os executar e confisca-lhes os bens, reforçando assim a autoridade central.

Inicialmente, reconhece-se vassalo do rei da Hungria. Mas no final de Agosto de 1456, volta-se de novo para os otomanos, a quem paga tributo. A situação muda radicalmente em 1459. O voivoda atrasa o pagamento do tributo porque, no mesmo ano, os turcos transformaram a Sérvia, que dominavam, em pachalik [província imperial]. Os boiardos da Valáquia temem que as suas terras sofram o mesmo destino, o que resultaria na perda de bens e privilégios. Unem-se em torno de Vlad Tepes para, em conjunto, enfrentarem os otomanos.

O contexto internacional é-lhes favorável. Em Mântua, na Itália, o Papa Pio II acaba de lançar uma grande cruzada contra os turcos, na qual o jovem rei da Hungria, Matias Corvino, desempenhará um papel preponderante. Para Vlad Tepes é o factor decisivo. Renova fidelidade à Hungria e desencadeia uma campanha militar, no Inverno de 1461-1462, que visa enfraquecer a linha de defesa otomana ao longo do Danúbio.

Em 11 de Fevereiro de 1462, Vlad Tepes informa o seu soberano, o rei Matias Corvino da Hungria, do sucesso da campanha e apresenta-lhe a estimativa dos inimigos mortos: 23.888. Se a corte de Buda fica impressionada, o sultão Mehmet II, conquistador de Constantinopla, assume o comando de um exército de 100 mil turcos para punir o voivoda romeno. Consciente da impossibilidade de uma luta frontal, usa os seus 25 a 30 mil homens para levar a cabo uma cruel guerra de guerrilha, que culmina numa célebre batalha que ficou conhecida como a “Noite do Terror”.

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 Cena de empalamento. Vlad Tepes ou Vlad o Empalar almoça à mesa enquanto assiste

Na mesma altura, a Valáquia é atacada, a norte, pela Moldávia de Estêvão, o Grande, que parece ter esquecido que Tepes o ajudara a ascender ao trono em 1457. Aliado aos turcos, o moldavo vai sitiar a fortaleza valáquia de Chilia, enquanto a marinha otomana ataca por mar, sem sucesso.

O sultão vê-se obrigado a sair da Valáquia sem a ter conquistado. Mas joga um trunfo que lhe irá garantir a submissão do país. Na sua corte, encontra-se o irmão mais novo de Vlad, Radu, o Belo, de quem faz novo pretendente ao trono. Abandonado pelos boiardos, que se aliam ao irmão, Vlad Tepes refugia-se na Transilvânia. A lenda conta que a esposa de Vlad se suicida para evitar a prisão turca, lançando-se de uma escarpa, cena explorada, em 1992, por Francis Ford Coppola no filme Drácula.

Os inimigos de Vlad forjam uma carta, que ele teria enviado ao sultão, interceptada pelos súbditos do rei Matias. Nela, Vlad prometeria fidelidade a Mehmet e oferecer-se-ia para o ajudar a conquistar a Transilvânia. A carta serve de pretexto para prender Vlad, na fronteira da Valáquia. Acusado de traição, fica confinado quase 12 anos a Visegrád, residência real sobre o Danúbio, ao norte de Buda. O rei Matias Corvino reconhece Radu, o Belo, como voivoda da Valáquia.

 

Uma lenda ainda em vida

Após a sua libertação em 1476, no contexto das guerras contra os turcos, movidas desta vez por Estêvão, o Grande [no trono da Moldávia entre 1457 e 1504], Vlad Tepes recupera brevemente o trono até ser assassinado por um grupo de boiardos que se queriam vingar. Mas o reinado do Empalador não deve ser reduzido às campanhas militares, embora estas tenham contribuído para espalhar a sua reputação de poder e de terror.

Esforçou-se por impor aos emissários estrangeiros que, como príncipe, tinha de ser tratado com respeito. Dizem as crónicas medievais, que teria tomado providências rigorosas noutras áreas: medidas draconianas contra o roubo, punição dos improdutivos, primeiro programa conhecido de integração dos ciganos – pelo seu envolvimento forçado na guerra contra os turcos – e supressão física dos mendigos.

Vlad Tepes entrou na lenda ainda em vida. Os textos alemães destacavam a sua crueldade. Os historiadores sublinham que essas histórias eram intencionalmente espalhadas pelos mercadores saxónicos e por Matias Corvino, a fim de se justificar perante o Papa por terem prendido Vlad e interrompido a sua cruzada.

Se ainda hoje gostamos de contar histórias à volta da fogueira, também na Idade Média as histórias sangrentas eram apreciadas por aqueles que animavam o ambiente dos albergues. Quanto mais intoleráveis fossem os horrores, melhor. E cada contador acrescentava o seu grão de sal para lhes aumentar o encanto.

 

NASCE A LENDA: A “Noite do Terror”

Em Junho de 1462, o sultão Mehmet II invade a Valáquia. O seu enorme exército desloca-se para o Norte, mas comete o erro de acampar na orla de uma floresta. É aí que o espera Vlad Tepes.

Em 17 de Junho, este lança um ataque nocturno. O pânico toma conta dos otomanos e Vlad por pouco não mata o sultão.

De madrugada, os valáquios retiram-se tendo morto cerca de 15 mil turcos. Abalado, o sultão continua a sua ofensiva até aos muros de Targoviste, a capital de Vlad. Aí é recebido por uma floresta de estacas ornadas com os cadáveres de cinco mil turcos. Repugnado, Mehmet volta para trás. Vencerá o seu adversário mas por outros meios.

 

BRAM STOKER

A actual popularidade de Vlad III deve muito a este escritor irlandês [1847-1912].

No seu romance, Drácula, publicado em 1897, inspirou-se na lenda do príncipe valáquio para criar uma personagem de vampiro que se tornaria muito famosa e inspiraria, entre outros, numerosos cineastas.

 

Marius Diaconescu, Professor da Faculdade de História

da Universidade de Bucareste

 

in COURRIER internacional
[Agosto 2013]

 

 

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Quarta-feira, 22 de Março de 2017

ARTUR SEMEDO: Actor, galã, realizador, benfiquista e tudo

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E talvez mais. Talvez também o que escreveu António Lobo Antunes, na mesma hora em que Semedo partiu: “chamavam-te marialva, galã, machista, irónico, sei lá que mais, quando, na minha ideia, me lembraste sempre esses artistas de circo que dispõem uma mesa no centro da pista, em cima da mesa sete ou oito varinhas verticais, no topo de cada varinha um prato de loiça, e correm, aflitos, de um lado para o outro, a agitar as varinhas de forma a que os pratos continuem a rodar e nenhum deles tombe e se quebre. No teu caso parecia-me que cada prato era uma lágrima. Deus sabes o esforço que fizeste mas nunca deixaste cair nenhuma.”

Este belo texto de Melo Antunes, que foi grande amigo de Artur Semedo, põe o ponto final na ternura que o actor derramava à sua volta. Sim, o Artur era um homem terno, doce e apaixonado. Apaixonado por tudo, pelo cinema, pelo teatro, pelas mulheres, pelos amigos, pelo Benfica. Se ele pudesse ter visto a bandeira do Benfica a meia haste quando o seu funeral passou pelo seu querido Estádio da Luz, teria sorrido feliz.

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A história da luva preta

Muita gente ficava intrigada quando via Artur Semedo com uma luva preta na sua mão direita. O mistério da luva preta era afinal uma forma de aquecer a mão que, depois de um acidente com um copo partido, ficara com os tendões afectados e, para sempre, irremediavelmente fria.

A luva preta era, também, a sua imagem de marca. Artur Semedo era o realizador da luva preta, o homem de “O Dinheiro dos Pobres” (1956), “Malteses, burgueses e às vezes” (1973), “O Rei das Berlengas” (1977), “O Barão de Altamira” (1987), “O Querido Lilás” (1987). O homem de teatro de “A Rainha do Ferro Velho” e de “Meu Amor é Traiçoeiro”, com Laura Alves. De “O Vison Voador”, ao lado de Raul Solnado. Do teatro de revista em “Mini-Saias” ou “Mulheres à Vela”. Enfim, Artur Semedo foi homem de sete ofícios, de muitas viagens (Angola, Moçambique, Brasil), de muitos enredos. 

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A Missa das Sete

Artur Semedo era, todos o sabiam, um benfiquista ferrenho, um benfiquista a quem o clube fazia febre e esfarelava os ossos. Quando ia ver jogar o Benfica, ao Estádio da Luz, costumava dizer que ia à catedral, à missa das sete. E, apesar do Benfica ter sido sempre “a sua religião”, Artur tinha orgulho em dizer que era amigo de Pinto da Costa que vi, triste e sombrio, no velório de Artur Semedo, o mesmo Pinto da Costa que, disse-me Artur, vinha a Lisboa para o visitar no Hospital Curry Cabral, onde o actor acabaria por morrer.

