Acordei com uma sensação de fome a apertar-me o estômago. […] Simultaneamente, reparei que estava num outro lugar qualquer […] uma cave escura, onde eu estava deitado dentro de um saco-cama. O que faço aqui, pensei, enquanto tentava identificar o lugar onde me encontrava. Sentia um coração a bater dentro da cabeça, depois verifiquei que era mais o eco de passos que se aproximavam. Percebi que era urgente ficar lúcido, erguer-me a pulso daquele torpor que me invadia o corpo e me toldava o raciocínio. Os cartazes nas paredes, do Che Guevara, do Poder Popular, do Palma Inácio, tiravam-me as últimas dúvidas: estava na cave da sede da Organização, e alguém chegava para me passar o turno de vigilância no telhado. […]
Reconheci a juba curta do Quim Comandos, adivinhei-lhe um sorriso arrumado ao canto da boca, enquanto me punha de pé. O Gato seguiu-me em silêncio pela escada de ferro em caracol que dava acesso ao parapeito do telhado. Fumámos o último cigarro antes de sair para o exterior, para fazer o turno das três às seis. Espreguiçámo-nos, verificámos as armas, um ritual necessário a quem vai passar três horas com os ossos a comer o frio da noite, sem poder conversar a não ser por sinais.
[…]
Lá em baixo passavam carros com lentidão. Atendendo à hora adiantada da madrugada, o volume de tráfego era excessivo. A Praça do Marquês era ponto de encontro de chulos, bimbos, proxenetas,passadores, dealers, prostitutas, travestis, bichas, que atraíam carros como enxames de moscas à volta da bosta. Vozes e gritos dispersos coados pelas árvores e pelas sombras da noite indiciavam as goelas da porta do dancing club onde, às vezes, de madrugada se partiam mesas, cadeiras, e algumas cabeças. E o nosso ofício, pendurados do telhado da Sede da Organização, era peneirar os sons, distinguir movimentos anormais dentro da anormalidade permanente da noite no Marquês. Identificar carros que rodeiam vezes de mais a praça, e que possam não ser apenas putanheiros. Vigiar as copas das árvores do jardim central, onde se podia plantar um atirador para visar a Sede. Controlar a manta de retalhos que se estendia pelo quarteirão, por onde poderia vir a salto algum intruso. Era um trabalho de tensão e de paciência, seguir movimentos suspeitos com a ponta do cano da G3, colocar na mira os carros que abrandavam a marcha ao rolar em frente ao nosso posto de observação. Distinguir entre curiosidade e ameaça era como um jogo, uma intuição. Estar pronto para entrar em acção naquele instante infinitesimal que separa a dúvida da certeza, entre balear curiosos e inocentes ou deixar abrir fogo um eventual inimigo. Eu sorria no escuro, apertando o ferro gelado da espingarda-metralhadora, sentindo o seu poder. Mais eficiente que mil palavras de ordem, com que o Grito do Povo enchia a Avenida dos Aliados. Eu também gostava de gritar até ficar rouco, gritar e marchar confortava-me a alma e as manifestações faziam-me arrepios na espinha. Tanta gente junta gritando pelo Socialismo, a Revolução, pelo Poder Popular, dava uma quase certeza de se poder transformar o Mundo ao amanhecer, entre coros de vozes e gente anónima de mãos dadas. As bandeiras vermelhas a esvoaçar provocavam-me arrepios na espinha, e eu entoava entredentes a Internacional, a Bandiera Rossa, sentindo força de gigante dentro do peito. Mas quando a manifestação chegava ao fim e a longa lagarta humana se dispersava em pequenos cachos de gente que já não gritava, apenas murmurava, ficava uma sensação de vazio, de impotência, de apreensão. De medo que, a coberto da noite, alguém subvertesse os sonhos por que se gritava de dia. De angústia, por não saber se ao acordar no dia seguinte não estaria tudo a ferro e fogo, destruído pelas sinistras forças do ELP, do MDLP, dos Ex-Pides, fachistóides e legionários, gente que se vestia com o veludo negro da noite para tentar subverter a Democracia. Eu continuava a sorrir no escuro, agarrado ao aço frio da canhota. Algures, pendurado no beiral, o Gato também devia estar a sorrir. Para nós, no cimo de um telhado e na ponta do cano de uma arma, não havia limites para o sonho. Como se as armas falassem mais alto que todos os gritos de Povo, a as balas fossem palavras de ordem muito mais certeiras e demolidoras.
