Terça-feira, 31 de Janeiro de 2012

Beloved

 

Denver pensava compreender a ligação entre a mãe e Beloved: Sethe tentava compensar a serra; Beloved fazia-a pagar por isso. Mas aquilo nunca teria um fim, e ver a mãe humilhada, envergonhava-a e enfurecia-a. No entanto sabia que o maior medo de Sethe era o mesmo que Denver tivera no início – que Beloved pudesse partir. Que partisse antes que Sethe a pudesse fazer compreender o que significara passar os dentes daquela serra sob o pequeno queixo; sentir o sangue de bebé a espalhar-se como óleo nas suas mãos; segurar-lhe o rosto para que a cabeça não caísse; apertá-la para conseguir absorver os espasmos da morte que percorriam aquele corpo adorado, gorducho e doce de vida – Beloved podia partir. Partir antes que Sethe a fizesse compreender que pior do que aquilo – muito pior – fora aquilo por que Baby Suggs morrera, aquilo que Ella sabia, aquilo que Stamp Paid vira e aquilo que fazia Paul D estremecer. Que qualquer branco nos podia levar por completo e por qualquer motivo que lhe passasse pela cabeça. Não apenas para nos pôr a trabalhar, matar, ou mutilar, mas também conspurcar. Conspurcar tanto que já não nos podemos amar. Conspurcar de tal modo que esquecíamos quem éramos e já não nos conseguíamos encontrar. E embora ela e os outros o tivessem vivido e ultrapassado, ela nunca poderia deixar que isso acontecesse aos seus filhos. O melhor de si eram os filhos. Os brancos podiam sujá-la, mas não ao que tinha de melhor, a melhor coisa bela e mágica – a parte dela que estava limpa. Sem sonhos inconcebíveis em que se interrogava se os troncos sem pés nem cabeça pendurados nas árvores eram de Paul A ou do marido; sem se preocupar que entre as raparigas queimadas vivas numa escola para negros, pudessem incluir a sua filha; sem a dor de ver um bando de brancos a invadir as partes íntimas da filha, a ensopar-lhe as coxas e a enlouquecê-la. Ela até poderia fazer engates no pátio do matadouro, mas a sua filha não.

E ninguém, nem uma única pessoa à superfície da Terra, iria enumerar as características da filha no lado do papel reservado aos animais. Não. Oh, não.
Talvez Baby Suggs se pudesse conformar com aquilo, viver com essa proximidade; mas Sethe recusara-se a fazê-lo – ainda se recusava.

Denver ouviu-a dizer isto e muito mais da sua cadeira do canto, a tentar convencer Beloved, a única pessoa que achava ter de convencer, que aquilo que fizera fora o correcto porque viera do amor verdadeiro.

 

Toni Morrison,

escritora norte-americana nascida em Lorain (Ohio), a 18 de Fevereiro de 1931
Recebeu o Nobel da Literatura em 1993
 

publicado por Elisabete às 11:45
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Sexta-feira, 27 de Janeiro de 2012

E assim vai Portugal!!!

 

 

Não é o "partido único" mas é o "pensamento único"

 

publicado por Elisabete às 19:48
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Sábado, 14 de Janeiro de 2012

A Guerra Civil

 

A tropa do duque da Terceira desembarcara em Cacela, entre o estuário do Guadiana e Tavira, a 24 de Junho, após três dias de viagem sem novidade ao longo da costa. A esquadra miguelista era um mistério bem guardado dentro da barra do Tejo.

Após quase um ano metido numa cidade cercada, Filipe de Villepin tinha a sensação de estar redescobrindo o vasto mundo naquela partícula a que chamava pátria, muito mais ideia que rincão, mais fantasia que realidade. Ao passar em frente dos recortes do litoral, dava ao que via os nomes que ouvira antes e deslumbrava-se por descobri-los – a Figueira, alvo e longínquo casario arrimado à foz do Mondego; Peniche e os alcantis fragorosos do cabo Carvoeiro, com o círculo alaranjado do Sol avermelhando o céu e o mar com o seu lento mergulho, para lá das Berlengas, e as sombras em que, depois da Roca, ecoava mais forte o marulhar da vaga larga no costado do vapor; e, ao dobrar a massa imponente e mais negra que a noite do promontório e do cabo de S. Vicente, as silhuetas dos frades do Hospício do Cabo recortadas na fogueira que tinham acendido para celebrarem a véspera de S. João; e Lagos branquíssima na antemanhã; e Faro, e Tavira, e a boca prateada da baía de Cacela. Nem os tiros soltos de algumas baterias de costa, que os não puderam atingir, o distraíram da contemplação maravilhada duma aura de espuma e areia pontuada por coroas de rochedos e cortada por arribas que anunciavam o ocre da terra. E era o palpitar do coração dessa terra que ele sondava, com a esperança renovada no verdadeiro regresso povoado pelas promessas forjadas no exílio e nos grandes sofrimentos do Porto. Os navios de guerra, a Rainha de Portugal, a D. Pedro, a D. Maria, o Portuense, o Vila Flor e a Faro, toda a frota liberal, formados em linha diante dos vapores, dispararam uma salva contra a única peça postada em Cancela, pondo os artilheiros em fuga. Sem mais, desembarcaram.