Semedo foi grande amigo de outro grande senhor da Lisboa boémia chamado Diniz Machado. Diniz era sportinguista e o Artur, conta Lobo Antunes, dizia-lhe: “Como podes ser um homem às riscas? O Diniz a sorrir, como se pode ser de clubes às riscas…”

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De Arronches para a Luz

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Natural de Arronches, alentejano da raia, Artur cedo demonstrou um talento natural para o teatro e até José Régio, que foi seu professor no liceu de Portalegre, escreveu uma peça de teatro para o pequeno Artur representar. O destino estava traçado desde então e mesmo os pais, latifundiários e com militares na família, não conseguiram desviar o rapaz da cena teatral. Ainda passou pelo Colégio Militar de onde acabou de ser expulso e o resto já se sabe como decorreu. Teatro, cinema, televisão, rádio. Imprensa, não houve meio onde Artur Semedo não desse largas à criatividade e ao talento.

Gostava de dizer que a Luz sempre o seguiu na vida. De facto, morava na Luz, o Colégio Militar está situado na Luz e o seu clube do coração vive na Luz.

Apetece-me perguntar, como Lobo Antunes, “morreste?”. E ainda hoje me custa a acreditar. Mas já faz nove anos neste mês de Fevereiro.

 

Maria João Duarte

(Na TEMPO LIVRE nº 212)
Fevereiro 2010

 

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Quinta-feira, 16 de Março de 2017

COMO SE PÔDE DERRUBAR O IMPÉRIO RUSSO EM POUCO MAIS DE UMA SEMANA?

Entre 23 de Fevereiro e 3 de Março de 1917, a Rússia foi sacudida pela chamada Revolução de Fevereiro, que teve uma grande importância, mas cujo significado se perde pelo impacto da Revolução de Outubro

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Há 100 anos, na Rússia, começou a REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO, que de forma dramática mudou o rumo da História do país.

Em pouco mais de uma semana, em Fevereiro de 1917 (Março, segundo o calendário gregoriano) caiu o Império Russo e formou-se o Governo Provisório que durou até à REVOLUÇÃO DE OUTUBRO.

Ao longo de várias décadas, a segunda foi considerada a mais significativa, mas não se pode desvalorizar a importância da primeira.

Estão relacionadas as duas revoluções?

Sim. Grande parte dos historiadores considera a Guerra Civil na Rússia como um acontecimento global: a Revolução Russa de 1917-1922.

Durante a Revolução de Fevereiro, que teve lugar principalmente na capital, Petrogrado (San Petersburgo), caiu a monarquia na Rússia.

Sete meses depois, a Revolução de Outubro levou à Guerra Civil e ao estabelecimento do poder soviético.

Os participantes na Revolução de Fevereiro tiveram a esperança de que o futuro da Rússia fosse determinado pela Assembleia Constituinte, eleita de forma democrática.

Porém, durante a Revolução de Outubro, a Assembleia foi dissolvida e o poder foi tomado pelos bolcheviques, que eram defensores da "ditadura do proletariado".

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A monarquia na Rússia caiu em sete dias?

Sim. Depois da Revolução de Fevereiro, o imperador Nicolau II abdicou e chega ao fim o Império russo. Em poucos dias, os comícios antimilitares, as greves de trabalhadores e as manifestações provocadas pela falta de provisões desencadearam motins e a rebelião armada. As exigências a favor da recuperação da providência de Petrogrado, foram substituídas por "Fora a autocracia!"

Contudo, a legitimidade do poder dos czares vinha a debilitar-se há vários anos. Alguns grupos e movimentos tinham vindo a manifestar-se a favor da limitação da autocracia ou da sua anulação desde 1905, quando a monarquia absoluta foi restringida.

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Quem exigiu o quê?

A Revolução de Fevereiro foi apoiada por várias camadas sociais, em particular, por pessoas com educação e pelo proletariado, pelo Exército, por políticos da Duma Estatal e membros de movimentos radicais não representados no Parlamento. Para além da monarquia, cuja anulação não foi exigida por todos, outra questão chave se centrou na atitude face à guerra. Os liberais e centristas insistiam no cumprimento das responsabilidades da Aliança e em continuar com a participação na Primeira Guerra Mundial. Os esquerdistas estavam a favor da saída imediata do conflito.

A maioria dos partidos políticos defendia "a manutenção da paz interna" através de reformas. Outros membros da Revolução reclamavam a mudança da estrutura estatal e a ampliação do poder do Parlamento. Os mais radicais exigiam a anulação total da autocracia e da propriedade dos terratenentes. Todavia, não se pode afirmar que a Revolução fora fruto da actividade dum só grupo, ja que o país se encontrava numa profunda crise política.

O que é que levou à Revolução?

Na época soviética, as causas foram explicadas pela "inevitabilidade das mudanças”. Os investigadores da actualidade defendem que a Revolução foi a consequência dos problemas e contradições económicas, sociais e políticas, acumuladas que foram exacerbadas pela guerra.

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Foi um levantamento pacífico ou armado?

Como início da Revolução consideram-se as desordens provocados pelas interrupções das provisões a Petrogrado, conhecidos por “motins do pão”, que levaram à destruição de vitrinas por parte das pessoas que formavam filas nas tendas.

A Revolução começou no dia 23 de Fevereiro (ou 8 de Março), quando os trabalhadores, numa manifestação antimilitar massiva se uniram aos refugiados, desertores e soldados de batalhões de reserva. Estima-se que cerca de 200.000 pessoas participaram nas manifestações no centro da capital. No mesmo dia, começaram os confrontos com a Polícia e cossacos, que tinham como objectivo reprimir os distúrbios. A 25 de Fevereiro, iniciaram-se arrestos para "de forma contundente, pôr fim" aos distúrbios, segundo a ordem do imperador.

A 26 de Fevereiro, produziu-se a primeira revolta, depois dos soldados do regimento Pávlovski abrirem fogo contra os oficiais e a Polícia. Em 27 de Fevereiro, arrancou um levantamento armado, os manifestantes lançaram fogo a edifícios do Governo, tomaram os arsenais, as estações, as pontes e os cárceres e puseram em liberdade os prisioneiros. Pela noite desse dia, os revolucionários já tinham o controle completo da capital.

Onde se encontrava o czar?

Em 1915, Nicolau II tomou a decisão de comandar o Exército e abandonou Petrogrado. Voltou à capital em várias ocasiões, mas na sua ausência era a esposa, a imperatriz Aleksandra Fiódorovna, quem governava o país.

O comité provisional, formado a seguir ao golpe, enviou os seus representantes na cidade de Pskov para conseguir a abdicação do imperador a favor de seu irmão, Mijaíl. Contudo, este último foi preso e mostrou-se a favor da criação da Assembleia Constituinte.

Não estava organizada a Revolução?

Durante muito tempo, na historiografia soviética, destacava-se o papel chave dos bolcheviques e do proletariado. Porém, não se pode dizer que foi decisivo o papel de sua propaganda nos eventos de Fevereiro de 1917.

Alguns especulam que a actividade do líder do partido opositor “A União de 17 de Outubro”, Aleksandr Guchkov, influenciou drasticamente o desenlace.

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E outros países?

A questão da participação dos Estados Unidos, Alemanha e outros países é mais relevante para a Revolução de Outubro, a Guerra Civil e a intervenção do Ocidente.

Antes deles, los interesses de outros Estados estavam conectados com a participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial.

É de sobra conhecido que, na Rússia, operavam espiões britânicos, enquanto que, desde 1907, a Alemanha financiava, em parte, a actividade do futuro Partido Bolchevique.

Quando se entendeu que la Revolução terminou?

Depois da vitória do levantamento em Petrogrado, o novo poder estabeleceu-se nos “governos” (Governos Gerais) russos por telégrafo. Até ao final de Março, o processo terminou, na maioria dos lugares, de forma pacífica. Porém, durante o próprio levantamento na capital e nos meses seguintes, morreram mais de 1.500 pessoas.

 

Tradução minha, daqui:

https://actualidad.rt.com/actualidad/232143-derrumbarse-imperio-ruso-revolucion?

 

 

 

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Domingo, 5 de Fevereiro de 2017

DÉCIMO MANDAMENTO

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PABLO PICASSO, "O Mendigo e a Criança"

O mendigo devorava uma costeleta, sentado nos degraus da igreja, e tinha em frente um chapéu, à espera das esmolas. Reparou nele porque parecia ter um ar quase normal, se não fosse a sujidade, a barba de muitos dias e o mau estado da roupa.

Não era novo nem velho, mas quando ele tornou a abrir a boca viu que tinha dentes podres e lhe faltavam alguns, logo na frente. No entanto, dava grandes dentadas no pedaço de carne que segurava numa das mãos, e de vez em quando um pedaço de pão que segurava na outra. Mastigava com vontade e dava outra dentada, inclinando um pouco a cabeça, como os cães costumam fazer quando procuram a melhor posição para cravar os dentes.