O gorgolejar do vómito dos bêbados nas esquinas dissolvia-se em gritos de puta ao longe, no tossir dos carros, nos ecos de zaragata no dancing club. A lesma húmida da noite descia sobre as minhas costas, enquanto recordava as lições do Quim Comandos sobre técnica de soltar o corpo. O telhado recoberto de visgo não era o local ideal para treinar artes musculares, o perigo de queda não permitia grandes abstracções. O sono e o cansaço tornavam os olhos pesados, e era preciso fazer um esforço de concentração para permanecer com os sentidos alerta.
Um carro, igual a tantos outros, aproximou-se lentamente. Estacou, expondo os seus ocupantes. Na ponta das armas, reconheci os ombros largos e os cabelos do Mau Tempo, as farripas de palha do Bailarino, o vulto baixo e entroncado do Tono da Viela. Os três pareciam enquadrar um quarto personagem magro e alto, que parecia vir a contragosto, como se não agradecesse a escolta. Outro carro aproximou-se, e largou outro trio, onde apenas se destacavam os cabelos de prata do Velho. Os dois grupos encontraram-se no meio da rua, e demoraram-se em conferência. As palavras não chegavam ao cimo do telhado onde me encontrava, mas havia qualquer coisa que não estava bem com o homem alto. Pelo menos, parecia que estava a ser submetido a uma espécie de interrogatório. Depois, como se decidissem outra coisa, partiram novamente. Pelos gestos do grupo, quase podia apostar que o matulão era algum bufo que o Velho ia pôr a cantar. Quando lhe cheirava a esbirro da Pide, ele perdia a noção das proporções. Dizia que começava a ver tudo desfocado, vinham-lhe à memória os tempos da Solitária, da tortura da gota de água, da tortura do sono, dos mamilos queimados a pontas de cigarro, das sessões de porrada que apanhara nas caves da António Maria Cardoso. Nada que o tivesse feito denunciar a célula da ARA, quando pertencera ao Partido Comunista. Recordava o Forte de Peniche com lágrimas nos olhos. Chorara lágrimas de alegria quando Cunhal se evadira, e ele ficara a cumprir o resto da pena. Só chorara outra vez mais, contara ele. Quando dera o salto para a Polónia, com a ajuda do Partido, e em seis meses perdera a fé no Centralismo Democrático. Depois surgira-lhe atravessado na vida o Palma Inácio, o Camilo Mortágua, e renascera para o sonho e a aventura. Teria que haver algo, outra via, dizia ele. Qualquer coisa… Eu bebia as palavras que se lhe acendiam nos olhos, e sentia o mesmo arrepio da Internacional, da Bandiera Rossa, da Grândola, das cantigas do Zeca. Vezes sem conta me narrara o assalto ao Banco da Figueira da Foz, em que desempenhara o papel de mecânico da avioneta em que o Palma se escapulira para o estrangeiro, uma história difusa que ele recontava de muitos modos diferentes, o que me fazia desconfiar da sua veracidade. Mas o desejo de acreditar tornava sempre reais as suas palavras, por mais contraditórias que elas fossem.
Passei o resto do turno em sobressalto. Como se esperasse o regresso do Velho. Como se pudesse avisá-lo que mais tarde tinha um encontro marcado com a morte. Como se isso fosse possível.
Às seis horas da madrugada vieram substituir-nos. Uma aurora leitosa crescia nos telhados, e nos gritos de pássaros ensonados. Descemos, eu e o Gato, ainda em silêncio. De facto, não havia nada para dizer. Adormeci dentro do saco-cama, como se caísse num poço.
