Sexta-feira, 24 de Dezembro de 2010

A Tua Véspera de Natal

Impecável. Foi impecável a tua véspera de Natal. Não te poupaste a nenhum esforço, a nenhuma despesa. Trataste dos mínimos pormenores com a antecedência necessária. Pareceram realmente espontâneos os gestos que deviam ser, ou pelo menos parecer, realmente espontâneos. Houve alegria, houve calor e gratidão à tua volta. Houve também, é certo, uns súbitos abismos de silêncio, uns turvos remoinhos de silêncio. Mas não terás sido tu quem afinal os procurou?

E podes crer que ninguém deu por nada. Correu tudo bastante bem. Logo pela manhã, os teus empregados – embora não manifestassem a exultante gratidão com que sonharas — sempre se mostraram tepidamente reconhecidos com o inesperado aumento das gratificações. Foi uma bela decisão da tua parte: tanto mais bela quanto pareceu tomada à última hora, no preciso momento em que o pessoal à tua roda se reunia para a já tradicional apresentação das Boas Festas. Só o Azevedo se encontrava, há mais de um mês, ao corrente dos teus propósitos; só com ele examinaras, atentamente, ao longo de várias noites, a situação da firma neste último ano. Mas com o Azevedo podes tu contar. Podes contar sempre com aquela gaguejante discrição que toda se enrola nas curvaturas do Azevedo. E, no entanto, às vezes gostarias de lhe dizer que tão patente fidelidade lhe dobra excessivamente a espinha.

Mas fizeste muito bem em convidá-lo depois para almoçar contigo, no espaventoso grill desse hotel onde jamais ele pensara pôr os pés. O pior é que foi aí, durante o almoço, que julgaste sentir a primeira tontura — como se um abismo se tivesse cavado por debaixo da mesa ou como se a própria mesa, do lado onde estavas, se encontrasse em risco de ser tragada por um remoinho.

O Azevedo não se cansara de te louvar; e de informar-te, em doses iguais de muito zelo e algum exagero, das óptimas reacções que o teu gesto provocara em todo o pessoal. Por fim, com bagas de suor já nascidas do esforço de atacar uma laranja com garfo e faca, cometeu a imprudência de repetir-se — como se acaso o ignorasses — que sempre soubeste fazer bem as coisas. Mas de repente deve ter surpreendido qualquer sombra nos teus olhos: apressou-se imediatamente a inquirir se te sentias mal. Respondeste que não; que já passara; que tinha sido só uma tontura. Agora sabes que nem chegou a ser o que dizias; ou que foi mais do que disseste. Descobriras, simplesmente, nas palavras do Azevedo, uma grotesca e impiedosa caricatura de ti próprio: tão grosseiro era o traço com que elas te desenhavam que ficavas com beiços e queixo de quem julga, sob uma testa de dois centímetros, que fazer o bem e fazer bem as coisas serão afinal a mesmíssima coisa.

Aproveitaste a seguir os últimos minutos do almoço (tolo serias se o não fizesses) para cuidadosamente recapitular, com o Azevedo, alguns assuntos porventura pendentes e para o encarregares ainda de umas tantas tarefas. Retiraste do bolso a agenda (mais uma agenda quase no fim!) e lá foste conferindo o cumprimento de certas ordens, a exactidão de uns tantos endereços, por entre os goles de café e do conhaque, por entre o fumo das cigarrilhas de circunstância.

Podes estar tranquilo: seguiram, com certeza, a tempo e horas, todas as caixas de charutos, todos os caixotes de espumante, todos os isqueiros em que mandaste gravar o nome da firma. Amigos, conhecidos, fornecedores, clientes, agentes, intermediários, — todos seguramente receberam os teus brindes de Boas Festas. Duas das furgonetas da casa, incumbidas da distribuição, não terão feito outra coisa em todo o dia.

Entretanto (por iniciativa do Azevedo), já tinhas o porta-bagagens do Volvo conscienciosamente atulhado com os presentes para a família. Findo o almoço, foi só pegares no volante; e o Azevedo, depois de te fechar a porta, ainda ficou, fora do passeio, a dissolver-se em mesuras.

