Segunda-feira, 30 de Abril de 2012

Valter Hugo Mãe na apresentação do livro A DIVIDADURA, no Porto

 

Ficar a dever

 

Entre os maiores desafios que enfrento na vida estará, necessariamente, o meu pouco jeito para ganhar dinheiro. Sou péssimo a fazer contas, aparecem-me umas nuvens nos olhos quando estudo juros ou leio contratos, acabo por ser um bocado desorganizado e esquecido. À última hora, aposto sempre na confiança. Tento confiar em quem tenho diante de mim. Confio nas suas boas intenções, o que é lindo e me tem tramado uma e outra vez. À última hora, levam-me sempre naquela conversa sobre a mãezinha e a tia não sei de quem que gosta dos meus livros, e mais um vídeo do youtube com cãezinhos ou viagens à Islândia, e a conversa fica uma coisa de café, como se fôssemos amigos e, supomos, os amigos serão naturalmente os melhores para respeitarem os nossos interesses.

Escrevo poemas e livros de estórias e juro que não sou má pessoa mas, eu sei, preciso de ser protegido contra mim mesmo. Vivo na urgência de ser integrado num sistema de boa gente, regido por leis equilibradas e justas, governado cautelosamente e em profunda boa fé. Aceito o erro, mas não posso aceitar a instrumentalização do poder e o modo sinistro como justificam que, sem termos pedido nada ou tendo pedido pouco, nos compete pagar mundos e fundos, tantas vezes de obra que não vemos, que não foi feita.

O livro A Dividadura, de Francisco Louçã e Mariana Mortágua é, pois, uma pedrada na cabeça de um homem como eu. Senti-me como a perder a virgindade nas minhas inocentes moedinhas todas, ficando consciente de cada delirante manobra inventada para colocar o mundo em números, para se colocar cada coisa e cada gesto numa conta de cifrões.

Eu, que já andava um bom bocado indignado, diria que esta é, um pouco, a história de brincar ao dinheiro. A história da dívida é saber como, em cada tempo, se foi percebendo que a valoração de algo depende sempre menos da preciosidade daquilo que se dá em troca, e mais do poder e aparatoso prestígio de quem emite um título. A perda da relação direta do valor com a preciosidade material do dinheiro, já depois de se ter perdido o pagamento em espécie, vê os governantes a descobrirem como podem, insidiosamente, levar o mercado a aceitar um modo de liquidez que já não corresponde a reserva nenhuma e que passa, por isso mesmo, a ser uma espécie de fantasia, um dinheiro de valor apenas suposto, como uma palavra de honra.

O dinheiro passa a ser discursivo, transforma-se numa certa conversa. É uma retórica que, a partir da ficção do seu valor, confere a quem está no poder um efeito de riqueza que, se posto em causa, estoura nas mãos dos cidadãos, que se veem subjugados à obrigação de assumirem os encargos legítimos e ilegítimos com que os seus governantes se comprometeram. O poder é efetivamente o dinheiro de que dependemos hoje. Trabalharmos até nos esfolarem os dedos, até cegarmos ou até chegarmos a velhos, não é dinheiro, é quase só uma canseira.

Num mundo onde o dinheiro é imaginário, e onde a partir dessa aritmética cada vez mais abstrata se define a quota de poder que cada um detém, fácil é de entender que a especulação seja a grande proeza circense que os aventureiros de hoje escolhem cometer. O grande modo de brincar ao dinheiro. Mais interessante do que caçar a fórmula da Coca Cola, tem de ser comprar produtos financeiros que, por humores e ratings, possam multiplicar o seu valor da noite para o dia. Não há melhor para se enriquecer. Não são precisas matérias-primas, não se cria emprego, não se oferece nada ao público, não se mandam fazer embalagens, não há e não interessa haver publicidade, não se distribui. O cidadão, a esfolar os dedos, nem percebe quem manda em quê, quem ganha com o quê. Pode ser tudo assim já uma palavra de honra muito relativa. Ou a honra vai buscar-se à Moody’s, que é detida por privados e tem uma mentalidade de guerra, e que anuncia o que vale e o que não vale com a mesma perversão com que outrora se falava da castidade das senhoras.

