Quarta-feira, 13 de Novembro de 2013

Andanças para a Liberdade II

Esta apresentação, que aqui deixo escrita, sobre o livro do amigo e companheiro Camilo Mortágua, é a continuação do texto que fiz sobre o 1º volume das Andanças que trata do período entre 1934 a 1961.

Trata-se do resumo do livro, tal como o seleccionei, mas quis dar a “verbe” pessoal da narrativa ao autor e daí as longas citações.

Não é nem um estudo literário nem uma crítica histórica. É, antes de mais, uma ficha de leitura que utiliza retalhos da história de vida, escrita pelo seu próprio autor. É assim um resumo descritivo.

Pretendo, com este texto, fazer uma apresentação de cerca de meia hora como se tratasse de um clube de leitura dos meus tempos de juventude, em que um dos participantes fazia o resumo dum livro e a partir daí desenvolvia-se um debate. Isto era, naqueles tempos do fascismo, uma maneira de improvisarmos uma “catedral proletária”, conceito que no séc. XIX, nos meios operários, veio a gerar as conhecidas universidades populares.

Este livro do Mortágua, história de vida e história de ensino, tem a singularidade de ser um extraordinário documento para o entendimento da luta antifascista.

E, para melhor saborear este texto vivido, é necessário ouvir o testemunho directo do seu autor. A sua escrita, tão rica de imagens e de oralidade, torna esta prosa imprescindível para compreender a profundidade de uma experiência de vida, de suor e de lágrimas mas também de humor, coragem e amor que aqui vamos conhecer.

  Na recensão sobre o primeiro volume escrevi que, por detrás da linguagem coloquial e espontânea de Camilo Mortágua, a oralidade presente na sua narrativa surpreendia pela profundidade que ela revelava.

Camilo Mortágua usa uma metodologia perspicaz que lhe permite um alargamento da consciência a que Platão se refere num dos seus diálogos filosóficos. Assim como Platão pretende chegar à consciência pela capacidade de distanciamento do instinto, das emoções e da inteligência com o socorro dessas três componentes antropológicas do “Eu”, Camilo Mortágua utiliza os três elementos que constituem o que ele designa por “CAAC” (Colectivo de Auto Análise Comportamental) e que se refere aos seus três heterónimos que lhe permitem uma tomada de consciência mais ampla e reflexiva: “Come e Cala”, o “Batata” e “Zé Ninguém”.

Para obter esta consciência mais ampla e reflexiva, Camilo Mortágua escuta a vivência integral do seu ser: o instinto, as emoções e a inteligência, obtendo assim olhares diversificados para ver e prever as situações. Procura explicar a sua própria viagem. Assim, tal como Platão na sua metáfora sobre a articulação complementar do “coche”, dos “cavalos”, do “cocheiro” e do “rei”, também Camilo Mortágua sabe que para uma maior consciência é necessário dialogar com os vários heterónimos que constituem a sua própria personalidade complexa. 

A comparação metafórica de Platão é a seguinte:

  1. O “coche”, instinto, é o corpo mecânico em que cada um de nós se desloca;
  2. Os “cavalos” são as emoções, força viva dos afectos contraditórios e temperamentos desiguais que marcham nestes animais atrelados ao veículo;
  3. O “cocheiro”, inteligência intelectual, harmoniza as funções múltiplas do “coche”, dos “cavalos” e dos “arreios” (rédea e chicote) próprias da sua competência.
  4. O “rei”, que se encontra dentro do veículo, é o “eu superior” ou seja, a consciência reflexiva que ilumina a marcha e dá sentido à viagem a fazer.  

Este segundo volume começa em 1961. “1961 O Ano Que Mudou Portugal” como escreveu João Céu e Silva é também o ano em que uma grande mudança se operou em Camilo Mortágua.

“29 de Janeiro de 1961”, como escreve Camilo Mortágua, “era um domingo luminoso. Um fim de tarde cinematográfico.” Como se pode ver, esta escrita transporta os factos históricos para um cenário real que nos surge agora como uma espécie de filme de suspense.

A força das imagens, a sedução encantatória dos ambientes e a acção permanente deste enredo vivenciado, transforma-nos a nós em personagens do próprio filme dos acontecimentos.

 

…num mar calmo azul celeste, pintalgado de faíscas de branca espuma, um ou outro pássaro esvoaçando em busca de abrigo para a noite, o Santa Liberdade, a baloiçar muito docemente, quase tão quieto como se estivesse ancorado no cais de Alcântara, quieto mas livre, em águas internacionais, uma meia centena de milhas ao largo do Recife.

Reunidos à proa num canto do deck superior (eu e os inseparáveis companheiros do meu “colectivo de auto análise comportamental” – CAAC) desfrutávamos da leve brisa que até nós trazia os acordes e as palavras da canção que amenizou os nossos dias de incertezas e encantou os animados bailes deste que foi, para a maioria dos passageiros, um inesperado e emocionante cruzeiro e, para os mais românticos e ousados, apesar do imprevisto, uma inesquecível viagem no barco do amor. (MORTÁGUA, 2013, 21)

É neste contexto que o embevecido poeta Camilo Mortágua desperta ao som do “Samba canção” de Dolores Duran que ouvia do grande salão onde decorria o animado baile: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier para enfrentar a noite do meu bem”.