Nem te deste ao trabalho de verificar a cor dos vestidos ou a marca dos perfumes que tinhas mandado comprar para a tua mulher e para a tua filha; sequer o nome dos livros ou a qualidade dos brinquedos destinados aos dois gémeos; muito menos, ainda, quais seriam, este ano, as lembranças para a tua cunhada e para a governante. Felizmente para ti, até nisso podes contar com o Azevedo, que já se vai habituando a não ter mau-gosto.

Só em plena estrada, quando vinhas a caminho da quinta, reparaste que te esqueceras do teu genro: hás-de levar tempo a considerá-lo da família. Mas não é certo que ele entrou na família contra tua vontade? E não é certo que faz sempre tudo para se manter à margem, sempre a tirar da barba hirsuta diatribes e remoques de toda a espécie? De qualquer modo, não seria difícil remediar o esquecimento. Mal chegaste à quinta, mandaste apartar e embrulhar três garrafas daquele whisky de que não gostas (do que te enviaram o ano passado) e bem viste, depois, como ele ficou satisfeito (embora talvez contrafeito por estar satisfeito), quando à meia-noite lhas ofereceste.

Vês? Não foi nada má a ideia deste primeiro Natal na quinta. No entanto, assim que chegaste, às quatro e meia da tarde, sentiste de novo entreabrir-se, sob os teus pés, aquela voragem de silêncio. A tua mulher tivera ainda de voltar a Lisboa, com a irmã, para algumas compras de última hora; só retornariam, já noite fechada, na companhia da tua filha e do teu genro. A casa dividia-se, por enquanto, em largas zonas da mais desamparada solidão e em dois pequenos focos de morna actividade: a cozinha, onde parolavam as criadas com a mulher do caseiro, e a sala grande do primeiro andar, já com a lareira acesa e com os teus rapazes, moles e magros, iguais como dois círios, a darem os últimos retoques no presépio. Através das demais divisões, apenas deslizava, a espaços, como um fantasma, a sombra da governante.

Às seis da tarde já não sabias que fazer. Não falando no frio e na humidade, estava demasiado escuro para andar lá por fora. Tiveste de intervir, por duas vezes, em pequenas questões que entre os teus filhos se acenderam. Só por ser véspera de Natal é que não aplicaste um tabefe em cada um. Mostravam-se ambos, aliás, — eles que geralmente se dão tão bem! — implicativos, impacientes, morbidamente insubmissos. E um cão, ao longe, começara a uivar

Àquela hora, em Lisboa, as ruas estariam cheias de gente… Haveria o calor das luzes, arabescos e serpentinas de luzes, uma ponta de febre a empolgar a multidão, a mágica euforia dos encontros inesperados, o bafo tépido das lojas a derramar-se nos passeios, a agitação de festa que precede a Festa, — tudo aquilo, enfim, a que pretenderas fugir com a solução do Natal na quinta. Pois seria possível que te apetecesse tamanho tumulto, semelhante balbúrdia? Por muito que te espantasse, parecia-te que sim. Deste contigo a fazer contas: ida e volta, uma hora; mais uma hora que por lá andasses… Era evidente que tinhas tempo. Mas conseguiste resistir a essa absurda tentação, e foste procurar, ao lado da lareira, na estante cavada na parede, um livro ou uma revista que te ajudassem a passar o tempo.

Deparaste, porém, com um maço de jornais do ano passado, do Verão do ano passado. Grandes títulos a referirem acontecimentos que na altura pareciam grandes. Nem poderias dizer, ao certo, se bem chegaras a dar por eles. No entanto, de um ou outro, mais anódino, paradoxalmente conservavas tão fresca recordação como se fossem da véspera. E entanto já tinham rolado dezasseis meses! Mas que estariam ali a fazer aqueles jornais? De súbito, perante uma data, compreendeste: eram os jornais em que viera publicada a participação da morte da tua mãe, a notícia do enterro, o convite para a missa do sétimo dia. Ali tinham ficado aquele tempo todo, não por incúria ou esquecimento, mas porque o Azevedo organizara, no escritório, com recortes de outros exemplares, um dossier completo. De qualquer modo, trataste de recortar, pacientemente, os duplicados que vinham assim ao teu encontro; e por fim recolheste-os na carteira, ao lado do retrato da tua mãe. Só depois atiraste ao fogo o maço dos jornais — como se pretendesses, com esse gesto, para sempre queimar aqueles dias.