[…]
Quero regressar ao passado, a ver se ainda vou a tempo. Desta vez, não vamos falhar. Não sei se acerto na espira certa do tempo, estas coisas da hipnose não sei se acontecem à medida dos desejos. Ofélia, ajuda-me a regressar àquela noite do vinte e cinco de Novembro, onde estávamos todos reunidos numa cave. Tu não sabes, Ofélia, nunca poderás saber a força que nos unia, eu, o Gato, o Alegria, o Mau Tempo, o Quim Comandos, o Professor, a Adélia, o Cofres, o Tono da Viela, o Leonel, a Lisa, a Elsa, o Dílio Bailarino, o Hiroxima, o Vagamente, o Beto Doutor, o Poeta, espalhados em silêncio esperando pelas armas pesadas que vinham de Lisboa. Tu nunca poderás ter a noção de como foi dura a espera, como a nossa força se transformou em desespero, pela madrugada dentro, quando nos convencemos de que as armas não chegariam nunca.
- Concentra-te na minha voz, tu tens muito sono…
Sim, sinto uma vontade irresistível de adormecer, e acordar noutro tempo. Desta vez nada vai falhar, iremos a Maceda buscar os arsenais de reserva, não ficaremos eternamente à espera. Cortaremos a Ponte da Arrábida e o Viaduto de Santo Ovídio na noite de vinte e quatro para vinte e cinco, abriremos caminho à bala e à granada, morreremos se preciso for, para que a noite não acabe. Para não voltarmos a acordar de manhã com os sonhos todos desfeitos. Revolução ou morte, será o nosso grito. Talvez ainda haja tempo para fazer com que não tenha acontecido o que aconteceu. Talvez possamos salvar a Revolução, repito vezes sem conta, enquanto escorrego na voz de Ofélia direito ao passado com a certeza de ter uma missão a cumprir. Como se caísse num poço sem fundo, sem certeza de regresso.
Desta vez, não vai falhar.
Miguel Miranda, O Estranho Caso do Cadáver Sorridente (Prémio Caminho de Literatura Policial, 1997)
Esta é uma iniciativa política de pessoas livres, unidas pelos ideais da esquerda e pela prática democrática. Aberta a todos os cidadãos, com ou sem partido.
Acreditamos que apenas a expressão de uma forte vontade cívica, por parte de cada um de nós, poderá dar a resposta adequada aos problemas do nosso tempo.
Portugal afunda-se, a Europa divide-se e a Esquerda assiste, atónita.
As raízes desta crise estão no desprezo do que é público, no desperdício de recursos, no desfazer do contrato social, na desregulação dos mercados, na desorientação dos governos, na desunião europeia e na degradação da democracia.
Em Portugal e na Europa, a direita domina os governos, as instituições e boa parte do debate público. A direita concerta-se com facilidade, tem uma agenda ideológica e um programa para aplicar. A direita proclama que o estado social morreu e que os direitos, a que chamam adquiridos, são para abater.
Em Portugal e na Europa, a esquerda está dividida entre a moleza e a inconsequência. Esta esquerda, às vezes tão inflexível entre si, acaba por deixar aberto o caminho à ofensiva reacionária em que agora vivemos, e à qual resistimos como podemos.
Resistir, contudo, não basta.
É necessário reconstruir uma República Portuguesa digna da palavra República e construir uma União Europeia digna da palavra União.
É preciso propor aos portugueses, como aos outros europeus, um horizonte mais humano de desenvolvimento, um novo caminho para a economia e um novo pacto de justiça social.
É possível fazê-lo. Uma esquerda corajosa deve apresentar alternativas concretas e decisivas para romper com a austeridade e sair da crise, debatidas de forma aberta e em plataformas inovadoras.
A democracia pode vencer a crise. Mas a democracia precisa de nós.
Apelamos a todos aqueles e aquelas que se cansaram de esperar – que não esperem mais.