Essa tomada de consciência surge rapidamente. Retomado o triálogo do colectivo de auto análise comportamental, a narrativa vai transformando esta história de vida cada vez mais empenhada na acção política do assalto ao Santa Maria. Esta operação de primeiro plano na panorâmica histórica é-nos apresentada com um contexto das chefias desta espantosa operação revolucionária, pioneira na história da revolução – a tomada de um barco.

Galvão respondia pelos portugueses e, pelos espanhóis, respondiam os Sottomayor e o Junquera de Ambia. Em seguida assistimos às visitas que chegam para observar e divulgar o sucesso da operação.

Os americanos chegam no “monstro cinzento com grandes números pintados de branco.” Era um submarino da esquadra americana com o contra-almirante Smith, representante do Presidente Kennedy. Vinha entabular conversa com o chefe Galvão, “Sandokan das Caraíbas” como lhe chamara uma senhora americana que viajava a bordo do Santa Maria.

Depois, Camilo relata ainda o nome dos comandos que tomaram o Santa Maria e traça-lhes o perfil profissional, analisa diferenças pertinentes nas chefias e tem tempo para narrar a lírica história de um amor entre uma jovem de 18 anos, a Magda, que pretendia ficar com o seu namorado, um dos companheiros do grupo de Camilo Mortágua, já depois do desfecho da operação. Prestimoso e elegante, Camilo Mortágua aconselha-a a partir, juntando-se assim aos outros passageiros que desembarcaram.

A atmosfera romântica finaliza esta epopeia do barco Santa Maria e Santa Liberdade com a citação de Natália Correia que chamou ao Santa Maria “pedaço da terra transportuguesa, longo símbolo e prenúncio da libertação do seu povo”.

A nostalgia saudosista percorre também a comoção de Camilo Mortágua a 3 de Fevereiro de 1961, quando disseram adeus ao Santa Maria.

 

“Naquela hora, pareceu-me um barco triste. Já não era aquele Santa Maria que entrara no porto do Recife adentro engalanado de brilhantes luzes e bandeirinhas coloridas.” (Idem, pág. 34)

 

Esse tempo no Brasil teve festa e regozijos. Os homens do Santa Maria eram disputados por toda a gente. Bailes e galas carnavalescas do Rio fizeram deste período um tempo de felicidade.

Porém, as andanças para a liberdade são feitas de claro e escuro, de sobressaltos e euforias. Por isso veio também o lado cinzento das revoluções. A narrativa desta audaciosa e prometaica operação dá lugar à soturnidade da noite, das quezílias e das traições. As divergências pessoais entre os exilados Galvão e Delgado são aqui relatadas. É com uma elegância acutilante que ele descreve essa situação. É um pano de fundo histórico que ensina a amadurecer, a conhecer homens e situações. E é assim que ele vai descrevendo a sua própria transformação. Por isso, este livro é também uma história de vida que é história de ensino para si próprio e para nós leitores. E, na monotonia triste daqueles dias, vai surgir a presença de Palma Inácio que lhe proporciona uma nova etapa na sua vida.

Segue-se então a viagem para Marrocos. Chegados aqui, fixam-se em Tânger. A casa é perto do Café Zagora onde a PIDE e seus acólitos rondam e observam o paradeiro dos revolucionários que se preparam para uma nova operação. Entre confusões e indecisões Palma Inácio revela o grito do canto do homem de José Régio que Mortágua cita:

 

Livre não sou, que nem a própria vida mo consente, mas a minha aguerrida teimosia é quebrar, no dia-a-dia um grilhão da corrente (Idem, pág. 73)

 

Foi decidido o novo plano da batalha, que Henrique Galvão denominou a operação “Vagô” escrevendo também o famoso panfleto que vai ser lançado de avião sobre Lisboa. A cena da tomada do avião que iria sobrevoar Lisboa é digna dum filme de acção. Depois de várias peripécias com pistolas e passaportes no aeroporto de Tânger, entram num “superconstelation” da TAP.

 

Quando o Palma deu sinal, levantou-se e dirigiu-se para a cabine de pilotagem. Segui-o. Entramos os dois. Atrás de nós Amândio e os outros companheiros posicionaram-se para impedir o acesso à cabine.

Meus senhores, muito bom dia, diz o Palma, em nome do Capitão Henrique Galvão queremos alterar o plano deste voo. Ou obedecem e tudo se passará normalmente, ou cedem-me o comando, obrigados pela força das nossas armas. Espero que a vossa colaboração seja pronta e sem hesitações.

Tínhamos fechado a porta da cabine atrás de nós e o Palma, de arma em punho, num tom muito calmo, de pé, olhando de cima para baixo, tinha-se dirigido ao Comandante e Auxiliares, sentados de costas para nós, nos seus respectivos postos.” (Idem, p.78)

 

 

 

Esta operação permitiu uma acção de larga propaganda que muito contribuiu para o reforço do antifascismo. Os panfletos lançados sobre Lisboa foram, como diz o Mortágua, foguetes a anunciar o princípio do fim da era do ditador Salazar e o princípio da tão desejada era democrática.