Certamente a costeleta era suculenta e saborosa, porque ele lambia os beiços, que por vezes limpava à manga e às costas da mão. A certa altura parou, pousou a costeleta e o pedaço de pão dentro do chapéu e tirou do bolso uma lata de cerveja. Abriu-a fazendo estalar a tampa e bebeu um grande trago, e depois outro e outro. Arrotou e recomeçou as dentadas, até não restar quase nenhuma carne.

Agora já não devorava: roía devagar, entreabrindo os dentes, e ajudava com a língua e os beiços a puxar os últimos pedaços, agarrados ao osso. Era uma operação mais demorada, mas visivelmente ainda prazerosa. Só depois de chupar e lamber o osso voltou ao pão, em que recomeçou a dar dentadas, bebendo de cada vez um gole de cerveja, como um animal buscando uma recompensa.

Quando acabou, atirou fora o osso e a lata, que galgou metade da rua, batendo com estrépito nas pedras da calçada. Enroscou-se depois sobre si próprio e deitou-se no degrau, como um cão a preparar-se para dormir ao sol. Porque havia sol e, apesar da hora matinal, o ar não estava frio.

Ou talvez estivesse, afinal, porque o homem tirou um gorro do bolso e o enfiou na cabeça, depois de levantar e puxar para si a gola do casaco.

Foi nessa altura que o homem que o olhava saiu do carro e entrou na igreja, passando ao lado do mendigo. Era sempre assim, por uma ida à igreja, que começava o seu dia.

Só que muito raramente, como naquela manhã, era ele próprio a conduzir o carro. Aliás poucas vezes utilizava o carro para chegar ao trabalho, já que tinha um helicóptero privado, que em escassos minutos o levava do prédio onde morava ao edifício do Banco. Descia então no elevador até à rua e entrava numa igreja ao lado.

Naquela manhã, no entanto, apetecera-lhe fazer o trajecto com vagar, reflectindo nos assuntos que o preocupavam. As coisas estavam a correr mal, eram necessárias medidas drásticas e urgentes. Mais do que nunca precisava da ajuda divina, de um sinal, uma inspiração. Deus sabia que ele cumpria o seu dever como podia e, num mar de dificuldades, ia mantendo o Banco a navegar. Pertencia com bravura à elite que dominava a sociedade, segurando-a pela cabeça. Se a cabeça da sociedade estivesse a salvo, também o resto do corpo social sobrevivia.

Com a ajuda de Deus, a cabeça da sociedade ia salvar-se. Todas as noites rezava, de joelhos, por essa única intenção, que continha em si todas as outras. Só depois se despia, devagar, e, como autorizara o seu capelão e confessor, retirava o cilício do seu corpo humilde.

Desde a juventude se mantivera casto, só no estrito cumprimento dos deveres matrimoniais fornicara e unicamente para gerar os filhos que um dia estariam lá, no seu lugar, servindo a Deus, segundo a sua doutrina e a sua lei.

Ajoelhado na igreja, com a cabeça entre as mãos, o homem pensava nessas coisas, e nas muitas outras que o preocupavam. Sentia-se esmagado de responsabilidade e, sem dar conta, começou a chorar baixinho. Ao Bancos eram os alicerces, se falissem a sociedade ruía. E ele sentia uma tempestade, um terramoto que se aproximava, sub-repticiamente.

Um medo sem precedentes invadiu-o e transformou-se em pavor. Todo ele tremia, suplicando a Deus que viesse em seu auxílio. Mas a igreja estava escura, envolta em sombra, silenciosa. E vazia.

Só lá em cima, diante do altar do Santíssimo, cintilava frouxamente uma lamparina. Que não resistiria ao menor sopro do vento.

Sentiu-se abandonado, como Cristo no Monte das Oliveiras, antes de beber o cálice que Deus não veio afastar da sua boca.

A boca do homem arfava agora com ruído, como se o ar lhe faltasse, mesmo o chão onde se mantinha ajoelhado.

Chorava desabaladamente e gemia. Acabava de pecar com gravidade. Tivera a presunção de se comparar a Cristo e pecara também por desespero, duvidando que Deus o socorresse, que estivesse ali e o ouvisse.

Nessa noite fustigaria as costas com mais violência, com o chicote com pedaços de metal nas pontas. Pensou na força com que sangraria, e que o seu sangue impuro derramado talvez pudesse redimi-lo de se ter comparado a Jesus, o do sangue sem mácula, no horto das oliveiras.

Mas não parou de chorar, apesar de sentir o alívio do arrependimento e uma espécie de torpor que o invadia.

As suas lágrimas pareciam provir agora, inexplicável e confusamente, do mendigo que vira comer com gula, do pecado de ter tido inveja de o ver comer daquele modo bruto, daquele prazer animal de cravar os dentes no pedaço de carne, devorando-o com voracidade até ao osso.

Sentia, de um modo absurdo, que o mendigo o ofendia só por existir e sobretudo por comer assim. Como se o naco de carne e o acto de comê-la fossem uma agressão e um roubo contra ele próprio, contra o mundo que ele representava e defendia.

Esse mundo que começava a tremer e ameaçava ruir.

Talvez estivesse a enlouquecer, pensou, e o seu entendimento das coisas vacilasse, por excesso de stress e de aflição.

Levantou os olhos para a lamparina do altar-mor e pediu a Deus que o iluminasse, lhe apontasse um caminho.

E então, de repente, a salvação surgiu-lhe.

Viu-se no brilhante papel de benemérito a assinar um compromisso de serviços gratuitos aos mendigos: distribuição ilimitada de pão, vinho e carne, tratamento nas clínicas geridas pelo Banco, garantia de todos os encargos com a sua cremação ou enterro.

A abundância de comida pouco variada mantê-los-ia fartos e gordos, mas não saudáveis, por um tempo relativamente curto. E, vivos ou mortos, os seus corpos tornavam-se um manancial de lucro, desde recolha de sangue a venda de órgãos, campo livre para testar novas substâncias, para já não falar do que, como a gordura, poderia ser aproveitado no campo da cosmética. Bastava saber como fazer as coisas, mas nisso ele era perito e tinha uma enorme rede a colaborar com ele.

Claro que toda essa parte seria omissa no que viria a público e permaneceria insuspeitada em tudo o que ele dissesse e assinasse, com pompa e circunstância, com as autoridades governamentais.

Meu Senhor e meu Deus, eu Vos dou graças. Aleluia, aleluia, o Vosso humilde servo foi ouvido.

Levantou-se depressa e viu as horas – ia chegar tarde à reunião, Jesus, como se atrasara.

Benzeu-se e curvou-se diante do altar, numa reverência profunda e agradecida.

Sobretudo agradecida, meu Deus, como se sentia grato, pensou descendo a correr os degraus e batendo a porta do carro, depois de passar, sem sequer o ver, ao lado do mendigo.

TEOLINDA GERSÃO, “Prantos, amores e outros desvarios

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Quarta-feira, 18 de Janeiro de 2017

CRISE TRAZ CUNHALISMO DE VOLTA

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PCP regressa às origens e recentra discurso na defesa do patriotismo

Ana Paula Correia

apc@jn.pt

 

A crise e a troika trouxeram de volta ao PCP o reforço do discurso do patriotismo, num regresso às origens e ao “cunhalismo”. Uma orientação que coincide com o centenário de Álvaro Cunhal, que hoje se comemora.

Historiadores e antigos dirigentes ouvidos pelo JN convergem na ideia de que a situação de dependência em que se encontra o país é o terreno fértil para que a actual direcção do PCP aproveite o centenário do líder histórico para “voltar às origens” e consolidar a identidade partidária.

É nesse contexto que o discurso político comunista se recentrou na defesa do patriotismo, ilustrada no slogan “Por uma política patriótica e de Esquerda”.

O historiador José Neves, antigo militante do PCP, sublinha que foi essa linha de identidade nacional que “Cunhal garantiu a resistência do partido à queda da União Soviética e é com a mesma orientação que Jerónimo tenta polarizar à Esquerda, num quadro de intervenção externa no país”.

Se é verdade que “o patriotismo teve sempre uma presença no partido com ou sem Cunhal”, como lembra Octávio Teixeira, antigo líder parlamentar no consulado de Carlos Carvalhas, a conjuntura era outra. É que não era preciso cerrar fileiras contra a agressão externa”.

 

DIRIGENTES //CUNHALISTAS

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Também Carlos Brito, o histórico dirigente que se afastou do partido em 2002, considera que esta aproximação pública ao “cunhalismo” por parte da direcção de Jerónimo é circunstancial. Brito não subscreve a tese de que há um regresso ao legado ideológico de Cunhal. Pelo contrário, lamenta que “não se retire o melhor do pensamento” do líder histórico, o que “reflecte um vazio ideológico”. E acusa os dirigentes de usarem “de forma incompleta e fora do contexto” alguns pensamentos de Cunhal. Ou seja, “num culto da personalidade usado para capitalizar o descontentamento nacional pela crise e a ingerência da troika”.

Na mesma linha de pensamento, o historiador João Madeira, que já militou no PCP, duvida que a aproximação a Cunhal seja ideológica. “É instrumental numa tentativa de consolidação da identidade partidária para polarizar o descontentamento em relação à crise”.