A falta de efetividade no sistema financeiro vai sempre deixar de fora a maior parte da população. Porque a maior parte da população nunca saberá participar proveitosamente nem se saberá defender da teia kafkiana em que se tornou tudo isto. A maioria da população, como eu, não se licenciou em economia e espera simplesmente que trabalhar e viver do seu vencimento seja digno o suficiente para não ser enganada nem explorada.

O livro de Francisco Louçã e Mariana Mortágua é um livro tese. Explica-nos como a história desembocou no momento em que estamos. Ao pé de nos hipotecarmos, no mínimo por por duas décadas, a um aparente socorro que nos usurpa. Gostei de saber que a Bíblia proíbe os juros, e que promete que todos voltaremos a ser donos do que perdemos, assim como impõe o perdão de qualquer dívida ao sétimo ano. Até o nosso querido José Saramago ia gostar que a Bíblia deixasse pistas tão claras para uma ética financeira. E já não gostei de perceber as contas a fazer para pagarmos a sagrada ajuda da Troika, entalados numa Europa que pode ver o Banco Central Europeu a emprestar dinheiro a Estados não membros da União Europeia, mas não que o pode fazer aos Estados membros em dificuldades.

Recorremos ao FMI para aplicação de uma austeridade com palas, isto é, uma austeridade chapa cinco, cuja aplicação é indiferenciada no tempo e no lugar, indiferente a culpas e a sacrifícios. Ou seja, mais valia que nos aplicassem a Bíblia, que entre conceitos e preconceitos, se respeitada, nos poupava a este roubo.

Acredito na tese fundamental de A Dividadura, na medida em que pretende impor uma ética nisto de se ajudar um país chamado Portugal. É tão simples quanto isto: a ajuda não pode acarretar a usurpação, não pode ser o pretexto para que paguemos mais do que aquilo que efetivamente nos emprestam. Ao menos a este nível, a porcaria da ganância havia de estar ausente, disciplinada e a ter vergonha.

Se não tiverem paciência, tempo, ou se já souberem tudo acerca da história da dívida, não deixem de ler ao menos os capítulos finais, sobretudo ali a partir da página 221 onde se propõe uma estratégia para o momento atual da economia portuguesa. Em cinco pontos, Louçã e Mortágua propõem um modo diverso de dignificar o que devemos, antes que sejamos todos “chinezados”, ou seja, antes que a austeridade cega da Troika nos imponha, sem fim à vista, “um novo regime social assente em salários baixos e em trabalho precário generalizado”. Toda a construção de proteção social vai aluindo, e está em causa regredirmos ao tempo de um abandono tal em que se abdica de ter governantes pelo povo para os termos contra o povo e a favor da escravatura económica. É fundamental perceber que parte da dívida de que nos acusam é ilegítima. É fundamental perceber quem enriqueceu de modo ilícito e agir judicialmente, recuperando o que se puder recuperar. É importante perceber quem decidiu dolosamente. É fundamental perceber que estamos dispostos a um esforço, mas que não podemos ser conduzidos à miséria pela exigência de um pagamento excessivo, abusivo, indecente.

Quando eu dizia que preciso de ser defendido de mim mesmo, dizia-o porque tenho o sonho de ser outra coisa que não fiscal de tudo, polícia de tudo, mas o que vivemos hoje é um saque contínuo aos nossos atrapalhados vencimentos e, daí, um saque contínuo à possibilidade de sonharmos com qualquer confiança, com qualquer segurança. Passamos a escrever poemas desconfiados da carteira porque nos parece sempre que alguém nos tira de lá o dinheiro. Gostava de acreditar que não me virão mais roubar a pureza com que as minhas moedas foram ganhas e, sobretudo, o ofício simples que têm, o de pagarem a sobrevivência até nada de especial que tenho. Fico, pois, enervado com suspeitar e ter de suspeitar, porque me seria mais natural acreditar, falar como entre amigos e levar a vida sem olhar para trás e sem ter de ser tramado uma e outra vez. Percebo, claro está, que entre os poemas tem de existir a formação de uma voz coletiva. Um ruído aumentando que chegue aos ouvidos dos aventureiros lá muito em cima, e que faça uma infinidade de gente real valer mais do que a decisão fria e puramente financeira dos poderes já desumanos, mais e mais virtuais, que controlam o mundo.