Regressam então novamente a Marrocos e depois, num compasso de espera, aguardam de novo o retorno ao Brasil. Camilo conta as dificuldades que vão sofrer com os vistos e as burocracias, revelando assim os compromissos da política internacional com Salazar. Nesta contenda sobressai a figura de Henrique Galvão que Camilo Mortágua reverencia. Contrariando a maior parte das posições assumidas por outros democratas, Camilo Mortágua considera Galvão como um consequente combatente e também um esforçado anticolonialista. A carta que Henrique Galvão escreveu a Camilo Mortágua revela realmente um dirigente bastante consciente das problemáticas tortuosas do processo revolucionário.

De 1965 a 1967 uma nova etapa se vai desenrolar na notável peripécia que é a sua vida. Parte para França vindo do Brasil. Aí refere o contexto da vida dos exilados com as suas facções, o seu lado escuro e luminoso. Relata duma forma realista a vida dura dos emigrantes, as misérias e alegrias contadas com uma inaudita capacidade narrativa, com comoção, nostalgia e compreensão humanista.

No meio de alguma agrura vai surgir de novo, na vida de Camilo Mortágua, como se de um paradigma luminoso se tratasse, a figura heróica de Palma Inácio. Juntam-se também Luís Benvindo e António Barracosa.

Realiza-se então a portentosa operação da Figueira da Foz relatada por Camilo Mortágua de forma épica e cheia de humor. Trata-se duma empresa de génio, de audácia e virtuosismo, duma iniciativa que vai permitir auto-sustentar um processo revolucionário através duma acção exemplar.

Camilo Mortágua resume assim a ideia: “A audácia torna o impensável possível.”

Esta operação foi um ato com contratempos, temores mas também riscos e audaciosas soluções. A sorte e o azar, o contexto envolvente e a iniciativa pessoal metamorfoseiam-se. E assim, os revezes da situação são por vezes promissoras “chances” de vitória. Este grupo revolucionário experimenta esta alquimia de transformar o negativo em positivo.

 

Se bem me recordo a nossa entrada no banco não teve nada a ver com aquelas cenas que se vêem nos filmes. Cara destapada, trajados normalmente, entramos como o faziam os clientes normais. Palma, eu, Barracosa e Benvindo, não sei se exactamente por esta ordem, uma vez colocados nas posições previamente combinadas, ficando um de guarda à porta para não deixar ninguém sair, mas permitir a entrada a quem quisesse entrar. O Palma anunciou ao que íamos e precisou a natureza política do ato, convidando os responsáveis a abrir imediatamente a casa forte …

Um dos gerentes, com um sorriso nos lábios disse: Não se pode abrir a casa forte porque falta uma pessoa que está ausente. São precisas três chaves e de momento só cá estão duas… Após um ligeiro parpadear colectivo, o Palma, com um ar tranquilo respondeu: Não faz mal, nós esperamos!

E esperamos aproximadamente 15 minutos em tempo real. Todo o tempo do mundo para quem o viveu, ou pelo menos o tempo suficiente para fazer minuciosa revisão do vivido e uma resignada perspectivação muito incerta do futuro imediato. Coisa insólita, o meu “caco” manteve-se absolutamente mudo e quedo, cada um tratando de cumprir com a maior concentração possível a missão que lhe estava destinada. Ao Palma e ao Barracosa competia-lhes manter os gerentes na ordem desejada e entrar dentro da casa forte, ensacar a mercadoria e entregar a cada um de nós um saco (apesar das inúmeras análises feitas durante a preparação, persistiam grandes dúvidas sobre o volume e o peso do “papel”); ao Benvindo, assegurar que quem se apresentasse à porta tinha de entrar e ninguém podia sair. A mim, a função de fechar na casa de banho quem entrasse e olhar atentamente para o conjunto.

Quando a terceira chave chegou com o gerente ausente, quem mais respirou de alívio foram os próprios funcionários do Banco. Posto ao corrente da situação, lá se convenceu que não tinha alternativa e a pesada porta do “tesouro” foi escancarada… Feita a “limpeza”, o Palma voltou a falar. Depois de voltar a insistir na natureza política do assalto e de felicitar todos os presentes pelo seu comportamento responsável que em muito ajudaria a causa da liberdade do nosso Povo, recomendou-lhes o seguinte: “As nossas vidas vão ficar dependentes do vosso comportamento nas próximas duas horas. As nossas mas também as vossas e a dos vossos filhos que neste momento são acompanhados por companheiros nossos. Mantenham-se quietos e dentro do Banco, sem qualquer tentativa de alarme. E assim tudo correrá bem para todos. O primeiro que ultrapassar a porta de saída, durante as próximas duas horas corre risco de vida. Não arrisquem a vossa vida pela ditadura”. 

Cada um com a sua carga ao ombro, um de cada vez, lá fomos saindo da” mercearia” com os nossos “sacos de batatas”. Passada a porta, dobrando à esquerda, e percorrendo os tais trinta passos pelo passeio até ao carro que nos esperava depois da esquina, saudando pelo caminho o polícia de segurança com quem nos cruzávamos, a andar para cá e para lá na sua rotina de todos os dias… O Ângelo Cardoso aguardava sentado no banco de trás do carro para abrir portas e dar rápida entrada ao Benvindo, condutor designado para o percurso até o aeródromo de Cernache. Com os cinco instalados e a mercadoria acondicionada na ampla bagageira, partimos por volta das 15h30.