A ideia de que há culto da personalidade na comemoração do centenário de Cunhal é rejeitada por Manuel Loff, historiador próximo do PCP, que assume, no entanto, existir “estratégia e empenho particular na gestão da comemoração” como forma de “reforçar a identidade do partido”.

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O rapaz sem medo que sempre quis ser comunista

Uma das inúmeras palestras que Álvaro Cunhal deu em universidades e escolas nos anos 1990, foi perturbada por uma ameaça de bomba. Encarou a provocação com um sorriso quase displicente.

“Nunca tive medo. Essa é a palavra que não vejo que me possa ser aplicada”, diria num colóquio, em 1997.

Que poderia temer, ao cabo de tantos anos de vida, décadas de exílio e clandestinidade, 12 anos de prisão – oito em isolamento – três prisões e torturas?

Nascido em Coimbra a 10 de Novembro de 1913, Álvaro Cunhal – cujo centenário o Partido Comunismo Português (PCP) assinala hoje com um Comício no Campo Pequeno, em Lisboa – enfrentou o risco desde muito cedo.

Aderindo ao PCP aos 17 anos, através da Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas, da qual será secretário-geral em 1935, apresenta neste ano, no Senado da Universidade de Lisboa (em cuja Faculdade de Direito entrara em 31), uma proposta para a extinção da organização fascista Acção Escolar Vanguarda. E é delegado ao VI Congresso da Internacional Comunista Juvenil, em Moscovo.

Em 1936, vai a Espanha tratar da libertação de camaradas presos em Cáceres e envolve-se durante meses na resistência ao levantamento franquista. No regresso clandestino, com apenas 23 anos, é preso e torturado. Libertado em 1938, é forçado, no ano seguinte, a cumprir o serviço militar na Companhia Correccional de Penamacor.

Preso novamente em 1940, prepara a tese de licenciatura na Penitenciária de Lisboa, mas recusa defendê-la noutro local que não seja a sua faculdade. Embora comprometidos com o regime, professores como Marcelo Caetano aprovam com 16 valores a tese sobre o aborto.

A partir daqui, o trabalho político intensifica-se. Mergulha na clandestinidade e participa activamente na organização do PCP, especialmente no Norte do país, a partir de 1942. Mas a organização sofre um rude golpe, com a captura de Cunhal, Militão Ribeiro e outros quadros, em assaltos da PIDE a casas clandestinas do partido em 1949.

Julgado em 2 e 9 de Maio de 1950, faz a sua própria defesa e reverte o libelo: “o nosso povo pensa que, se alguém deve ser julgado (…), que se sentem os fascistas no banco dos réus”.

Na prisão, que cumpre na Penitenciária de Lisboa, até 1956, e no forte de Peniche, sofre o isolamento durante oito anos, tratamentos médicos insuficientes e alimentação deficiente. Mas resiste. Estuda, reflecte, escreve, pinta e prepara meticulosamente a fuga com outros camaradas. A 3 de Janeiro de 1960, dez quadros do PCP realizam a mais espectacular e humilhante evasão.

Álvaro Cunhal e outros quadros vivem clandestinamente no país até 1961, mas acaba por exilar-se para dirigir o partido a partir do exterior, embora tivesse regressado secretamente várias vezes.

A 30 de Abril de 1974, é recebido em festa por milhares de pessoas no aeroporto de Lisboa. Na sua primeira alocução, saudou “todos aqueles que sofreram perseguições”.

Morreu a 13 de Junho de 2005, comunista como sempre quisera ser. ALFREDO MAIA

 

UMA CARTA DA PRISÃO

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A Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto vai lançar o livro “Cunhal/Cem Anos/100 palavras”.

Com pequenos textos sobre palavras-chave, abre com uma carta inédita do dirigente e intelectual comunista ao pai e à irmã Eugénia. Oferecida ao investigador Victor Pinho e pertencendo ao espólio da Biblioteca de Barcelos, o documento, datado de 23 de Agosto de 1951, na Penitenciária de Lisboa, é uma singular carta familiar de prisão. Num registo carinhoso, alude às preocupações de saúde. Mas a menção ao incómodo do vento “soprando do Norte” pode referir-se à arriscada candidatura de Ruy Luís Gomes à Presidência e à violenta repressão da PIDE sobre ela.

Partilhando elementos dos estudos sobre questões agrárias, a pretexto de uma pretensa visita da família à feira de Barcelos, alerta: “Conheço essa boniteza pitoresca de bilhete postal (…) Mas sei também que esse Minho é o Minho dos caseiros e dos terços e dos `quintos’ e das hipotecas”, explorados pelos grandes proprietários. A.M.

 

[ESCRITOR E PINTOR]

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 Manuel Tiago

Seguiu o exemplo do pai muito para lá da faceta de resistente ao fascismo. Tal como Avelino da Costa Cunhal, licenciou-se em Direito e destacou-se nas Artes, principalmente como escritor e sob o pseudónimo de Manuel Tiago (só revelado em 1994).

Publicadas após o 25 de Abril, são obras marcantes o romance “Até Amanhã, Camaradas”, em grande parte escrito na prisão de Peniche e, agora, recuperado por Joaquim Leitão para o cinema (depois da série televisiva, em 2005), e a novela “Cinco Dias, Cinco Noites”, que José Fonseca e Costa adaptou para o cinema em 1996. São ainda da sua autoria o romance “A Estrela de Seis Pontas” e a colectânea de contos “Fronteiras”.

Tradução do “Rei Lear”

Data de 1962 a primeira publicação da tradução que fez da tragédia “Rei Lear”.

Incluída nas “Obras de Shakespeare”, edição da Tipografia Scarpa, a tradução não foi, naquela época, atribuída ao histórico do PCP. Realizado entre 1954 e 1955, quando estava preso em Lisboa, o trabalho foi publicado como sendo de Maria Manuela Serpa. O nome de Cunhal seria assumido muito mais tarde. 

“Desenhos de prisão”

Carvão e grafite sobre papel foram os materiais que usou nos “Desenhos da prisão”, publicados sob esse título em 1975 e executados entre 1951 e 1959, em reclusão. O povo é o tema dominante, mas, quando se trata de figuras individuais, a mulher é quase sempre a protagonista. Estes desenhos inserem-se na estética neo-realista, na linha da capa que fez para a primeira edição de “Esteiros” (1941), de Soeiro Pereira Gomes. ISABEL PEIXOTO

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Anúncio do JN ajudou a denunciar prisão

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A CIDADE recebeu apoteoticamente o secretário-geral do Partido Comunista Português”. É assim que começa a reportagem do “Jornal de Notícias” sobre a deslocação de Álvaro Cunhal ao Porto, em 22 de Junho de 1974, contabilizando “muitos milhares de pessoas” na Praça do Município e no comício do Palácio de Cristal.

Era a primeira vez que estava no Porto em liberdade e às claras. Noutras, estivera clandestino, em trabalho partidário no Porto e no Norte, desde 1942. Ou trazido às ocultas pela PIDE, com Militão Ribeiro e Sofia Ferreira, para os calabouços da Rua do Heroísmo, depois da sua prisão numa casa clandestina no Luso (25 de Março de 1949). O paradeiro do Porto foi dado a conhecer à família – via JN e “O Primeiro de Janeiro” – através de um hábil estratagema dos antifascistas Virgínia Moura e Lobão Vital.

Num anúncio pago, inserido no dia 30, fizeram constar que o advogado “Álvaro Cunhal Duarte” (Duarte fora um pseudónimo da clandestinidade) agradece aos amigos “os cuidados que têm manifestado pelo seu estado”.

De imediato, o pai, Avelino Cunhal, põe-se a caminho do Porto e a polícia política acaba por deixar de poder ocultar a prisão, fazendo publicar uma nota sobre a detenção daqueles quadros (JN, 31/4/1949). Aqui foi sujeito a interrogatório sob tortura, mas resistiu e nada revelou, pelo que foi levado durante o mês de Abril seguinte para a Penitenciária de Lisboa. Voltaria ao Porto clandestinamente e teria vivido aqui entre Fevereiro e Maio de 1961.

 

AFÁVEL e ouvinte atento, arguto na análise política

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ERA UM HOMEM de um relacionamento absolutamente fácil – afável e amável. Estava atento aos problemas pessoais dos quadros e de toda a gente” e de “grande argúcia política”. É assim que Agostinho Lopes, quadro comunista do Norte, que trabalhou nos órgãos centrais com Álvaro Cunhal, recorda o líder, com quem se encontrou pela primeira vez no final de 1974.

Desmobilizado do Exército, onde o 25 de Abril o encontrara como alferes-miliciano, este engenheiro e já militante do PCP, Lopes é destacado para a Direcção da Organização Regional do Norte, onde fica responsável pela área da agricultura – uma das predilectas de Cunhal, nota.

Surpreendido com a extensão e a densidade dos dados estatísticos do estudo “Contribuições para o Estudo da Questão Agrária”, elaborado na prisão, destaca a contribuição da obra para a visibilidade de problemas como a dimensão e posse da propriedade e as condições dos camponeses.