Saberias acaso explicar como de novo te encontraste ao volante do carro? Não tinhas, no entanto, a impressão de fugir; sequer a de buscar fosse o que fosse. Era apenas como se urgisse completar, para lá do nevoeiro, o ritual de guardar os recortes, a decisão de queimar os jornais. Os faróis do automóvel encaminhavam-te para Lisboa, a preceder-te, a orientar-te, como as mãos do sonâmbulo que vão à frente rasgando a escuridão. Confusamente compreendias que tinha sido já um aceno, embora falso, o das ruas cheias de gente, cheias de luzes e de bulício. Era afinal outra Lisboa que a tua alma te pedia. Evitaste, por isso mesmo, ao chegar à cidade, as avenidas que atravessam os novos bairros e conduzem ao centro, para seguires à beira-rio, por entre as docas, até subires, por fim, à rua onde nasceste, onde a infância te correu.

Deixaste o carro ao pé do arco: começavam ali os teus reinos de outrora. E principiaste a trepar a rua estreita, ziguezagueante, de casas pobres e sombrias que alternavam, agora, com prédios novos não menos lúgubres. Como o Natal continuava a chegar timidamente àquelas paragens! Havia apenas, nalgumas montras, um sortido de objectos mais faiscantes, votos de Boas Festas desenhados nos vidros com algodão, lampadazinhas de cor a iluminarem um ou outro modestíssimo presépio.

E, de repente, aquele abalo que sentiste. Já sabias que o prédio tinha sido demolido, pouco depois da morte da tua mãe; mas não esperavas encontrar de chofre, em lugar dele, esse imenso montão de escombros — e, por cima, um tão ostensivo cubo de nada no local exacto onde a vossa casa tinha existido. Surpreendeste-te a reconstituir, por alturas do primeiro andar, a caprichosa sucessão das quatro acanhadas divisões, a disposição dos móveis dentro de cada uma, até mesmo o volume, a forma, a cor, o tacto, o cheiro de alguns deles. E tudo aquilo te pareceu perfeito, milagrosamente certo à força de ser simples.

Então, compreendeste as razões da tua mãe para tão apegada se sentir àquelas coisas e para só consentir em passar curtíssimas temporadas em tua casa. Mas compreendeste também, pela primeira vez, como tu próprio, por comodismo, antes de haveres entendido o que entendias agora, te dispunhas sempre a aceitar essas mesmas razões; e como essas mesmas razões, no fim de contas, de premeditada desculpa te serviam para não insistires suficientemente com ela. O pior é que os dois factos te apareciam com idêntico peso, um e outro tão maciços e inamovíveis que não te davam espaço para teres remorsos nem para os não teres. E concluíste que não é fácil, em estado puro, poder sentir-se o quer que seja: muito menos alguma coisa que em bloco te pungisse, mas que de súbito, e em bloco, ao mesmo tempo te libertasse.

Desceste e subiste a rua, tornaste a descê-la, voltaste a subi-la. De cada vez que paravas diante dos escombros, animava-te ainda a esperança de te sentires totalmente ilibado ou de enfim experimentares um remorso a valer. Em certos momentos, quando mais próximo te julgavas de o atingir, mais aconchegado se recompunha, na tua memória o interior da casa desaparecida; e, depois, era como se a tua memória o projectasse sobre aquele écran de vácuo e de penumbra. Aliás, com os olhos fechados ou abertos, reconstituía-se tudo do mesmo modo: o quarto da tua mãe, o teu quarto; a cozinha onde a um canto se improvisara a minúscula casa de banho; a sala de estar, e de jantar, com a sacada sobre a rua; os vasos com begónias, a máquina de costura, o soalho encerado, os tectos baixos com florões de estuque; o armário enorme, que atravancava o corredor; e a talha de barro vidrado sobre o poial da cozinha; e a varanda, ao fundo, com a escada de ferro que dava para o quintal.