Observando à nossa volta, nada se tinha passado de anormal. Comecei a acreditar que nos safaríamos daquela. Passados uns dez minutos, numa curva da estrada, com densa vegetação, a uns dez quilómetros da partida o Cardoso disse: “É aqui.” Com a viatura ainda em andamento saltou para a berma da estrada e atrás dele foi um saco, saco do qual mal podíamos ter adivinhado que alguns meses mais tarde, viriam a esvoaçar “ao vento que passa” pela recta de Mira e em outros pontos do País, como passarinhos enviados do céu, bilhetes de conto de reis! Consequências de andanças outras, que por serem essencialmente alheias, a memória não pode registar. 

Sem percalços, chegamos ao aeródromo de Cernache. Ali paramos o carro perto da avioneta e o Palma dirigiu-se ao guarda que já conhecia de anteriores visitas. Acompanhando pediu para encher o depósito, enquanto nós esperávamos um pouco distantes do hangar que servia de residência ao guarda e sua família.

Como não havia tempo a perder, perante a sua estranheza pela nossa atitude algo nervosa e inquieta, logo ali se explicou do que se tratava. Para lhe evitar complicações futuras o melhor seria ele e a mulher deixarem-se amarrar, para ficarem quietos o tempo suficiente até chegarmos ao nosso destino que evidentemente não dissemos qual era.

Sentaram-se em duas cadeiras às quais foram “atados”. Coube-me a mim “prender” a senhora, coisa que jamais tinha feito. A situação complicou-se quando o bebé começou a chorar. Então… vá lá… não se enerve, quer ver? Chegamos a cadeirinha do bebé para a senhora e deixamos-lhe um braço livre para lhe poder dar o biberão. Assim podiam ficar sossegados…

Quando o “desvio” da avioneta foi conhecido e a polícia ligou o caso ao assalto ao Banco, se a memória não me falta lá por volta das 7h da tarde, já o “passarinho tinha poisado” numa larga pista improvisada acabada de rasgar para mais uma urbanização turística algarvia em Vila do Bispo, não muito longe de Sagres, lugar cimeiro da preparação de outras e mais importantes andanças dos portugueses.(Idem, pp.174, 175).

 

A dupla, Palma Inácio e Camilo Mortágua, revelava-se complementar. O pragmatismo e a vivência rural davam a Camilo Mortágua uma sabedoria que corrigia e agilizava a competência, a coragem e a destreza de Palma Inácio.

Diríamos estar face a um tipo “pícnico”, à Sancho Pança, o Camilo Mortágua e a um tipo mais “esquizotímico”, à D. Quixote, o Palma Inácio.

Essas polaridades temperamentais vão manifestar-se quando, de regresso a Paris, Palma Inácio e Camilo Mortágua contactam de novo os históricos democratas. Porém, Camilo Mortágua considerava Emídio Guerreiro como um velho tartufo enquanto Palma Inácio se deixava impressionar pelo passado e pela prosápia do político burguês.

No entanto, Mortágua, apesar das diferenças entre ambos nunca abdicou da sua fidedigna amizade a Palma Inácio.

  

O Palma, meu companheiro por ponderada opção mútua, minha força de “frape”, minha garantia da possibilidade de se fazer aquilo que se pensasse, meu comandante e nosso eficaz executante, homem inteiro e por isso teimoso à sua maneira, de poucas palavras, serenamente determinado, capaz de compreender muito mais do que dava a entender, incorruptível no seu amor à vida e à liberdade, avesso a proibições e práticas redutoras das liberdades individuais, amante dos prazeres da vida, apreciando a liberdade como o maior deles; configurador absoluto do modelo das suas relações humanas e amorosas; nada adiantava pretender corrigir-lhe os defeitos. (Idem, p.186)

 

Nasce então a “LUAR” que inicia esta relação matricial com o enfeudamento ao “famigerado conselho superior” constituído por “líderes políticos da velha guarda”.

E assim, como diz Mortágua, “esses oportunistas de gabarito, viam-se já líderes duma organização revolucionária, protagonistas da história do combate contra a ditadura, sem para isso terem mexido uma palha.”

Por isso o Conselho Superior tutelou, daí em diante, a vida da LUAR. Essa tutela compreendia, bem entendido, a gestão dos dinheiros conseguidos na operação Mondego – Figueira da Foz – que se revelara uma árdua e arriscada operação.

Com este contexto, “o bando dos 4” (Mortágua, Palma, Barracos e Benvindo) retoma o ímpeto revolucionário que os animava e no portentoso ano de 1968, planeiam e organizam a operação do assalto à Covilhã. O projecto e a organização desta operação, a tomada da cidade da Covilhã por algumas horas, revelou diferentes concepções e sensibilidades, em particular a postura de Hipólito dos Santos, referenciada no seu livro “Felizmente Houve a LUAR” e de Camilo Mortágua.

Camilo escreverá:

 

Discordei, não porque a acção me parecesse politicamente incorrecta ou mal pensada mas simplesmente porque em meu entender era demasiado exigente para os meios e recursos de que dispúnhamos. Quando, pela primeira vez estávamos na posse de um lote razoável de armamento, quando o nº de adesões crescia rapidamente e exigia enquadramento apropriado, quando se iniciava pela primeira vez a criação e bases de apoio no interior do País, arriscar tudo numa só acção parecia-me um autêntico suicídio. Como quem continuava a assegurar os contactos com o Guerreiro era o Palma e os recursos eram arrancados a conta-gotas, entendi e disse-o na altura, que as boas regras da condução da luta aconselhavam a nunca arriscar tudo o que se tem numa só acção, porque a exiguidade de meios aumentava os riscos, e, no caso de falhar, o processo sofreria um retrocesso difícil de recuperar. Se mantivessem a decisão estava disposto a colaborar em tudo o que me fosse solicitado, mas não contassem comigo para participar directamente.