É a nós todos que cabe construir:
UMA ESQUERDA MAIS LIVRE, com práticas democráticas efectivas, sem dogmas nem cedências sistemáticas à direita, liberta das suas rivalidades, do sectarismo e do feudalismo político que a paralisa. Uma esquerda de cidadãos dispostos a trabalhar em conjunto para que o país recupere a esperança de viver numa sociedade próspera e solidária.
UM PORTUGAL MAIS IGUAL, socialmente mais justo, que respeite o direito ao trabalho condigno e combata as injustiças e desigualdades que o tornam insustentável. Um país decidido a superar a crise com uma estratégia de desenvolvimento económico e social, com uma economia que respeite as pessoas e o ambiente, numa democracia mais representativa e mais participada, com um Estado liberto dos interesses particulares que o parasitam.
UMA EUROPA MAIS FRATERNA, à altura dos ideais que a fundaram, transformada pelos seus cidadãos numa verdadeira democracia. Uma Europa apoiada na solidariedade e na coesão dos países que a formam. Uma Europa que ambicione um alto nível de desenvolvimento económico, social e ambiental. Uma União que faça do pleno emprego um objectivo central da sua política económica, que dê um presente digno aos seus cidadãos e um futuro promissor às suas gerações jovens.
Et voilà... Depois de mais de três anos de impasses, durante os quais o financismo asfixiou quase completamente a política, a vitória de François Hollande parece ter finalmente alterado a situação, criando condições para que se trabalhem outras respostas à crise em que todos, na Europa, temos vivido. O conformismo financista e conservador foi indiscutivelmente abalado. Mas está longe, muito longe, de ser vencido: a batalha das ideias apenas começou.
Coincidindo com a derrota de Merkel nas eleições regionais de Schleswig-Holstein (e o anúncio de outras), e com o implosivo resultado das legislativas gregas, pode dizer-se que esta vitória da esquerda nas presidenciais francesas acontece no momento certo, para ajudar a libertar a imaginação política e a abrir novos horizontes ideológicos.
Agora, o grande desafio é não falhar a oportunidade criada com esta vitória. É fazer deste resultado a ocasião de uma transformação política de fundo: é disto que vai depender o futuro do novo Presidente francês. E não só, porque o que está em jogo é muito mais do que um destino pessoal, ou mesmo nacional: é a recuperação da Europa ou a continuação do seu declínio, é o relançamento do socialismo democrático europeu ou o prolongamento da sua erosão.
Nas actuais circunstâncias, o passo europeu é o mais imediato e o mais decisivo. É dele que, na verdade, tudo vai depender: o novo Presidente francês tem que se mostrar rapidamente capaz de lidar com A. Merkel, impondo um novo equilíbrio na relação com a Alemanha, ou talvez mesmo um novo eixo europeu (França/Itália/Espanha, como sugeriu Romano Prodi), bem como um claro reforço da solidariedade transnacional e da coordenação comunitária, cuja legitimidade política carece de ser robustecida.
Mas em paralelo com este passo europeu é igualmente vital o modo, e o ritmo, com que François Hollande seja capaz de passar das palavras aos actos, concretizando a tão exigida política de crescimento económico, bem como o modo como a articulará com uma nova política de finanças públicas.
Apesar de herdar uma situação, nacional e europeia, que o vai obrigar a governar no fio da navalha, François Hollande tem alguns trunfos valiosos. Nomeadamente dois: a sua visão da política e uma boa preparação nos dossiers mais decisivos. Quanto ao primeiro, ele compreende bem que a política é, antes do mais, uma questão de imaginário e de simbolismo, e que é esta a chave do espírito colectivo de qualquer nação e, nomeadamente, da base popular de qualquer transformação.
O oposto, como se sabe, do que fez Nicolas Sarkozy, que apostou desde o dia da sua eleição, em 2007, na dessacralização da função presidencial e na banalização do exercício político. Sarkozy - como muitos outros líderes - foi nisto vítima de uma das mais vulgares ilusões político-mediáticas dos últimos tempos: a de que o que importa numa liderança é a velocidade, a energia e o voluntarismo que exprime, numa permanente combinação - como se de um action man se tratasse - da vertigem do movimento com a manipulação estatística e a amnésia do cidadão/espectador.