O primeiro contacto com Álvaro Cunhal ocorre em 29 de Dezembro, na 1ª Conferência dos Camponeses do Norte. E prossegue nas reuniões regulares da comissão de agricultura junto ao Comité Central, nas quais Cunhal participa. “Tinha uma extraordinária capacidade para ouvir e ouvia com paciência e humildade as informações de todo o país.”

O momento mais “empolgante” partilhado foi a campanha eleitoral de 1987, na qual Lopes era cabeça de lista em Vila Real. A caravana na região foi bem recebida e o comício encheu. “Foram momentos de grande exaltação”. Mas “os resultados não corresponderam”: Cavaco Silva teve a primeira maioria absoluta.

Eleito para a Comissão Política (1990), Agostinho Lopes viveu os momentos de “tensão e muito grande preocupação com as rupturas na União Soviética”. Cunhal desenvolveu “um grande esforço de racionalização na compreensão dos acontecimentos”, especialmente o desmoronamento do Bloco Socialista e os efeitos na alteração na correlação de forças. A.M.

 

Evocação da DORF

Ontem, no âmbito das comemorações do centenário do ex-secretário-geral do PCP, a Direcção da Organização Regional do Porto do PCP promoveu, no Salão do Clube dos Fenianos Portuenses, uma sessão evocativa do contributo de Cunhal para a luta dos trabalhadores já depois do 25 de Abril. A sessão incluiu a exibição de um filme alusivo às visitas de Cunhal ao Norte entre 1974 e 1984. “Nos momentos mais difíceis vividos sobre a tirania fascista, o Porto deu elevadas provas da sua fidelidade aos ideais democráticos de combatividade, da sua inabalável confiança no futuro”, afirmou Cunhal em 1974.

O líder comunista voltou várias vezes, já como membro do Primeiro Governo Provisório, para comícios, congressos e para a primeira Festa da Alegria, em Braga.

Em Abril de 1976, reforçou a importância da defesa da Constituição Portuguesa. “Representa uma grande vitória dos trabalhadores porque, com a sua luta, levaram a cabo e tornaram irreversíveis transformações profundas das estruturas económicas e sociais”.

A 25 de Março de 1977, desmascarou a “política de recuperação capitalista” de Mário Soares, cujo governo cairia oito dias depois.

ALFREDO MAIA e HELENA TEIXEIRA SILVA 

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Quarta-feira, 28 de Setembro de 2016

O CÓDIGO SECRETO DA CAPELA SISTINA

Enquanto os Papas rejubilavam com os frescos do tecto, Miguel Ângelo ocultava, na Capela Sistina, críticas à decadência da Igreja. Um legado pouco católico do mestre renascentista, agora recordado a propósito dos quinhentos anos da jóia do Vaticano

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A ideia que Miguel Ângelo tinha de si mesmo como artista não coincidia com os planos que Júlio II tinha para o mestre renascentista. Queria, o Papa que o tecto da Capela Sistina, no Vaticano, se tornasse um gigantesco fresco retratando a criação de Adão e Eva, Noé e o Dilúvio, Deus a formar o Mundo, e outras cenas bíblicas que reforçassem o prestígio da Santa Igreja junto dos fiéis. Miguel Ângelo que se considerava escultor e não pintor, criou a obra-prima que fez o mundo aloelhar de devoção, mas aproveitou para se vingar com elegância: muitos dos conteúdos dos frescos, codificados para iludirem a vigilância do pontífice e pouparem o artista à morte, revelaram ser mensagens esotéricas e críticas veladas à decadência da Igreja. Só isso explica que o Vaticano não festeje com pompa os quinhentos anos desta obra, visitada anualmente por quatro milhões de turistas.

O projecto de construção da Capela Sistina, à imagem do lendário Templo de Salomão, em Jerusalém, descrito pelo profeta Samuel no Livro dos Reis, foi encomendado em 1475 pelo papa Sisto IV, que lhe deu o nome. Porém, só entre 1508 e 1512, sob as ordens de Júlio II (sobrinho de Sisto), é que Miguel Ângelo concebeu as famosas pinturas narrando a história da Criação, num processo crivado de animosidade entre o artista solitário e um Papa impaciente em ver o trabalho concluído. Em pouco tempo, Miguel Ângelo dispensou todos os ajudantes que o serviam, ao perceber que o melhor trabalho de que eram capazes não satisfazia o seu grau de exigência. Devido ao cansaço, retenção de líquidos, pedras nos rins e problemas respiratórios, tanto contorceu o corpo nos andaimes que ganhou reumatismo e escoliose. A vista ficou-lhe turva, das gotas de tinta que caíam do tecto e da minúcia dos pormenores, mas o mestre não desarmava.

"Quando estará pronta a minha capela?" perguntava invariavelmente Júlio II, o Terrível, ameaçando substituir Miguel Ângelo caso não desse conta do recado. "Quando eu puder", era a resposta do artista, a braços com falta de paciência, dificuldades financeiras, problemas de saúde e aquelas quase trezentas figuras descomunais que o consumiam - mas que resultaram tão perfeitas quando as terminou que mais pareciam esculpidas em mármore de Carrara. A sibila Líbia foi uma delas, erguendo na mão a tocha que ilumina o mundo e profetizando sobre Cristo. Ninguém pareceu reparar que ela também se tornou famosa ao prever a chegada do dia "em que todo o oculto será revelado, sugerindo que o autor pintou a sonhar com o tempo em que o seu código seria revelado ao mundo.

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Mais tarde, Miguel Ângelo diria que a boa pintura se aproxima de Deus. "Não é mais do que uma cópia das suas perfeições, uma sombra do seu pincel, a sua música." Já nada podia apagar o código secreto ocultado nas imagens que representam a criação do Universo, sete episódios do Génesis, cinco sibilas(que teriam anunciado a vinda de Cristo), sete profetas, a embriaguez de Noé e façanhas heróicas do povo de Israel, incluindo Judite matando Holofernes, David vencendo Golias e Ester denunciando as perseguições de Amã aos judeus. O Papa rejubilava ao olhar os frescos. Estava longe de imaginar que o artista usara o seu humor rebelde para criticar a decadência da Igreja, passar mensagens esotéricas a quem as soubesse interpretar e declarar a sua admiração pelo povo judeu, o Talmude e a Cabala.

Foi isto mesmo que descobriram, alguns séculos mais tarde, os especialistas em judaísmo Roy Doliner e Benjamin Blech, confirmando no livro Os Segredos da Capela Sistina, As Mensagens Proibidas de Miguel Ângelo no coração do Vaticano (ed. Casa das Letras): "Às vezes, ele usava códigos ou alusões simbólicas que eram parcialmente escondidas, por vezes sinais que só poderiam ser entendidos por certos grupos religiosos, políticos e esotéricos. São mensagens que ecoam, nos dias de hoje, com o seu apelo corajoso para a reconciliação entre a razão e a fé, a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento, e entre todos os que se irmanam na busca sincera pela fé verdadeira e no serviço de Deus."

Mas nem só os frescos de Miguel Ângelo guardaram mensagens ocultas durante mais de cinco séculos. Segundo exames complexos realizados recentemente pelo Museu Britânico, recorrendo a tecnologia de ponta, vários esboços de Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio, Andrea Mantegna e do próprio Miguel Ângelo revelaram que os grandes nomes da Renascença eram recorrentes na arte da ocultação. Uma Virgem Maria de Leonardo deixa antever, por baixo, rascunhos de um gato e um menino Jesus. Um desenho da Viegem com o Menino, da autoria de Mantegna, revela, numa camada inferior, traços de uma mulher rodeada por dois querubins que, entretanto, acabaram apagados pelo artista. Miguel Ângelo modelou a sua Madona de Bruges, uma escultura exemplar da Virgem com o Menino, sobre o desenho de um torso que começou por ser, inegavelmente, masculino.

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"Através destes desenhos é possível ligarmo-nos àqueles momentos criativos, como se espreitássemos por cima do ombro dos artistas", disse Hugo Chapman, curador dos esboços italianos no Museu Britânico, em declarações à Imprensa. "Teríamos de ter estado com eles no estúdio para ver aqueles desenhos em particular. Isto é como uma máquina do tempo.", congratula-se o perito, deslumbrado com o modo como os traços profundos desvendam o ensaio das poses, da anatomia e do movimentos finais das grandes obras. No caso da Capela Sistina, a subversão de Miguel Ângelo está lá para quem quiser vê-la. Nunca a expressão "O essencial é invisível aos olhos" teve tanto significado.