Esta decisão comunicada ao Palma e em conversa a sós, a seu pedido, não foi divulgada para não dificultar o recrutamento dos operacionais necessários.

O bom senso não imperou, a decisão do assalto à Covilhã foi mantida ocasionando o desastre que só a fuga do Palma veio, ano e meio depois, permitir dar continuidade à luta, abrindo uma outra fase, completamente diferente das anteriores, com novos militantes operacionalmente identificados com os métodos do Palma, na maioria jovens irreverentes e destemidos, sem contudo conseguir novos sucessos politicamente úteis. Acompanhei à distância os preparativos da acção e dispus-me a deslocar-me até à fronteira franco-espanhola para, a partir daí poder prestar o apoio à retirada que me foi solicitado…

Por este desastre, são responsáveis o Palma, por não ter compreendido que a sua autoconfiança tinha limites e a operação requeria meios de que não dispúnhamos e capacidades colectivas de decisão e acção que ele sozinho não podia resolver. Mas mais responsável a meus olhos, o padrinho Guerreiro por negar os meios necessários ao alcance de tão importante objectivo. (Idem, pp. 201 a 203)

 

Este desastre, de que fala Camilo Mortágua, levou à prisão de muitos companheiros, embora alguns tivessem conseguido escapar.

Perante esse desastre Mortágua não perde a capacidade de assumir novas responsabilidades. Procura apoio para os operacionais que restaram dessa acção falhada. A “Caparica”, porto de abrigo revolucionário da LUAR, era uma quinta nos Pirenéus Orientais que o seu amigo Silva Martins lhe arranjara para poder encontrar sustentabilidade aos companheiros com mais dificuldades de integração no exílio, prosseguindo assim com a formação do grupo de resistência.

Neste porto de abrigo dos Pirenéus o treino não era igual ao que se fazia, anos antes, no Brasil e que jocosamente Camilo Mortágua relata neste seu livro com o título “Matando a galinha”. Nesse capítulo, Mortágua e os companheiros iam treinar para os lados de Niterói, com sacos cama, cordame para armar abrigo à cubana e fogões de campismo. Eram fins-de-semana em que se obtinham batatas-doces e galinhas gordas que tentavam alvejar a tiro.

Na Caparica o pessoal alojava-se na quinta “daqueles neo-rurais idealistas do retorno à terra”. Os donos viviam austeramente criando cabras e vivendo do produto da quinta. Comiam-se cogumelos dos bosques vizinhos. E a formação era submetida à disciplina da sobrevivência.

Entretanto, com a própria experiência de Mortágua num kibutz de Israel, quando aí esteve durante algum tempo, despertara-lhe o seu gosto rural da infância.

O trabalho de sobrevivência e a nova aprendizagem de vida concreta obrigam o pessoal a adaptar-se aos condicionalismos. Porém, não demorou muito tempo para que a situação mostrasse a fragilidade desta opção. A dificuldade em manter o sigilo necessário e a facilidade de integração na vida comum da sociedade francesa, aceleraram a procura de outras alternativas para o grupo português que acabou por largar essa Tebaida “pouco adaptada para pessoas ilegais ou manifestamente inadaptadas para suportar a tensão de um tal contexto”.

A breve prazo dar-se-ia, em Portugal, a fuga de Palma Inácio da prisão.     

A ausência irreparável de Palma Inácio, que foi preso, só viria a ser superada quando em 8 de Maio de 1969 fugiu das instalações da PIDE, no Porto, onde estava detido.

 

O grande general de si próprio tinha ganho mais uma batalha. Cerrando as grades da prisão, quebrando mais um grilhão da sua corrente. O seu feito dava-nos novo alento e novas responsabilidades e tarefas…(Idem, pág. 312)

 

O romantismo e a coragem indomável de Palma Inácio levam-no de novo para o comando da acção directa da revolução inacabada. Mas também, diante do desespero deste seu fiel companheiro, Mortágua descreve a sua premonitória intuição dum outro desastre que se avizinha. Muitas conversas se estabeleceram entre Mortágua e Palma Inácio. Pairava na mente de Mortágua a prudência e a cautela em torno do infiltrado Castelo Branco, o “canário”, que não lhe inspirava confiança. Essa desconfiança sobre Castelo Branco era também partilhada pelo “Azevedo” (Hipólito dos Santos) que descreve essa questão no livro já citado.

Contudo, Palma Inácio desvalorizava os erros cometidos e sobretudo queria desesperadamente continuar uma luta que estava por terminar. Escreve então Mortágua:

 

Depois de lhe apresentar frontalmente as minhas reservas quanto à possibilidade de ser possível continuar sem outra disciplina organizativa, concordou comigo, mas era evidente que concordava para não ter de aprofundar uma conversa que o aborrecia. No final, sem grande insistência da minha parte, concordou com a minha proposta: “Sempre que precisasse de mim para o apoiar a ele ou à LUAR, ficava à disposição, demitia-me de todas as responsabilidades de direcção e só não aceitaria participar directamente e automaticamente em acções sem prévia discussão das mesmas.”