O tempo tem mostrado sem piedade a enorme fragilidade desta ilusão performativa, e as suas trágicas consequências. Como tem mostrado, e bem, que sem ideias novas não há políticas inovadoras; que sem reflexão paciente não há acção eficaz; que sem deliberação ponderada não há decisão acertada; que sem profundo conhecimento dos problemas não há soluções consistentes.
Afinal, a mais importante das coragens é a coragem das ideias. Sem ela, a autoproclamada "determinação" não passa nunca ou de teimosia ou de exibicionismo, o que - num caso como no outro - prenuncia sempre um aparatoso desastre político.
Quanto ao segundo trunfo, o da preparação nos dossiers mais sensíveis, os socialistas franceses trabalharam bem nos últimos anos, nomeadamente através do persistente contributo do "Laboratoire des Idées", criado por Martine Aubry (e que desenvolveu um impressionante leque de propostas altamente inovador), da Fondation Jean Jaurès, e do think-tank Terra Nova.
Ao contrário do que se papagueia tantas vezes, não tem havido falta de ideias sólidas e inovadoras para se enfrentar o financismo, nem de propostas bem fundamentadas para se lidar com a crise sistémica que a nossa civilização enfrenta. Não, o que tem existido é a falta de ligação dessas ideias com a visão e a acção políticas - justamente o problema que esta vitória à esquerda nas presidenciais francesas pode ajudar a resolver. Porque a vertente inovadora das ideias só se revela (e avalia) verdadeiramente quando elas emergem com a miragem, o impulso e a força do poder. François Hollande surpreendeu muita gente quando, por altura das "primárias" de Outubro passado, apareceu a conversar demoradamente com Pierre Rosanvallon nas páginas da revista Philosophie Magazine, sobre os grandes impasses e os mais agudos desafios que o mundo do século XXI colocam à esquerda e ao
socialismo democrático, fazendo-o sem nostalgias encantatórias nem diabolizações inúteis.
Agora, decidiu fechar a campanha presidencial com uma longa conversa (que N. Sarkozy recusou) no jornal Le Monde, com outro dos mais prestigiados intelectuais franceses, Edgar Morin. Vale a pena reter o que François Hollande afirmou na véspera da sua eleição, quanto aos seus objectivos e às suas responsabilidades.
Quanto aos objectivos, assumiu querer "fazer com que a democracia volte a ser mais forte do que os mercados, com que a política retome o controlo da finança e o domínio da globalização". Quanto às responsabilidades, afirmou que a principal é "ser o Presidente da saída da crise. O que supõe uma transição económica, energética, ecológica e também geracional, que permita à juventude cumprir o seu próprio destino".
Com fama de indeciso e de moleza, a verdade é que Francois Hollande surpreendeu toda a gente com a sua astúcia estratégica, e com uma campanha, programática e no terreno, sem falhas. O que agora falta saber é se ele tem a coragem das suas ideias: destas ideias.
Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias [10 de Maio de 2012]
Sobressalto cívico contra uma democracia ultrajada
O modelo de democracia e de contrato social, vertidos na CRP, estão em risco com esta governação?
A Associação 25 de Abril (A25A) recusou participar nas comemorações oficiais do 25 Abril, embora tenha participado nas comemorações populares. Também artífices fundamentais da implantação do regime demoliberal e representativo, o antigo Presidente da República (PR) Mário Soares e o antigo deputado e vice-presidente da AR (Assembleia da República) Manuel Alegre juntaram-se-lhe no protesto. Entre os argumentos da A25A está a ideia de que “o contrato social estabelecido na Constituição da República Portuguesa (CRP) foi rompido pelo poder”. Será que o modelo de democracia e de contrato social, vertidos na CRP, estão em risco com esta governação?