 

Texto: Ana Pago

Fotografias: CORBIS
Notícias Magazine

 

 

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Quarta-feira, 15 de Junho de 2016

O VOO MELANCÓLICO DO MELRO

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(O verdadeiro osso das coisas)

Posso dizer que foi um ano branco, aquele. Redigida a Carta Constitucional, o país auscultado com o estetoscópio da democracia parlamentar. Henrique esfumava-se sob um álamo, a cinza devolvia a política aos altares naturais.Só falava quem tinha pergaminhos ou quem não tinha vergonha de tropeçar na sua ignorância. Nos anos de brasa podia-se mostrar a ignorância sem vergonha. A ignorância era uma medalha da opressão. Os doutores ouviam os ignorantes e apreciavam a sabedoria da ignorância. Mas a cinza repôs o pêndulo da História e os néscios voltaram a ter vergonha. O país ficou ponderado. No fundo, o país não queria falar tanto, só queria ouvir quem tivesse o mérito da fala, apreciar a oratória televisiva. Tornou-se um país de cidadãos sentados com a faca numa mão e o queijo na outra. O queijo era o sorriso do político e a faca o voto do eleitor. Aceitaram-se os patrões e os capatazes como inevitabilidade da vida, eram as cigarras da economia. Eu estava numa posição de privilégio para o dizer porque era patrão e empregado ao mesmo tempo, tinha dado dois dias de salário à nação no tempo do Vasco Gonçalves, um como empregado e outro como patrão. Descobriram-se curvas desconhecidas na nossa língua. Foi tempo da Sónia Braga e do doutor Mundinho. Cinema indiano, introspecção, melodrama, frigoríficos, televisores.

[...]

O amor, soube-o ali, não precisava de palavras de legendar filmes. E antes que nada mais restasse do que uma narrativa inútil, juntei as minhas bagas de trovisco às do padre Rubim e transformámos os Melros numa associação cultural com teatro, biblioteca, desporto, escola de música. Tal como a utopia nos tinha ensinado. E utopia pareceu-me uma palavra justa para definir um sonho amplo no céu coberto pela cinza dos dias.

CARLOS TÊ, O Voo Melancólico do Melro

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publicado por Elisabete às 20:39
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Segunda-feira, 18 de Abril de 2016

Explicação do "Impeachment" num minuto...

EXPLICAÇÃO DO  IMPEACHMENT

NUM MINUTO

 

ESTADOS UNIDOS+URSS

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ESTADOS UNIDOS

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BRICs

BRASIL+RÚSSIA+ÍNDIA+CHINA+ÁFRICA DO SUL

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Terça-feira, 5 de Abril de 2016

CAMILLE CLAUDEL

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 Com 20 anos em 1884

 

CAMILLE CLAUDEL (Camille Athanaïse Cécile Cerveaux Prosper) foi uma escultora talentosa, nascida em Aisne (França), a 8 de Dezembro de 1864. Foi aprendiz de Rodin, com quem manteve um relacionamento tumultuoso. A separação dos dois, provoca-lhe um grande sofrimento. Camille começa a ter alucinações, cada vez mais frequentes e, em 1913, é internada num manicómio.

Morreu depois de 30 anos de internamento, com 79 anos, em Paris,  a 19 de Outubro de 1943 Camille era filha de Louis Prosper, hipotecário, e Louise Athanaïse Cécile Cerveaux. Passou toda sua infância em Villeneuve-sur-Fère, morando num presbitério que seu avô materno, o doutor Athanaïse Cerveaux, havia adquirido. Foi a primeira filha do casal, sendo quatro anos mais velha que Paul Claudel. Ela impõe a sua forte personalidade ao irmão e à sua irmã mais nova, Louise. Comandava os dois desde pequena. Segundo Paul, ela manifestou desde cedo o seu desejo de ser escultora. Camille tinha algumas premonições e previu também que o irmão se tornaria escritor e que a irmã seria musicista.

 

Período criativo

Seu pai, maravilhado com o seu grande e precoce talento que produziu, ainda na infância, esculturas de ossos e esqueletos com impressionante verossimilhança, dá-lhe todos os meios para desenvolver as suas potencialidades, colocando-a em escolas e cursos de primeira qualidade. A mãe, por outro lado, não vê isso com bons olhos, colocando-se sempre contra e reagindo, muitas vezes, violentamente no sentido de reprovar a filha pelos incómodos e custos da manutenção do seu "capricho". Camille, que sonha ser uma grande escultora, sente-se ameaçada pela mãe, por não aprovar os elevados gastos com a sua educação.

Em 1881, com 17 anos, sai de casa para ir em busca do seu grande sonho. Parte para Paris e ingressa na Academia Colarossi, uma escola para escultores. Teve por mestre, de início, Alfred Boucher e, depois, Auguste Rodin. É desta época que datam as suas primeiras obras conhecidas: La Vieille Hélène ou Paul à Treize Ans.

Rodin, impressionado pela solidez e beleza de seu trabalho, admite-a como aprendiz no seu atelier, na rua da Universidade em 1885. É então que colabora na execução de Les Portes de l'Enfer e do monumento Les Bourgeois de Calais.

Tendo deixado a família por amor à escultura, trabalha vários anos ao serviço de seu mestre e mantem-se à custa de sua própria criação, pois ganha salário como aprendiz. Por vezes, a obra de um e de outro são tão próximas que não se sabe qual é a do professor ou da aluna. Às vezes, confunde-se quem inspirou um ou copiou o outro, tal é a qualidade do trabalho de Camille. As esculturas dos dois são muito idênticas e isso aproxima os dois.

O tempo passa e Camille e Rodin envolvem-se e têm um caso ardente de amor. Porém, Camille Claudel enfrenta muito rapidamente duas grandes dificuldades: por um lado, Rodin não consegue decidir-se a deixar Rose Beuret, a sua namorada dos anos difíceis do princípio; por outro lado, alguns insinuam que as suas obras eram executadas pelo próprio mestre. Triste e depressiva pelas acusações e por Rodin ainda ter outra mulher, Camille tentará distanciar-se de Rodin e fazer suas obras longe dele. Percebe-se muito claramente essa tentativa de autonomia na sua obra (1880-94), tanto na escolha dos temas como no tratamento: La Valse ou La Petite Châtelaine. Esse distanciamento leva ao rompimento definitivo, em 1898. A ruptura é marcada e contada pela famosa obra: L’Age Mûr.

Ferida e desorientada, Camille Claudel passa a nutrir por Rodin um estranho amor-ódio que a levará à paranóia e à loucura. Instala-se então no número 19 do hotel Quai Bourbon e continua a sua busca artística em grande solidão, pois ama loucamente Rodin e, ao mesmo tempo, odeia-o por ele a ter abandonado. Apesar do apoio de críticos como Octave Mirbeau, Mathias Morhardt, Louis Vauxcelles e do fundidor Eugène Blot, seus amigos, ela não consegue superar a dor da saudade. Eugène Blot organiza duas grandes exposições, esperando que o reconhecimento seja benéfico, a nível sentimental e financeiro, para Camille Claudel, que ele quer ajudar. As exposições têm grande sucesso de crítica, mas Camille já está doente demais para se reconfortar com os elogios. Fica estranha e obsessiva, desejando a morte de Rodin. Recorda o passado, a oposição da mãe à sua carreira. As lembranças ruins passam a sufocá-la cada vez mais.

 

Doença

Depois de1905, os períodos paranóicos de Camille multiplicam-se e acentuam-se. Ela acredita nos seus delírios. Nos seus sonhos doentes, ela acredita que Rodin roubará as suas obras de arte para moldá-las e expô-las como suas, ou seja, acha que Rodin roubará as suas esculturas e que dirá que foi ele quem as fez. Passa a achar que o inspector do Ministério das Belas-Artes está em conluio com Rodin, e que desconhecidos querem entrar em sua casa para roubar as suas obras. Nesta fase, fala sozinha e chegou à esquizofrenia. Chora muito, e pensa em suicídio. Camille cria histórias imaginárias que aceita como pura verdade. As suas crises de loucura aumentam, vive num grande abatimento físico e psicológico, não se alimentando e desconfiando de todas as pessoas, achando que todos a matarão. Isola-se e, como mora sozinha no hotel, ninguém sabe da sua condição, pois rompe a amizade com os amigos e passa a viver sozinha no seu quarto. Mantém-se vendendo as poucas obras que ainda lhe restam.

O pai, seu porto-seguro e única pessoa que a entendeu, morre em 3 de Março de 1913, o que piora a depressão e a faz sair, ainda mais, da realidade. Entra numa crise violenta, partindo tudo e gritando. Em 10 de Março, é internada no manicómio de Ville-Evrard. A eclosão da Primeira Guerra Mundial faz com que seja transferida para Villeneuve-lès-Avignon onde morre, após trinta anos de internamento e desespero, passando todo esse tempo amarrada e sedada. Morreu em 19 de Outubro de 1943, aos 79 anos incompletos.

Acredita-se hoje que Camille tenha sido vítima da Acção T4, no manicómio, como muitos outros durante a ocupação nazi da França. A Acção T4 foi o nome usado após a Primeira Guerra Mundial para o programa de eugenismo e eutanásia da Alemanha nazi, durante o qual médicos assassinaram centenas de pessoas consideradas por eles "incuravelmente doentes, através de exame médico crítico". O programa ocorreu oficialmente de Setembro de 1939 a Agosto de 1941, mas continuou de modo não-oficial até ao fim do regime nazi, em 1945. Claude foi informado da condição "terminal da irmã" em Setembro de 1943, mas não esteve presente nem na morte, nem no funeral de Camille. A sua mãe morreu em 20 de Junho de 1929 e sua irmã nunca viajou até o manicómio para vê-la.