Compreendeu perfeitamente o alcance do acordo e nunca mais me falou de planos operacionais. Víamo-nos uma ou duas vezes por semana, pedia aquilo que necessitava e que eu podia fazer no âmbito da papelada, falávamos de tudo e do bom tempo, sabendo ele que eu sabia da evolução das acções da LUAR sem nunca abordarmos directamente o sujeito.

A última observação que lhe fiz na altura, continuava de pé: “No dia em que sinceramente estejas disposto a funcionar dentro de um esquema organizativo com responsabilidades colectivas e individuais bem definidas, diz-me e conta comigo. (Idem, pág. 217).  

 

Qual cavaleiro andante imbuído pelos seus ideais, Palma Inácio será novamente preso. Nostálgico e triste na sua solidão ao ver partir o amigo, Camilo Mortágua prevê mais uma batalha desfavorável. Mas novo sol brilhará. Veio finalmente o 25 de Abril de 1974 e foi a festa do regresso.

 

Chegamos a Vilar Formoso por volta da meia-noite do dia 30 de Abril e a Lisboa ao romper da mais bela aurora da minha vida. Da minha e, certamente de todos os que encheram as estradas da Europa a caminho da pátria em festa de todas as organizações de todos os comités. Trotskistas, maoistas, comunistas de todas as tendências e inspirações, cruzavam-se, saudavam-se, abraçavam-se como nunca tinham feito.

Entramos no posto de controlo da fronteira, vários ao mesmo tempo, em festa, já esquecidos das tremuras, sustos e angústias “de ontem”, olhando os guardas como quem diz, vêem… somos diferentes, estão perdoados.

Os carros buzinavam, cada grupo cantando livremente a sua canção, as canções que tinham animado os tempos da longa e sofrida espera. (Idem, pág. 219)

 

À laia de conclusão deste segundo volume de Camilo Mortágua, aguardamos a narração do terceiro volume que importa para completar as memórias da extraordinária aventura do 25 de Abril, história de esperanças, cravos e gaivotas esvoaçando no céu azul de Portugal. História também feita de mudanças. E agora, com esta ameaça cinzenta dum quotidiano com Troikas e FMIs onde já se ouvem, felizmente, as vozes que vêm de longe, como as de Camilo Mortágua e que incitam a continuar a luta, podemos concluir que só persistindo é que se pode vencer.

Sem temor excessivo nem exaltação incauta, Camilo Mortágua é o exemplo do lutador que soube fazer do seu espírito crítico, da sua modéstia e das suas tenazes convicções, a força consciente que proporciona a verdadeira coragem para a revolução.

O percurso que Camilo Mortágua nos deixa nestes dois volumes das suas andanças, mostra como na sua aprendizagem de vida, de revoltado se tornou revolucionário.   

 

Jacinto Rodrigues

 




publicado por Elisabete às 11:30
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Terça-feira, 5 de Novembro de 2013

Andanças para a Liberdade I

Andanças para a Liberdade é uma autobiografia de Camilo Mortágua, contada como uma história de vida, sobre a vida exemplar de um resistente, contra a ditadura. É a história de um homem simples e simultaneamente a história de um filósofo cuja sabedoria popular o torna um precioso livro de ensino.

É a memória de um resistente antifascista, saído do povo rural deste país, que foi caixeiro, padeiro, agricultor, camponês e aventureiro revolucionário.

Neste primeiro volume, Camilo narra-nos a sua história de vida desde o “Camilinho come e cala”, nascido em terras de Estarreja até à aventurosa experiência revolucionária do assalto ao navio Santa Maria, em 21 de Janeiro de 1961.

Aguardamos com a maior expectativa o segundo volume, no prelo, que nos relatará a aventura de Camilo Mortágua nos anos de luta antifascista até à revolução de Abril.

O 1º volume das Andanças é uma prodigiosa narração de um contista nato onde a oralidade do discurso surpreende pela profundidade, nos faz rir sem deixar de reflectir, nos entusiasma e comove em permanente olhar novo.´

É que Camilo Mortágua usa uma narrativa construída em discurso plural, com níveis diferenciados mas interligados, da sua consciência feita de “personas” desiguais. O distanciamento reflexivo, o desassossego e a vontade de viver dão à sua vida uma frescura poética, um encantamento permanente na procura da pilotagem constante de autodesenvolvimento feito de permanente exame de consciência a que ele chama o colectivo de auto-análise comportamental, CAAC. Trata-se aqui duma ironia subtil com que resolveu, heteronimicamente, o olhar polivalente, filosofando diante da vida entre contradições múltiplas, destino feito de necessidades e sempre com liberdade de escolhas. Este livro tem uma escrita original, lírica e por vezes hilariante que nos ajuda a percebermo-nos a nós próprios com ironia, distanciamento e humor.

Esta metodologia faz parte do universo específico das chamadas literaturas de formação mas que aqui, sem pretensões ideológicas e excessivamente didácticas, percorre o fio da vida na espontaneidade e sorriso permanente do autor. A vida, assim, é uma vida vivida sempre prenhe de futuro, coada pelas três principais personagens que constituem a sua personalidade forte e coerente.

O “come e cala” é a criança que se plasma na vida imposta pela envolvente social, O “batata” é a “persona” que cria dispositivos de acomodação. E o Zé Ninguém, composto por complexidades e mútua reflexão permanente entre o Pé Ligeiro, o Zé e o Camilo Mortágua.