Depois duma noite de bivaque ao relento, escaramuçaram junto à ribeira de Almargem com tropas do visconde de Molelos, que pareceram bisonhas e tímidas, e entraram em Tavira deserta. Filipe recordou Penafiel, nos primeiros dias da campanha. Viria outra vez a mostrar-se o fantasma duma pátria afinal madrasta, em que o povo que queriam livre se sumia sob a tutela do mais forte e dos santos da sua devoção, para salvar a pele e a fazenda? O general duque espalhou proclamações e, como pardais assustados à cata duns bagos de milho, foram aparecendo pela tarde os habitantes de Tavira. Desculparam-se dizendo que os tinham convencido que estavam sendo assaltados por uma quadrilha de bandidos dispostos a pilhá-los. Já gritavam vivas à Carta e à rainha, que aqueceram quando chegou de Vila Real uma deputação para cumprimentar o duque e informá-lo da aclamação de D. Maria na sua terra que os milicianos miguelistas tinham desertado. Filipe queria crer que o povo levantava finalmente a cabeça, porque isso lhe honrava as ideias e a memória de Raimundo e dos camaradas mortos. Mas ouvia-os dizer “haja quem mande”. E, no fundo, verificava o que Tomás d’Aquino, sem paixão, dizia: “O povo? Nem bom nem mau. O povo é católico e bronco.” E Nuno, o diletante, lutava sem ilusões, para mostrar que não precisava de ser delegado da vontade geral que não existia. Não o tinham visto, o povo, trancar as portas e arrotear as leiras, à passagem dos exércitos, sem querer saber de Pedro ou Miguel, desbarretando-se quando convinha ou virando as costas, se podia? Quantos tinham sido eles nas trois glorieuses? Um punhado de idealistas, a reboque a canalha e na cauda os políticos a colarem os cacos do Poder. Quantos tinham sido eles? A explosão popular parecera ser imensa, mas a maioria também ficara à espera atrás das portas fechadas, a olhar pelos tarecos e pelas economias escondidas debaixo dos sobrados. E mesmo se tivesse sido Paris inteiro, o que fazia o resto da França? No Porto, só fora diferente porque a vida não valia nada e o desespero e o medo eram de todos por igual – todo o instinto de sobrevivência parecia um acto de heroísmo. E, agora, em Tavira muitos vivas e foguetes. Pela liberdade ou pelos mais fortes? O povo aclamava-os quando ganhavam e fazia o mesmo aos inimigos: e também era capaz de lágrimas sinceras e inúteis pelos vencidos. Filipe olhava os grupos de camponeses levantando ao ar os chapéus pretos e os pescadores desbarretados saudando o senhor general e o Estado-Maior, como muito provavelmente haviam feito aos governadores de D. Miguel, e os dedos das duas mãos chegavam para contar os que se ofereciam para pegar em armas contra o tirano. Olhava-os e pensava que só os legitimava, a ele e a alguns companheiros, a convicção de que faziam avançar o mundo para a luz e os homens para a dignidade. Não podiam era esperar o mesmo sucesso de Deus, que não precisava de dar a conhecer-se. Nem sequer viviam um equívoco, porque andavam descobrindo incessantemente a realidade duma luta implacável e desigual – a do futuro que não podia demonstrar-se contra o presente monolítico, fatal, brutal e fanático, que invocava um passado imóvel e a cólera de Deus.

Avançaram até Faro, sem encontrarem resistência. Estiveram dois dias a recompor-se; a cólera morbus fazia o mais das baixas, como nas terras por onde passavam – só num mosteiro, onde lhes deram os melhores figos do mundo, restavam da confraria o frade guardião e o donato. Morreu o major David e quatro soldados de Infantaria 6. O calor sufocava e nem a vista do mar sereno e das copas verdes das alfarrobeiras e das amendoeiras, nos outeiros ondulados para o interior, os aliviavam da canícula de que buscavam refúgio na sombra das paredes caiadas do Paço Episcopal onde se instalara o duque da Terceira. Aí viu Filipe pela primeira vez aquele homem que entrava no limiar da lenda – o almirante Charles Napier. Era atarracado, cara larga, patilhas tufadas, nariz comprido de cana alteada, olhar vivo e firme. Estava conversando num razoável português com o major Loureiro, quartel-mestre general, e com os capitães marquês de Fronteira e Manuel da Câmara, ambos do Estado-Maior. Os seus modos eram rudes e directos, mas transmitiam uma confiança e uma segurança quase magnética, porque era grande o contraste com as hesitações e demorados debates dos comandos portugueses. Fumava vorazmente um havano e talhava, com um gesto de mão em cutelo, um rumo, que não se perdesse tempo, só a audácia poderia demonstrar que o inimigo era um fantasma protegido pela própria sombra. Eram só dois mil? Não importava, que a vitória seria de quem tivesse a decisão que faltava a todos. E Filipe, observando-o, pensava que o inglês, excêntrico e romântico, estava percebendo muito bem que pátria era aquela que ele perseguia com uma nostalgia antiga e se lhe escapava quando julgava possuí-la – como uma conquista sempre inacabada.

 

Álvaro Guerra, A Guerra Civil

[Dom Quixote, 1993]

 

publicado por Elisabete às 15:39
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