 

Valter Hugo Mãe

[6 de Abril de 2012]

publicado por Elisabete às 19:43
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Sábado, 28 de Abril de 2012

Fazer de cada perda uma raiz

(1 de Maio de 1958-24 de Abril de 2012)

 

Miguel Portas morreu. Morreu um homem. Não um santo. Não um herói. Apenas um homem. Com fragilidades, com defeitos, com humores, com excessos... como qualquer outro homem. Mas um homem bom, que é o que de melhor se pode dizer dum homem.

Um homem que gostava da vida e de, com prazer, lutar para a tornar suportável. Mesmo correndo riscos.

Dele ouço dizer que era humano, afectivo, simples, aberto à diferença e, por isso mesmo, tolerante; inquieto e insatisfeito, por dentro da tranquilidade própria de quem sabe que está a fazer o que está certo. Corajoso até ao fim.

Este momento é de tristeza. Lamentamos a perda dum companheiro que, nos tempos negros que vivemos, fará muita falta, a nós e ao país.

Queremos fazer-lhe a homenagem que merece.

Homenagear Miguel Portas é, por entre as lágrimas, continuar a luta que travou; é partilhar o sonho de fazer do mundo um local melhor para se viver, um mundo de homens conscientes e comprometidos, de homens bons, de irmãos e não de lobos. E é fazê-lo com alegria.

 

Ao chegar ao fim da vida, quero poder olhar para trás e dizer: terei feito algumas asneiras, mas no conjunto posso partir, lá para onde for, com tranquilidade.", disse um dia.

 

Fica tranquilo, irmão!

publicado por Elisabete às 08:01
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Quarta-feira, 25 de Abril de 2012

25 de Abril SEMPRE!

publicado por Elisabete às 01:28
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Terça-feira, 24 de Abril de 2012

Nova Teoria do Mal

Foto: Notícias Magazine

APRESENTAÇÃO

 

Escrito ao longo de um ano lectivo nos comboios da linha de Sintra – entre as negras suadas dos serviços de limpeza dos escritórios de Lisboa e as viúvas e os reformados de Rio de Mouro e Cacém, que, lobrigando-me cheio de livros, me pediam digna e discretamente 5 euros para a compra do remédio para o coração -, desconheço o real valor deste livro.

 

[…]

 

Deste livro, porém, como disse, desconheço a qualidade e as previsíveis consequências. Mas conheço a origem - a revolta moral contra o estado de vida degradado, autenticamente terceiro-mundista, de mais de 2 milhões de habitantes de Portugal.

Não podia encarar grande parte da classe política que governa desde meados da década de 1980 sem encontrar nos seus olhos, na sobranceria das suas atitudes, na prepotência das suas leis (extorquindo dinheiro à população, favorecendo os que mais o têm), no ar enfastiado e enfatuado com que no estrangeiro se referem ao povo português, culpando-o de um atraso cuja responsabilidade só às elites pertence, sem detectar neste conjunto de atitudes uma visível tendência para o mal que iam cometendo lei a lei, carregando-a de impostos governamentais, taxas camarárias, contínuos aumentos de preços de bens essenciais, extorquindo direitos adquiridos, apropriando-se do espaço público, forçando o cidadão a pagar cada pedaço minúsculo do património de todos.