Vias tudo com tanta nitidez que se tornou praticamente um jogo, de certa altura em diante, ires sobrecarregando de pormenores, que há muito supunhas esquecidos, aquele cenário já não atulhado de móveis, de objectos, de utensílios, de bugigangas. Mas subitamente reparaste, quase aterrado, que só não conseguias imaginar, ali dentro (ali dentro?), a presença viva de quem quer que fosse. Nem o que mais te agradaria reevocar nesse instante: a atmosfera — que apenas abstractamente recordavas — de certas noites de Natal. E foste sensato em não ter insistido.

Mais tarde, de novo no automóvel, já fora de Lisboa, perguntaste a ti próprio se não teria sido um capricho de rico esse teu gesto de buscares, no passado, o cenário longínquo dos teus Natais de pobre. Melhor seria, de qualquer modo, não dizeres nada a ninguém. Quem saberia compreender-te? O teu genro deixaria escapar, de entre a barba agressiva, qualquer coisa como «complexo de culpa». O Azevedo, sim, haveria de louvar-te: tanto, porém, que ficarias enojado de ti mesmo. A tua mulher talvez sorrisse com amizade; ou talvez antes por distracção. E a tua filha evitaria, por todas as formas, dar a entender fosse o que fosse. Quanto aos rapazes — ainda não têm idade para entender. Mas sentias-te, apesar de tudo, inexplicavelmente mais completo: como se, pelo menos, tivesses tentado restaurar, dentro de ti, de ti para ti, um circuito que se encontrava interrompido.

E a reunião, à noite, correu o melhor possível. Nem te mantiveste, como é costume, em pé-de-guerra com o teu genro. Houve alegria, houve calor e gratidão à tua volta. Foram espontâneos os gestos que deviam ser espontâneos. Não há razão, agora, para teres ficado nesta espertina. Trata mas é de adormecer. Já é tarde. Ou cedo ainda, se preferes. Mais minuto, menos minuto, começarão os galos a cantar.

 

 

David Mourão-Ferreira (Natal de 1964, revisto em 1978),

in Natal Editora Arcádia - 1978)

publicado por Elisabete às 11:23
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Sexta-feira, 17 de Dezembro de 2010

Vemos, ouvimos e lemos...

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendos...

 
Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 

Chegou-me há tempos, por e-mail, a notícia de que um senhor chamado Jorge Viegas Vasconcelos, primeiro presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), auferindo um salário de 18.000€/mês, mais ajudas de custo e outras mordomias, se tinha demitido por entender que a electricidade devia ser mais cara.

 

Ora este senhor que, repito, SE DEMITIU, levou uma indemnização de 12 mil euros por mês, durante dois anos!!!

 

É um Governo que permite ROUBOS destes que, agora, com a maior desfaçatez, desce o valor das indemnizações dos pobres trabalhadores que forem DESPEDIDOS.

 

Pelos vistos, só a alguns (os mais pobres, por acaso) são exigidos sacrifícios para salvar o país. Porque os outros não são patriotas nem têm vergonha na cara.

 

NOTA: E o pior é que, como todos sabemos e convém não esquecer, este caso não é único.

  

publicado por Elisabete às 18:44
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Quarta-feira, 8 de Dezembro de 2010

Antero de Quental

 

Quanta vez, debruçado na janela do quarto que me acolhia na portuense Casa da Pedra, onde vivera e escrevera Oliveira Martins e, depois, pertencera a minha irmã Maria Manuela; quarto onde Antero de Quental tinha a sua cama se, ido de Vila do Conde, resolvia ficar mais tempo com o amigo historiador; quanta vez, eu imaginava o poeta aspirando o aroma intenso do roseiral do jardim tão de compleição romântica que lhe ficava aos pés, ou a lançar o olhar para o alto, onde a igreja da Lapa ergue o vulto austero, recolhendo no seio o coração de Pedro I do Brasil, e badalando horas lentas, na melancolia do bronze!

Por esse tempo, Antero parecia feliz, procurando, como afirma numa carta a um velho amigo e conterrâneo, o equilíbrio moral indispensável para qualquer espécie de trabalho.

