Agora, o desespero apoderava-se dos homens. Mesmo os guerreiros do deserto, os homens azuis invisíveis de Ma el Ainine, estavam cansados e havia vergonha no seu olhar, como no dos homens que deixavam de crer.
Eles ficavam sentados formando pequenos grupos, com as espingardas encostadas aos braços, sem falar. Quando Nour ia ver o pai e a mãe para lhes pedir água, era o silêncio deles o que mais o assustava. Era como se a ameaça da morte tivesse atingido os homens e eles já não tivessem força para se amar.
A maior parte das pessoas da caravana, as mulheres, as crianças, estavam prostradas na terra, esperando que o Sol se extinguisse no horizonte. Já nem tinham forças para dizer a oração, apesar do apelo dos religiosos de Ma el Ainine que soava no planalto. Nour estendia-se no chão, com a cabeça pousada no seu fardo quase vazio, e contemplava o céu sem fundo que mudava de cor, escutando a voz do velho que cantarolava.
Por vezes tinha a impressão de que tudo aquilo era um sonho, um terrível, um interminável sonho que ele sonhava de olhos abertos e que o arrastava ao longo das rotas das estrelas, na terra lisa e dura como uma pedra polida. Então o sofrimento era uma lança cravada e ele avançava sem compreender o que o dilacerava. Era como se saísse de si mesmo, abandonando o seu corpo na terra calcinada, o seu corpo imóvel no deserto de pedras e de areia, semelhante a uma mancha, a um monte de trapos velhos atirados para o solo, no meio de outros montes de trapos abandonados, e a sua alma aventurava-se no céu gelado, pelo meio das estrelas, percorrendo num abrir e fechar de olhos todo o espaço que nem toda a sua vida seria suficiente para reconhecer. Via então, como que surgindo de miragens, as cidades extraordinárias com palácios de pedra branca, as torres, as cúpulas, os grandes jardins inundados de água pura, as árvores carregadas de frutos, os canteiros de flores, as fontes onde se reuniam as raparigas soltando risos ligeiros. Ele via aquilo distintamente, deslizava na água fresca, bebia nas cascatas, provava cada fruto, respirava cada cheiro. Mas o que era mais extraordinário, era a música que escutava quando saía do seu corpo. Nunca tinha ouvido nada semelhante. Era uma voz de rapariga que cantava na língua chleuh, uma doce canção que tremulava no ar e que repetia sempre as mesmas palavras, assim:
- Um dia, oh, um dia, o corvo ficará branco, o mar há-de secar, alguém descobrirá o mel na flor do cacto, alguém fará uma cama com os ramos da acácia, oh, um dia, já não haverá veneno na boca da serpente, e as balas das espingardas já não produzirão a morte, pois será o dia em que deixarei o meu amor…
De onde vinha aquela voz, tão clara, tão doce? Nour sentia o seu espírito deslizar ainda para mais longe, para lá desta terra, para lá deste céu, para o país onde há nuvens negras carregadas de chuva, rios profundos e largos onde a água nunca pára de correr.
- Um dia, oh, um dia, o vento não soprará sobre a terra, os grãos de areia serão doces como o açúcar, debaixo de cada pedra do caminho haverá uma nascente à minha espera, um dia, oh, um dia, as abelhas cantarão para mim, pois será o dia em que deixarei o meu amor…
É lá que ribombam os ruídos misteriosos da tempestade, é lá que reina o frio, a morte.
- Um dia, oh, um dia, haverá o Sol da noite, a água da Lua deixará as suas poças na terra, o céu dará o ouro das estrelas, um dia, oh, um dia, verei a minha sombra dançar para mim, pois será o dia em que deixarei o meu amor…
É de lá que vem a nova ordem, aquela que expulsa os homens azuis do deserto, que faz irromper o medo em todo o lado.
- Um dia, oh, um dia, o Sol será negro, a terra há-de abrir-se até ao centro, o mar cobrirá a areia, um dia, oh, um dia, os meus olhos já não verão a luz, a minha boca já não poderá dizer o teu nome, o meu coração deixará de bater, pois será o dia em que deixarei o meu amor…
A voz desconhecida afastava-se a murmurar e Nour ouvia de novo a canção lenta e triste do guerreiro cego que falava sozinho, com o rosto voltado para o céu que não conseguia ver.
J.M.G. Le Clézio, Deserto
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