Esta é a metodologia simplificada que se revela na procura de auto-aprendizagem, no “ver” para além das aparências, no ressentir “dentro e fora” a realidade que vai surgindo, envolvida em sensações emoções e intuições.

A história da sua infância é feita de encantamentos poéticos em que o “camilinho” vai usufruindo o aconchego dos brancos panos de linho que o acomodam na canastra de pão em que sua mãe transporta os pão das padarias de Ul, levando à cabeça, a caminho de S. João, a caminho de Macinhata, da Feira ou de Arrifana.

Depois das andanças várias da sua vida, o “come e cala” vai crescendo tornando-se também no “batata” ao longo da vida complexa que vai vivendo. Aprende o valor da vida por entre as terras baixas, irrigadas e drenadas pelos canais dos ribeiros e rios desde Antuã ao Vouga.

Percurso dos grãos que vêm dos celeiros até aos moinhos de água. Os esteiros, os barcos com decorações multicolores e os moliceiros dão à paisagem de “águas largas”, a inesquecível marca de aventuras... A escola decorria ligada à vida das fainas. Fainas do campo e do mar nas redondezas. Terras de Estarreja a Murtosa, de Salver até Avanca.

Apanham-se búzios de pescadores moliceiros, comem-se enguias de caldeirada.

No capítulo II, Mortágua continua com a escrita de aprendizagens: o distanciamento no acompanhamento de si próprio na 3ª pessoa vai aprofundando a reflecção adolescente. E a doença assim como a relação com os amigos vão-lhe maturando a consciência. Assim, o Senhor Constantino, que nunca falava de si, trazia-lhe perguntas que lhe alargavam a consciência. O Sr. Constantino trazia também, todos os dias, um livro ou uma revista da sua biblioteca particular. Eram romances anticlericais, obras de pendor libertário pois este homem passara anos no Tarrafal e por isso faziam dele, agora, a referência dos seus anos de aprendizagem.

Camilo Mortágua

No capítulo III, o Adeus a Portugal, conta-nos a aventura em Maio de 1951, navegando em direcção à Venezuela. Tinha agora quase 18 anos. ”Já a cabeça voltava a levantar para olhar longe... eu havia de ser capaz.”

No capítulo seguinte Mortágua conhece a emigração. Confronta-se com gente diferente. Experimenta profissões várias e empreende novas viagens... Descreve o percurso de lambreta pela América do Sul. Faz lembrar a aventura de Che Guevara, não fora o propósito de representar, numa campanha de promoção publicitária, uma firma que vendia lambretas! A fábrica italiana apoia financeiramente o itinerário de Caracas ao Rio de Janeiro... O folclórico itinerário, cheio de percalços rocambolescos, passaria por um evento apenas picaresco não fora porém o aprender a aprender da viagem. Deu para ver com olhos de ver a realidade social da América Latina. Deu para desenvolver o desenrascanço do "Zé Ninguém" Mortágua face às atribuladas andanças daquele percurso.

O “Zé-ninguém”, na sua “auto-análise comportamental” no período negro do ditador Perez Giménez da Venezuela, leva-o ao conhecimento da comunidade portuguesa Echos de Portugal. Existem, nesta associação, várias iniciativas sociais e culturais dos portugueses da Venezuela. Conhece então Daniel Morais, antigo membro da MUD (Movimento Unidade Democrática). Era um democrata de firmes convicções. Por isso o ajuda a consolidar princípios éticos e políticos. Alerta-o para a “necessidade de pensarmos pela nossa própria cabeça e relativizarmos sempre os dogmas estabelecidos, a coerência entre o discurso e a prática, o amor à liberdade sobre todas as coisas e a disponibilidade para a solidariedade universal”.

Este novo impulso da consciência torna o “Zé ninguém” Camilo Mortágua, mais convincente para a intervenção cívica. Torna-se então militante da esquerda venezuelana, agente de ligações, “correio da revolução” no contacto entre vários grupos, assumindo assim uma postura internacionalista: “não importa onde se nasce, o que importa é onde se luta”.

Assim, dentro de Camilo Mortágua, o “Zé ninguém” transpirava optimismo e confiança no futuro enquanto o “Come e cala” apenas ouvia passivamente, sem nada fazer e o “Batata”, medroso como era, inventava dificuldades à vontade de mudança. O debate que Camilo Mortágua descreve nas páginas 166/167 é uma reflexão entre a polaridade conservadora e a polaridade transformadora que perpassa constantemente na realidade social e em nós próprios:

“Dizia o Batata: Não percebo porquê tanta algazarra! Estão a ver, estamos na mesma que antes, a correr de um lado para o outro, até com menos clientes, a fugir entre os automóveis, sujeitos a apanhar com uma porta pelas trombas e ainda por cima a ser insultados, sem tempo para descansar como pessoas normais... Não mudou nada... Temos tanta liberdade como a que tínhamos!