 

 

 

 

Não dava, então, notícias daquele poeta pessimista, embrenhado nas leituras sombrias de Shopenhauer e de Hartmann, angustiado pela doença que o levará até ao consultório parisiense de Charcot; essa psicose maníaco-depressiva, que uma vez ou outra lhe dava tréguas, lhe permitia o humor normal e, no dizer sábio do professor Miller Guerra, fases de actividade, energia, bem-estar, optimismo e entusiasmo criador.

Mas foi, decerto, num desses momentos depressivos que, a 11 de Setembro de 1891, ao regressar à terra açoriana de São Miguel, pôs fim à existência com dois tiros de revólver, num banco isolado junto ao muro de uma praça de Ponta Delgada, onde (trágica ironia!) uma âncora assinala o Convento da Esperança.

Ali me detive, em certa visita à ilha de Antero, precisamente 80 anos após a terrível ocorrência, sem me atrever sequer a murmurar o conforto destes dois versos do poeta:

 

Já sossega depois de tanta luta,

Já me descansa em paz o coração.

  

 

Ali, numa compungida meditação, evoquei o poeta que a Geração de 70, a sua geração, considerou, pela pena de Eça de Queiroz, um génio que era um santo.

Nascera em 1842, oriundo de uma família aristocrática, ligada à cultura e possuindo fartos cabedais. Quando por Coimbra se bacharelou, logo revelou a sua força criadora, o seu espírito insubmisso, as suas ocasionais convicções filosóficas e políticas.

Essa vida agitada do pensamento e acção permitia-lhe, no entanto, conceber a simplicidade lírica da quadra dita popular, num feixe de Cantigas dedicadas às águas do Mondego, que um coro ímpar de poetas celebraram:

 

Lindas águas do Mondego,

Por cima olivais do monte!

Quando as águas vão crescidas

Ninguém passa para além da ponte!

 

Musa cristalina, ainda não turvada por dúvidas e transes, ímpetos sociais e lucubrações filosóficas.

Mas antes deste tumulto que iria gerar alguns dos mais extraordinários sonetos da língua portuguesa, houve lugar para a divertida invenção de um poeta satanista, de parceria com o seu camarada Eça de Queiroz, que, mais tarde, lhe criou uma biografia e uma correspondência: Carlos Fradique Mendes.

Com efeito, a 29 de Agosto de 1869, o jornal A Revolução de Setembro publicava um folhetim de versos atribuído a esse poeta desconhecido e original, discípulo dos chamados satanistas do Norte, de nomes bárbaros e de difícil leitura, todos eles fruto da imaginação dos dois jovens escritores.

Antero, oculto pelo pseudónimo Fradique, insere, nesse folhetim, um soneto e um fragmento da ‘Guitarrilha de Satã’, subtraídos a uma obra que naturalmente nunca chegou a editar-se nem sequer a ser realizada: Poemas de Macadame.

Mas foram, no entanto, reunidos no livro póstumo de Antero, Raios de Extinta Luz.

A título de curiosidade, pois pouco maior valor têm as quadras da partida forjada à ignorância cultural portuguesa de então, cito o fragmento dedilhado na Guitarrilha de Satã:

 

Estranha aparição,

Que em minhas noites vejo,

Ó filha do desejo!

Ó filha da solidão!

 

Não sei qual é teu nome,

E donde vens, ignoro:

Sei só que tremo e choro

Como de frio e fome!

 

Que por fundir contigo

Suspiros, ais, rugidos,

Dera ideais queridos,

Deuses e fé que sigo.

 

Sim, dera as profecias

E os cultos salvadores,

E os Gólgotas, e as dores,

E as bíblias dos Messias!

 

Por ti, minh’alma clama,

Corre a meus braços, breve,

Sejas de fogo ou neve,

Sejas cristal ou lama!

 

Se és Beatriz, sou Dante;

Sou santo, se és divina,

Se és Lais ou Messalina,

Sou Nero, ó minha amante!

 

Breve, estas brincadeiras juvenis dão lugar à sisudez do pensador, como a irreverência ou a fogosidade do duelo motivadas pela Questão do Bom Senso e do Bom Gosto, cujo alvo principal era o pontificado literário do velho Castilho, dão lugar às convicções sócio-políticas das Conferências do Casino, em 1871, em que o escritor revolucionário proclamava, apontando soluções, as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. 