Recentemente, um ministro ofereceu-nos um perfeito exemplo da tese sobre a banalidade do mal de Hannah Arendt. Suportado num documento programático assinado pelo Governo português com instâncias financeiras e políticas internacionais, apresentou um documento legal que, na prática, inibe a possibilidade de um número superior de transplantes nos hospitais públicos, o que significa, segundo uma técnica superior que de imediato se demitiu, que “haja doentes que se podem salvar mas que vão morrer porque o país está em dificuldades económicas” (Público, 3/9/11). Ou seja, o ministro, certamente homem de existência a mais normalizada, sem comportamento desviante, de registo criminal impoluto, porventura frequentador dos concertos Gulbenkian ao fim da tarde, o marido mais amoroso, o pai mais extremoso, o crente mais devoto, o colega mais gentil, o cidadão mais pacífico e cumpridor, sente-se habilitado, como Adolf Eichmann, a cometer os actos mais violentos e bárbaros desde que a sua acção se encontre legitimada por um sistema social e político ou uma teoria filosófica ou religiosa – é a “banalidade do mal”, prosseguida por homens normais, sem aleijões psíquicos, entorses sociais de infância ou traumas psicanalíticos. A acção deste ministro evidencia-se hoje como a face do mal – homens “bons”, no Governo, na direcção de grandes empresas, de grandes instituições, praticam o mal com o à-vontade próprio de quem está praticando o bem. Sabemos como tudo isto vai acabar – todos a pagarem tudo, sustentando um Estado que não retira um por cento aos impostos, pelo contrário, aumenta-os anualmente: pagaremos o Serviço Nacional de Saúde através dos impostos e pagá-lo-emos de novo como “utentes” deste serviço sempre que a ele nos dirigirmos. Dito de outro modo: uma minoria acabará riquíssima, a grande maioria paupérrima, e o Estado, vivendo à custa de ambas, sorvendo dinheiro e mais dinheiro, irá pagando a si próprio os erros de uma ou duas gerações de actuação de políticos medíocres desde meados da década de 1980, todos altamente recompensados pelos seus errados serviços à população que os elegeu. O Estado, assim desgovernado desde há cerca de vinte anos, é hoje ocupado por tais políticos, o maior inimigo dos portugueses. Nada dele há a esperar senão a arte de enganar as expectativas da população. Governo iniciado, logo aumenta impostos pessoais, IVA, transportes, gás e electricidade – como se vê, é, assim, facílimo governar (até eu daria um óptimo político) -, aumentam-se bens essenciais para empresas e população e depois, ingenuamente, com o ar seráfico que os economistas ostentam, pede-se que trabalhemos mais e sejamos mais competitivos. Da classe média, nada se diz porque não existe: padrão específico do Terceiro Mundo, não da Europa.

Portugal é hoje um país sonâmbulo: 600 000 desempregados, 2 milhões de pobres, outros tantos m risco de o ficarem se os apoios do Estado se esvaírem; 4 milhões de analfabetos funcionais; 85% de pequenas empresas instáveis com menos de dez trabalhadores; uma escala etária em acelerado processo de inversão e uma taxa demográfica de regeneração a rasar o nulo; uma oligarquia político-económica constituída por 50 000 burocratas impiedosos que se apoderaram ferreamente da totalidade das estruturas administrativas do Poder, cujo nível cultural sobre a história de Portugal e comoção sentimental face à pobreza são praticamente inexistentes; um sector imobiliário envelhecido de casas apertadíssimas de duas assoalhadas; uma política administrativa que se apoderou de todos os espaços públicos patrimoniais, exigindo subidos pagamentos para a sua frequência; esperas de 4 horas em serviços médicos de urgência e de meses e por vezes anos para uma simples operação, 3 a 4 meses para uma operação de urgência a um cancro, 19 meses de espera para uma consulta de obesidade nos hospitais públicos (Público, 5/10/11); subúrbios miseráveis próprios do Terceiro Mundo; um relativismo ético entre os cidadãos que imita a corrupção nos negócios do Estado e a total falta de ética presente na vida de políticos conhecidos, cujo exemplo (i)moral reside no oportunismo partidário e na ocupação desenfreada e terrorista de funções públicas, sacando do Estado o máximo possível em honorários – elite altamente incompetente: uma autêntica mancha podre que infecta a totalidade da vida nacional e corrói a dignidade de qualquer cidadão eticamente nobre. Guiado por esta elite, que se assenhoreou dos postos governativos e dos lugares do Parlamento, meras cabeças de rebanho, totalmente desprovida de cultura e de sentido ético, Portugal não tem outro destino senão seguir as soluções formatadas que fizeram da França, da Itália e da Inglaterra países hoje historicamente decadentes, dos quais nada há a esperar de promissor no futuro.