Camille Claudel foi enterrada no cemitério de Monfavet numa vala comum.

 

Do livro Camille Claudel, A Life:

Dez anos após sua morte, os ossos de Camille foram transferidos para uma vala comum, onde foi misturado com os ossos de pessoas mais pobres. Presa ao solo de onde ela tentou fugir por tanto tempo, Camille nunca mais retornou à sua amada Villeneuve. A negligência de Paul com o túmulo de sua irmã é imperdoável... Enquanto Paul decidiu não se sobrecarregar com o túmulo da irmã, ele fez grandes planos para seu local final de descanso, dando um local exacto - em Brangues, sob uma árvore, ao lado de seu neto, e citando cada palavra que estaria na lápide. Hoje, seus fãs prestam homenagens à sua memória em seu túmulo nobre; mas de Camille não há traço sequer. Em Villeneuve, uma placa simples lembra aos visitantes curiosos que Camille Claudel ali viveu, mas seus restos ainda estão no exílio, em algum lugar, alguns passos de distância do lugar que a sequestrou trinta anos antes.

 

TALENTO

Camille Claudel, La Valse, escultura (bronze), 190

Camille Claudel, La Valse, escultura (bronze), 1905

 

A força e a grandiosidade de seu talento estavam na verdade num lugar muito incómodo: entre a figura lendária de Rodin e a de seu irmão que se tornou um dos maiores expoentes da literatura de sua geração. E não é difícil perceber que as questões de género influenciaram esse lugar menor dedicado a Camille.

O seu génio sufocado por dois gigantes, a sua vida sufocada por um abandono, as suas forças e a sua lucidez esgotadas por uma relação umbilical com seu mestre e amante. Uma relação da qual não conseguiu desenvencilhar-se, consumindo a vitalidade na vã tentativa de desembaraçar-se desse destino perverso. Camille Claudel, com a sua forte personalidade, a sua intransigência, o seu génio criativo, ultrapassou a compreensão de sua época e permanecerá ainda e sempre um Sumo Mistério. Ela tinha uma inteligência, um talento fora do comum e poucas pessoas da época entendiam o seu grande dom de verdadeira artista.

publicado por Elisabete às 19:28
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Quinta-feira, 19 de Novembro de 2015

OS PALACETES TORNAM-SE ÚTEIS

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TOMADO DE ASSALTO UM PALACETE DESABITADO


 "A igualdade dos homens começa na igualdade das crianças"Comuna Soldado Luís2.png

Seguindo uma linha de actuação que desde há muito não deixa qualquer tipo de dúvidas, quanto às finalidades a atingir, a LUAR (Liga de União e Acção Revolucionária), ocupou ontem, para o povo, um prédio abandonado da Rua Morgado Mateus, transformando-o de imediato, numa Comuna Infantil Popular, a que deram o nome, por sugestão dos moradores dos bairros da zona, de Soldado Joaquim Luís, o militar assassinado em 11 de Março pelas tropas reaccionárias de Spínola. 

A acção foi programada com a antecedência que uma actuação deste tipo exige. As comissões de bairro da freguesia do Bonfim foram auscultadas. Militantes da organização vinham efectuando desde há dias um levantamento social da zona, chegando à indubitável conclusão de que era necessário instalar um infantário na freguesia. O prédio foi escolhido com a ajuda de moradores, a partir de informações que permitiram a selacção. 

Designado o local, grupos de elementos da LUAR estudaram a parte operacional do "assalto". Foram contactados médicos e enfermeiros. Confirmada a viabilidade da operação, foi escolhido o dia de ontem, à hora 10ª, para o accionar de toda a orgânica do grupo.

Em segundos, o prédio foi tomado.

Tinha sido aumentado o poder das crianças. A miudagem do Bonfim, tinha mais qualquer coisa de seu.

 

CRIAR PODER POPULAR

A LUAR não trabalha de improviso. As acções desenvolvidas são consequência de um profundo estudo operacional de cada segundo dos minutos de actuação e do avaliar consciente das possibilidades de apoio às posições assumidas. A intervenção do grupo começa na consciencialização das bases. Como tal, enquanto o grupo de intervenção tomava a casa de assalto, o grupo de propaganda distribuía pela zona da morada ocupada o seguinte comunicado:

"No dia 16 de Março, pelas 10 horas, foi ocupada pela LUAR e com o apoio imediato e activo da população local, a habitação há muito desocupada, situada na Rua Morgado Mateus, ao Campo 24 de Agosto, ex-sede do Grémio da Indústria de Curtumes.

"O objectivo é transformar esta magnífica casa inútil e ampla num infantário-creche comunal administrado exclusivamente pelos populares. Pretende-se com esta acção lançar as ideias básicas de um Serviço Nacional de Assistência à Criança, ao serviço das massas trabalhadoras mais desfavorecidas e controlado por elas.

"É evidente que acções como esta não terão significado se não se alargarem à população de todo o País, se não assumirem uma forma de poder popular. Para que o povo futuramente ganhe o poder, é necessário para já a nível político e económico haver um controlo efectivo por parte das massas trabalhadoras. É aqui que surge a necessidade dos poderes piopulares, significando isto que, em regime de exploração capitalista, quem comanda o poder não pode servir o povo. 

"É necessário que no local onde vivemos, nos bairros, nas fábricas, nas aldeias, nas cidades, nos locais onde trabalhamos, nos campos e nas empresas, se constituam comissões de moradores, de consumidores, de trabalhadores que, coordenados a nível nacional, procurem constituir uma alternativa ao poder burguês. A luta contra a exploração capitalista vai ser dura e prolongada. Neste momento, para que o plano de "Assistência Nacional à Criança" não morra, é preciso o apoio consciente, profissional e material, de todos quanto queiram lutar por uma sociedade socialista".

 

UM APELO DAS CRIANÇAS

O manifesto termina com um apelo das crianças do Bonfim, S. Lázaro, Campo 24 de Agosto, Fernão de Magalhães, S. Vítor, etc. lançado ao papel pelo punho de um militante da LUAR:

"Apelamos sobretudo para os camaradas dos hospitais, das comissões de trabalhadores dos estabelecimentos de Saúde e Assistência e das empresas ligadas aos ramos médicos e farmacêuticos, dos sindicatos dos médicos, dos enfermeiros, dos assistentes sociais; a todos os particulares que apoiem esta iniciativa popular."

E é obrigatório apoiar esta iniciativa realmente popular. Sem dogmatismos, sem discursos ou corta-fitas, homens do povo, ontem a meio da manhã, mostraram que estão efectiva e incondicionalmente ao serviço do povo. Sem a mira do voto (como se sabe a LUAR não participa nas eleições), sem rótulos liberalizantes, nem com gritos de liberdade, os homens da LUAR agiram como verdadeira força popular, ao serviço do povo, sem histéricas pragmáticas e democracia, sem cognominações de povo ou trabalhadores ou cristãos. Na unidade revolucionária, a LUAR continua a construir o socialismo.

 

"FARTOS DE CONVERSA ESTAMOS NÓS"

O sr. Alberto Correia é subchefe aposentado da P.S.P. Tem 79 anos. Mora na freguesia. Ontem, foi visitar "o prédio dos netos".

- Assim é que é. Olhe, os meus netos é que ficam a lucrar. Não tinham onde brincar, agora passam a vir para aqui. Sabe, eu sou do tempo da 1ª República. Também quando foi do falecido general Humberto Delgado, pus lá o meu voto por ele, mas cortaram-mo. Sou democrata velho. E fartos de conversa estamos nós. Assim é que é..."

Setenta anos mais nova, disse-nos a Margarida do Carmo Sá Azevedo:

- Acho que isto é uma coisa muito boa, e que pensaram em nós. Assim, é dar-nos também o poder.

Edite Manuela, de 7 anos, desenhava uma bonita casa nos painéis postos pela LUAR à disposição das crianças numa das salas do magnífico edifício de 5 pisos:

- O que penso disto é que é bom, porque ficamos com mais coisas.

Com um ano a menos, o Fernando Pedro acha que "é muito bom, porque posso encontrar aqui muitos amigos e é termos uma casa só para nós".

- Havia era de ter sido há mais tempo. - disse-nos o sr. Inácio dos Santos Sobrinho, nascido e criado na freguesia do Bonfim. - Estar uma casa destas aqui abandonada até é uma ofensa para os pobres. Veja lá o senhor que os tipos queriam vendê-la por vinte mil contos. Foi bem feito. As crianças merecem tudo.

 

UMA CASA PARA O POVO

Durante todo o dia de ontem, o edifício foi visitado por centenas de pessoas, dezenas de crianças que foram conhecer a sua nova casa.