O poeta lírico que se sonhava rei, nalguma ilha / Muito longe, nos mares do Oriente e visionava a amada descansando debaixo das palmeiras / Tendo aos pés um leão familiar, despe-se de fantasias exóticas e pomposas e, de camisa arremangada, emprega-se na azáfama de uma tipografia, para o convívio mais estreito com o operariado, todo ele voltado à doutrina socialista, numa missão pedagógica que a poesia serve, submissa aos ditames da sua inspiração: é o nascer do Sol, o Sol ardente da vida à luz do qual quer trabalhar, combater por um futuro melhor para a pobre Humanidade; o Sol, o claro Sol amigo dos heróis.

Mas não tardam as pesadas nuvens do desengano, o espírito profundamente místico de Antero a voltar-se para a filosofia budista, mas entendendo um Budismo coroando o Helenismo, com a interpretação de um Nirvana muito pessoal que igualmente definiu num soneto:

 

Para além do Universo luminoso,

Cheio de formas, de rumor, de lida,

De forças, de desejos e de Vida,

Abre-se como um vácuo tenebroso.

 

A onda desse mar tumultuoso

Vem ali expirar, esmaecida...

Numa imobilidade indefinida

Termina ali o ser, inerte, ocioso...

 

E quando o pensamento, assim absorto,

Emerge a custo desse mundo morto

E torna a olhar as coisas naturais,

 

À bela luz da vida, ampla, infinita,

Só vê com tédio, em tudo quanto fita,

A ilusão e o vazio universais.

 

Com o galopar da doença que o tortura, galopa o seu espírito como um cavaleiro andante em busca do palácio encantado da Ventura, que súbito se lhe depara na sua pompa e etérea formosura; mas, aí, como os sepulcros caiados de tantos hipócritas que Cristo invectivou, ao abrirem-se as Portas d’ouro, com fragor, o Vagabundo, o Deserdado encontra dentro, unicamente, silêncio e escuridão – e nada mais.

Como é pungente o destruir de um alto ideal que se persegue vida fora, qual o brioso cavaleiro, formidável mas plácido no porte, dominando, pelo amor, o impulso da morte que o leva até à eternidade! Venha pois o refúgio no sonho que impede o poeta de enfrentar o horror da realidade mesquinha!

E a quem rogá-lo, esse refúgio, senão àquela Virgem Santíssima, cheia de graça, Mãe da Misericórdia?

 

Ó visão, visão triste e piedosa!

Fita-me assim calada, assim chorosa…

E deixa-me sonhar a vida inteira!

 

Quando, em 1890, a soberba Inglaterra afronta a dignidade portuguesa com um Ultimatum vexatório que aquece ao rubro o nosso patriotismo, os estudantes portuenses, encabeçados pelo jovem poeta Luís de Magalhães, correm ao remanso de Vila do Conde, a convidar Antero de Quental para a presidência de uma recém-criada Liga Patriótica do Norte. Mas, muito cedo o poeta reconhece que aquele sacrifício pelo altar da pátria por ele pedido a todos os portugueses fora, uma vez mais, inútil, pois, como escreve ao jovem Alberto Osório de Castro, Portugal é um país eunuco, que só vive dos interesses materiais e para a intriga cobarde que é o processo desses interesses. Doera-lhe agudamente que o valor patriótico de 1890 rapidamente fosse manietado pela astúcia política.

O seu pessimismo, ainda mais amargo, regressa-lhe ao espírito, já incapaz de compor um verso, e sabendo, agora, como afirma na referida carta, que a política nunca foi muito para poetas.

Antero volve à sua ilha de névoas. Sem esperança já, alma e corpo doentes, é sob o signo da esperança, de uma esperança divina, capaz de perdoar os desvairos do génio para receber o coração do santo, que se atreve ao acto desesperado dos suicidas.

O seu espírito atormentado descera, sim, passo a passo a escada estreita do palácio encantado da ilusão. Mas o coração, esse, dorme (quem pode duvidá-lo?), para sempre feliz, na mão de Deus, na sua mão direita.

(1991)

 

António Manuel Couto Viana, 12 Poetas Açorianos

publicado por Elisabete às 17:54
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