Respondia o Zé Ninguém em tom irado: Cala-te murcão... És mesmo matarroano das berças... Então já não te recordas do cimento frio e dos duches gelados que nos obrigavam a apanhar lá naquela choldra para onde nos levavam às vezes quando algum polícia de trânsito lhe apetecia embirrar com a gente? Já não te lembras do medo com que andávamos sempre tremendo com que alguns “amigos polícias” se lembrasse de mandar roubar-nos as motos? Não te interessa nada que os nossos amigos venezuelanos andassem sempre receosos de dizer o que pensavam com medo de serem denunciados à “Seguridade” do facínora Estrada, que nos vissem como estrangeiros e inimigos exploradores, que nunca quisessem conviver connosco e nos julgassem simples mercenários de fortuna; e agora te abracem e falem espontaneamente das suas vidas, com alegria e sem verem em ti um delator e um falso amigo? Não te sentes mais confiante em ti e nos outros sem as ameaças arbitrárias de uma repressão sem lei nem justiça? Não vês que a liberdade... não sentes... a liberdade... não te dás conta que estamos aqui, só nós e mais ninguém, absolutamente senhores do nosso destino, a decidir para onde voar? Acorda... porra! Temos que voar para ir alargando o espaço em que as pessoas possam exercer livremente os seus destinos!... Vamos mas é entrar na campanha a favor do Fidel em vez de estar para aqui com conversas vãs...

O “Come e cala”: “Olha o gajo! Está feito político... Estamos feitos!”

Estes debates interiores construídos com uma oralidade espontânea, são etapa narrativa em que as andanças para a liberdade o levam a uma experiência cívica que abre o caminho a uma maior politização constante que o levará a participar no assalto ao Santa Maria, nos preparativos da “acção directa” dirigida por Henrique Galvão que veio a espantar o mundo pela coragem e exemplaridade política.

Camilo Mortágua não deixa porém de referir as dificuldades e contradições nessa luta, mas ressalta sobretudo neste Capítulo V, Santa Maria – Santa Liberdade, a positividade da sua narrativa:

“Porque, as nossas, são simples andanças de andar e dançar, de ir e vir, de passar para lá e para cá, procurando caminhos, umas vezes sérios, outras vezes parecendo que não, preferimos ater-nos a falar daqueles raros momentos em que fomos capazes de rir de nós próprios... acreditando que o riso espanta o medo e, sem medo... a liberdade é possível! (Coisa que tínhamos compreendido muito antes do Umberto Eco escrever).

É certo que éramos menos de meia dúzia de pobretanas, superiormente mobilizados e motivados para combates indefinidos. Um “D. Quixote” rodeado de “Sanchos Panças”, apeados e desarmados. Mas... “o sonho comanda a vida”, e tínhamos uma grande capacidade de sonhar, embora não fôssemos ainda capazes, por essa altura, de ousar rasgar e ultrapassar certos preconceitos cuja observação nos paralisava.

... Andávamos de seca para meca, constantemente à procura de encontrar o “divino unto” para olear a nossa emperrada máquina.”

Mortágua descreve depois, com realismo e simplicidade, e até mesmo modéstia, o assalto. O texto, cuja oralidade está sempre presente, revela-nos o fim de festa daquela aventura que tanto entusiasmo provocou. Em 21 de Janeiro de 1961 teve lugar o assalto ao paquete Santa Maria onde se proporcionou a maior denúncia feita contra a ditadura salazarista.

Camilo Mortágua descreve assim essa operação:

“Quando se ouviram os primeiros tiros, deu-me vontade de não estar ali. Com a sala da rádio e a casa das máquinas controladas, corremos para a ponte de comando a ver o que se tinha passado. Junto à escada que dá acesso à ponte de comando, apercebi-me duma pessoa deitada de barriga para baixo a esvair-se em sangue... Merda, de repente deixei de ver as estrelas e o céu ficou preto! Fazia frio... muito frio! Ergui a cabeça e segui em frente atrás dos companheiros, lá em cima, na ponte do comando, tudo tinha acabado. Disseram-me que havia um ferido que eu não vi e iniciaram-se as negociações entre o Galvão e o comandante Maia, já relatadas em muitas outras ocasiões.

Pronto, para já o Santa Maria estava sob o nosso controle... e agora?

... O que eu temia não se verificou. Não houve reacção descontrolada, os 600 passageiros aceitaram os factos com absoluta serenidade e até, bastantes, mesmo emigrantes espanhóis e portugueses, com algum entusiasmo. Os americanos e de outras nacionalidades que viajavam como turistas, a esses tinha-lhes saído um grande prémio, um bónus inesperado para as suas férias.

Durante o assalto tinha-me tocado descer à casa das máquinas, ao caldeirão onde se gerava toda a energia que fazia mover aquela “aldeia libertada” dos nossos territórios de além-mar. Lá, alimentando as fornalhas, tronco nu, fui encontrar uma equipa de cabo-verdianos, homens já bem entrados em idade, a quem explicámos o que tinha acontecido. Olharam-nos com olhos de espanto... quedos e curvados... por momentos ficamos assim a comunicar com os olhos, mudos... de repente, ergueram-se aprumados, bateram-nos a pala e disseram: - Até que enfim que é dia de festa!”

A operação terminou a 4 de Fevereiro de 1961 quando o navio foi entregue por Henrique Galvão às autoridades brasileiras. Humberto Delgado, no Brasil, a 27 de Fevereiro apoia a convocação da ONU para discutir a situação de guerra em Angola e repudia a posição colonialista do governo português.

O Santa Maria, Santa Liberdade, tornara-se assim um grande símbolo de esperança para a luta anti-salazarista.

Jacinto Rodrigues

publicado por Elisabete às 18:47
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