- Nós tomámos a casa. Mas para a dar ao povo. Por isso o povo é que irá administrá-la e usufruir da organização médica que começamos a programar - disse-nos um dos responsáveis do núcleo do Norte da LUAR.

Após a actuação do Grupo de Intervenção, secundado por um grupo de Segurança, um grupo procedeu ao inventário das poucas coisas que se encontravam no interior do prédio abandonado. Como já referimos, um outro grupo, o de Propaganda, comunicou à população da zona que a partir daí possuiam uma Comuna Infantil Popular.

Hoje, começam já a funcionar os serviços médicos, através de alguns clínicos simpatizantes da LUAR, e de outros que imediato se solidarizaram com a ideia. Numa segunda fase, que se prevê seja o mais breve possível, a Comuna Infantil Popular será entregue a uma Comissão de Gestão constituída por moradores da zona, retirando-se então os elementos da LUAR, que continuarão, no entanto, activos e organizados, para novas acções de interesse geral. 

Podemos desde já adiantar que está num dos planos futuros da Liga de União e Acção Revolucionária, ocupar uma outra morada para aí instalar uma Comuna de Convívio para Velhos, onde além de um merecido repouso, os mais idosos encontrarão assistência médica e o carinho humano de que tanto precisam.

Mas para a concretização desta ideia e consolidação do projecto ontem iniciado, a LUAR, organização apartidária, progressista e sobretudo revolucionária, espera a ajuda de todos.

Comuna Soldado Luís3.png

 AS CRIANÇAS AGRADECEM:

As crianças da Comuna Infantil Popular agradecem ofertas de cobertores, colchões, brinquedos, material escolar, roupas, medicamentos, livros, géneros alimentícios, móveis e a colaboração de médicos, enfermeiros e assistentes sociais. Todas as ofertas poderão ser entregues na Rua Morgado Mateus, nº 137, ou na sede da LUAR, na Praça Marquês de Pombal.

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publicado por Elisabete às 18:05
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Quarta-feira, 9 de Setembro de 2015

Tudo o que queria era um lugar, um lugar de cinco mil...

A Morte de Ivan Ilitch.JPG

 Ia com um único objectivo: obter um lugar com cinco mil rublos de ordenado. Já não se inclinava para nenhum ministério, orientação ou género de actividade em particular. Tudo o que queria era um lugar, um lugar de cinco mil, fosse na administração, nos bancos, nos caminhos-de-ferro, numa das instituições da imperatriz Maria, ou mesmo na alfândega, mas necessariamente sair de um ministério onde não sabiam apreciá-lo.

E eis que esta viagem de Ivan Ilitch foi coroada de um êxito notável e inesperado. Em Kursk entrou na carruagem de primeira classe um conhecido seu, F. S. Ilin, e informou-o acerca de um telegrama recente recebido pelo governador de Kursk, anunciando que por aqueles dias se daria uma mudança no ministério: iam nomear Ivan Semiónovitch para o lugar de Piotr Ivánovitch.

A possível mudança, além da sua importância para a Rússia, tinha uma importância especial para Ivan Ilitch porque, ao promover um novo homem, Piotr Petróvitch, e evidentemente também o seu amigo Zakhar Ivánovitch, lhe era altamente favorável. Zakhar Ivánovitch era colega e amigo de Ivan Ilitch.

Em Moscovo a notícia foi confirmada. E ao chegar a Petersburgo, Ivan Ilitch encontrou-se com Zakhar Ivánovitch e obteve a promessa de um lugar seguro no seu anterior ministério da Justiça.

Uma semana depois, telegrafou à mulher:

"Zakhar lugar Miller. Obterei lugar ao primeiro relatório."

Graças a essa mudança de pessoas Ivan Ilitch obteve inesperadamente, no seu anterior ministério, uma nomeação pela qual ficava dois graus acima dos seus colegas: cinco mil rublos de ordenado e três mil e quinhentos como subsídio de transferência.

Todo o seu enfado com os anteriores inimigos e com o ministério foi esquecido, e Ivan Ilitch sentiu-se completamente feliz.

Voltou para o campo alegre e satisfeito como há muito não se sentia. Praskóvia Fiódorovna também se alegrou e entre eles estabeleceu-se uma trégua. Ivan Ilitch contou como tinha sido felicitado por todos em Petersburgo, como todos os que tinham sido seus inimigos estavam envergonhados e agora o adulavam, como era invejado pela sua posição e, em especial, como toda a gente em Petersburgo tinha gostado muito dele.

 

LEV TOLSTÓI

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publicado por Elisabete às 11:47
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Segunda-feira, 7 de Setembro de 2015

1974 - DIVÓRCIO JÁ! Exigiam eles e elas

Divórcio.jpg

Em 1974 foram recolhidas cem mil assinaturas a pedir a legalização do divórcio

Por causa da Concordata de 1940, os casamentos católicos eram indissolúveis

 

Num cartaz fotografado pelo Diário de Notícias lê-se "algemas no casamento". Outro anuncia que há "dois milhões de filhos ilegítimos". Com a Revolução de Abril de 1974, um vasto movimento popular a exigir a legalização do divórcio pôs-se em marcha. E uma maciça campanha de recolha de assinaturas foi lançada. Recolheram-se mais de cem mil, mas apenas 51 mil foram entregues no Palácio de Belém ao presidente António de Spínola, segundo a notícia que surge na primeira página de 6 de Junho de 1974. 

Citando membros da comissão que recolheu as assinaturas, o jornal escreveu que "o governo entende de momento não poder resolver este grande problema que os paladinos do movimento pró-divórcio apontam como nº 2 na ordem de prioridades absolutas da nação (o primeiro é, naturalmente, o colonial)". E o DN dava conta ainda da promessa de se manifestarem no Vaticano, a favor da revisão da Concordata de 1940, entre o Estado Novo e a Santa Sé.

Com a implantação da República em 1910, o divórcio tornou-se legal em Portugal (o casamento civil vinha de 1867, durante o reinado de D. Luís). Mas Salazar negociou com o Vaticano um vasto acordo de Estado a Estado que incluía a proibição de divórcio para os casamentos católicos, o que significou décadas de famílias desfeitas e refeitas à margem da lei - e com o tal problema dos filhos ilegítimos. A interdição teve fim em 1975, com a revisão da Concordata, que permitiu de novo aos casados pela Igreja que pedissem o divórcio civil. Depois disso a lei não deixou de se ir liberalizando cada vez mais em Portugal. 

Mas se o divórcio é antigo na civilização (era comum na Grécia Clássica e no Império Romano), ainda hoje não é um direito universal. Além de dificultado, para as mulheres, em muitos países muçulmanos, continua proibido nas Filipinas, o mais populoso país católico da Ásia. E só mais um Estado o interdita: o Vaticano.

 

Notícias Magazine

 

 

 

publicado por Elisabete às 15:29
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Domingo, 6 de Setembro de 2015

Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?

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 Amanhã meto-me no avião e regresso a Tóquio. As férias de Verão estão quase a acabar e voltarei a calcorrear os intermináveis caminhos do costume. É lá o meu lugar, é lá que está o meu apartamento, a minha mesa de trabalho, a minha sala de aulas, os meus alunos. Esperam-me dias tranquilos, romances por ler. Uma ou outra ligação esporádica.

Uma coisa é certa: não voltarei a ser o mesmo. A partir de amanhã, serei outra pessoa. Os que me rodeiam não se darão conta de que voltei ao Japão completamente diferente. Por fora, nada terá mudado, mas algo dentro de mim ficou reduzido a cinzas e deixou de existir. Houve sangue derramado e, dentro de mim, algo morreu. Desapareceu de vez, de cabeça baixa, sem uma palavra. Há uma porta que se abre e uma que se fecha. Apaga-se a luz. Para mim, tal como sou agora, hoje é o último dia. Este é o meu último entardecer. Quando o novo dia nascer, eu, tal como sou agora, já não estarei aqui. Outra pessoa diferente habitará o meu corpo.

Por que será que estamos condenados a ser assim tão solitários? Qual a razão de tudo isto? Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, todos irremediavelmente afastados. Porquê? Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?

Virei-me de costas sobre a laje de pedra, fitei o céu por cima de mim e pus-me a pensar na quantidade imensa de satélites que naquele preciso momento deviam girar à volta da Terra. No fio do horizonte era ainda possível distinguir uma réstia de luz, e as estrelas começavam a brilhar no céu de um profundo tom púrpura. Procurei com o olhar a luz de um satélite, mas havia demasiada claridade para distinguir fosse o que fosse a olho nu. As estrelas que estavam à vista permaneciam imóveis, cada uma no seu sítio, como se cravadas no céu. Fechei os olhos e prestei atenção para ver se conseguia ouvir os descendentes do Sputnik que continuavam a dar voltas à Terra, tendo como único elo de ligação ao planeta a gravidade. Solitários pedaços de metal que se encontraram de repente nas trevas do espaço, cruzam-se no seu caminho e depois separam-se para sempre. Sem trocarem uma palavra, sem fazerem uma promessa.

Haruki Murakami

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publicado por Elisabete às 19:54
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