Em primeiro lugar, é óbvio que princípios fundamentais de uma democracia representativa têm sido violados com a acção deste governo. Numa democracia representativa há duas funções essenciais (das eleições): a representação e a responsabilização. A representação assenta num “contrato” entre os partidos, que propõem aos eleitores determinados pacotes de políticas públicas, e os eleitores, que votam nos diferentes competidores tendo em conta essas propostas. Basta ver o vídeo que circula no YouTube, “Passos Coelho (PPC) Best of 2010-2011”, para constatar que estamos perante um monumental embuste político. Aí se pode ouvir PPC, candidato, em muitos casos já depois de conhecido o acordo com a troika, a dizer que não cortará salários, que não cortará subsídios, que se tiver que subir impostos privilegiará os impostos indirectos (IVA), que não acabará com o IVA intermédio para a restauração, que poupará as classes médias, que se oporá a cortes nos benefícios fiscais (em saúde e educação), que não quer liberalizar os despedimentos… que nunca dirá que só há um caminho… E note-se que muitos dos compromissos violados, porventura os mais gravosos, não decorrem do acordo com a troika (cortes de salários, subsídios e pensões), e contrariam os programas eleitorais e de governo dos partidos vencedores em 2011. Não é a primeira vez que há compromissos eleitorais que são violados, mas nesta extensão, com esta gravidade e em tão pouco tempo, é uma novidade absoluta. Mais grave: tudo isto tem sido feito com o beneplácito do PS, e as suas “abstenções violentas”, e do actual Presidente da República. Acresce que vários constitucionalistas de prestígio, bem como um grupo de deputados que pediu a fiscalização constitucional dos cortes de subsídios, pensam que muitas destas medidas representam entorses ao Estado de direito e à CRP. Perante isto, a ministra da Justiça não diz que cumprirá escrupulosamente as orientações do TC, quaisquer que elas sejam, como competiria a quem tem a tutela do Estado de direito, diz sim que se o TC chumbar os cortes “será o colapso”, “porque não há outro caminho”.
Em segundo lugar, temos a escandalosa dualidade de critérios (ver também texto da A25A). De facto, para transformar o Estado social num Estado assistencial, para liberalizar os despedimentos (tornando-os absurdamente fáceis e baratos), para aumentar a carga de trabalho e reduzir remunerações (num dos países da UE onde já se trabalha mais horas e o pagamento horário já é dos mais baixos), tem sido uma urgência absoluta e uma vontade explícita de ir muito além da troika. Pelo contrário, e apesar das circunstâncias alegadamente extraordinárias que explicariam a necessidade de violar grosseiramente compromissos eleitorais cruciais, noutros domínios que tocam os privilégios do sector privado que vive de principescas rendas pagas pelo Estado, não só nada (ou muito pouco) se faz, como os indícios apontam para se querer ficar muito aquém da troika, se é que se quer cumprir o memorandum: “rendas excessivas” nas parcerias público-privadas e no sector da energia; cortes nos “consumos intermédios” (leia-se cortes na externalização de funções do Estado para escritórios de advogados e firmas de consultoria); etc. Tudo isto demonstra que não há só um caminho, e que o caminho seguido resulta não tanto do acordo com a troika como de um programa ideológico radical (da coligação governamental) que se esconde atrás do memorandum.
Só por isto, o sobressalto cívico da A25A, de Soares e de Alegre está inteiramente justificado. O que espanta é que, perante o monumental embuste político, não haja um movimento geral de indignação (dos cidadãos, dos jornalistas, da oposição, dos cientistas sociais e políticos, etc.), antes uma apatia geral. Espanta também, a contrário do que se passa noutros países, a fraqueza dos novos movimentos sociais e a sucessão de embriões falhados de novos partidos, que têm surgido como resposta à crise democrática que vivemos e ao bloqueamento das respostas sociopolíticas à mesma.
André Freire
(Politólogo, professor no ISCTE-IUL)
[Público, 2 de Maio de 2012]
Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles.
Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem aventuranças da Eternidade. As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedopara os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.
Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos por, como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano.
Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.
Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros.
Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.
António Lobo Antunes, in Visão [12 de Abril de 2012]
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