 

 […]

   
 

A progressiva e aceleradíssima informatização electrónica da sociedade por via de uma ideologia sem rosto nem personalidade, assente exclusivamente no controle e na segurança, e a funda queda demográfica anunciada para meados deste século por via das políticas sociais relativas à família provam a profundíssima descristianização de Portugal, de efeitos absolutamente imprevisíveis na criação de uma sociedade futura desprovida de éticas espirituais assentes em valores humanistas, porventura obediente a um totalitarismo tecnocrático e informático, pelo qual os portugueses vindouros abdicarão da liberdade em nome da segurança e da abastança. Desde a década de 1990, o aparelho de Estado, privilegiando exclusivamente um sector da sociedade –a economia-, desprezando fundo os valores morais e espirituais próprios da cultura portuguesa, tem gerado na mente dos portugueses uma representação parcial de si próprios  que, incapaz de se elevar à unidade de uma ideologia estruturada e consolidada, se caracteriza pela passividade cívica, compensada por uma hipervalorização do individualismo, assente na fórmula amoral do “salve-se quem puder”. Mistura de complexo pombalino com um arreigado individualismo americano, o projecto político português caracteriza-se hoje, no princípio do século XXI, pela exaltação unidimensional do homem técnico, o homem-eficiente, o homem contabilista, o homem robótico, desprovido de consciência histórica global, funcionando exclusivamente segundo o duplo horizonte de raciocínios técnicos quantitativos e consequentes objectivos. A classe política recente, posterior à dos fundadores da nossa actual democracia, encarna em alto grau de excelência este tipo de homem. Não são políticos os nossos governantes de hoje, mas economistas (os falsos profetas do século XXI), técnicos, robots substituíveis uns pelos outros, possuindo o mesmo vocabulário, aplicando invariavelmente o mesmo argumentário  da eficiência de custos e proveitos, totalmente desacompanhados de uma dimensão cultural e espiritual para a sociedade.

 

[…]

 

Como não sou político, nem vocação para tal tenho, não escrevi sobre o Estado e a política, mas sobre o fundamento filosófico que confere prazer interior à acção pela qual um homem, situado em centro de poder, humilha outro, extorquindo-lhe direitos – o mal.

 

[…]

 

Hoje, sempre que vos apareça no ecrã da televisão um economista com funções governamentais – não duvideis: eis a face explícita do mal, aquele que levou a Europa à decadência e se prepara para, alegremente, destruir o planeta.

 

[…]

 

Lamento que o leitor não possa sentir o cheiro das camisas suadas das negras minhas vizinhas de comboio, que, como escravas, nos lavam as retretes e aspiram e enceram os nossos corredores, e não possa contemplar o olhar aguado de tristeza, resignação e frustração dos milhares de velhos de Mem Martins e do Cacém que, após uma vida de 40 a 50 anos de trabalho, recebem da comunidade umas parcas 30 moedas de Judas para que não caiam mortos de fome a cada esquina. Lamento. Se eu tivesse tido esse talento, o leitor não precisaria de ler este livro: sentiria e contemplaria sem intermediação a face do mal.

 

Miguel Real, Nova Teoria do Mal

publicado por Elisabete às 15:55
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Quarta-feira, 18 de Abril de 2012

No 170º aniversário do nascimento de Antero de Quental

 
TENTANDA VIA

I


Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus, vem vagaroso...
Vem longe ainda a praia do futuro...

É a grande incerteza, que se estende

Sobre os destinos dum porvir, que é treva...
É o escuro terror de quem nos leva...
O futuro horrível que das almas pende!

A tristeza do tempo! o espectro mudo
Que pela mão conduz... não sei aonde!
– Quanto pode sorrir, tudo se esconde...
Quanto pode pungir, mostra-se tudo. -

Não é a grande luta, braço a braço,
No chão da Pátria, à clara luz da História...
Nem o gládio de César, nem a glória...
É um misto de pavor e de cansaço!

Não é a luta dos trezentos bravos,
Que o solo amado beijam quando caem...
Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,
Por não dormir no leito dos escravos...

É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima tristeza
Que à morte leva... sem se ter vivido!

Não há aí pelejar... não há combate...
Nem há já glória no ficar prostrado –
São os tristes suspiros do Passado
Que se erguem desse chão, por toda a parte...

É a saudade, que nos rói e mina
E gasta, como à pedra a gota d'água...
Depois, a compaixão, a íntima mágoa
De olhar essa tristíssima ruína...

Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhá-las – a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.

Cada pedra, que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaços!
 
Antero de Quental

[Ponta Delgada, 18 de Abril de 1842-Ponta Delgada, 11 de Setembro de 1891]


 
publicado por Elisabete às 09:31
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