Desde o armistício, já não era possível “ficar à margem”, isso equivaleria afinal de contas a tomar partido e a tomá-lo contra os seus: agora, portanto, combatia. Quando a fase actual terminar, quando se lutar de rosto descoberto, ele entrará no jogo, comprometer-se-á, empenhar-se-á.
- E se tudo falha? – perguntou de súbito.
- O quê? O desembarque?
- Não. O desembarque é apenas um pormenor. Mas a Revolução, a edificação do socialismo, tal como o queremos.
- Ora! – replica Rodrigo na risota -, sempre poderemos “morrer a combater”…
- Penso muitas vezes nisso. Nos momentos de depressão, lamento não me ter alistado nas Brigadas Internacionais… não ter sido morto, como Lorca, a lutar contra Franco… Parece-me que era o meu destino e que o gorei. Fiquei altamente impressionado no dia em que M.L. me contou ter visto, à beira de uma estrada, à saída de Madrid, o cadáver de um miliciano, um jovem intelectual, atingido por uma bala em cheio na testa, quando ia, lançando granadas, ao encontro dos tanques de Franco: este miliciano, dizia M.L., era tão espantosamente parecido comigo, que ele se surpreender imenso ao encontrar-se vivo em Paris. A guerra de Espanha não foi viciada pelas ambiguidades e os compromissos desta; não foi como em 40: cada um soube imediatamente de que lado devia pôr-se; foi a mais “pura” das guerras actuais, aquela onde era mais leve morrer… Mas supõe que, vencida a Alemanha, tudo recomeça como dantes: estabelece-se um regime democrático, mas os trusts gastam o dinheiro suficiente para nos derrotar nas eleições e a alta burguesia continua a controlar tanto os governos de esquerda como os da direita, a URSS tem demasiado trabalho com a reconstrução do socialismo no seu próprio território para se ocupar de nós, reedifica a barragem do Dnieprostroi, etc.; os operários franceses estão subalimentados há tempo demais para serem capazes de um desses despertares de que fala o cardeal de Retz, dão-lhes mais oito dias de férias pagas para ficarem sossegados e tornarem a fazer economias na mira de comprar uma horrenda casinhota nos arredores (perto dum caminho-de-ferro, para terem a certeza de ser bombardeados na próxima guerra); as vedetas de Hollywood reconquistam as parangonas dos grandes jornais, os que ganham algum dinheiro voltam a passar os fins-de-semana em Deauville, etc. A Revolução é adiada para a próxima guerra que se seguirá à próxima grande crise cíclica do sistema capitalista…
[…]
Esperavam da “vitória” não sabiam bem que libertação, que possibilidade de se dedicarem completamente, de darem toda a medida de si mesmas. Isto misturava-se confusamente com a esperança de ir para Paris, que representa aos olhos dos provincianos, agora como no tempo de Balzac, o sítio onde os talentos de qualquer espécie podem fazer carreira. Marat, ao mesmo tempo que as ouvia, temia por elas e por todos aqueles e aquelas que esperavam demasiado da “vitória”.
[…]
- Sim, porque a vida, não é verdade? na sua essência, no que ela tem de intrinsecamente angustiante, pode ser definida como a liberdade de escolher…
brilhavam gotas ásperas quase secas pela temperatura do fogo próximo, brilhavam na baba que a sua boca trémula deixava escorrer, ou ainda, porque tudo no seu rosto negro eram rastros amarelos, um ranho calmo brotava do seu nariz
o seu choro era calmo e doce porque cansado,
perdido da sua casa desde os primeiros instantes do fogo, buscou primeiro referências visuais que o fumo impediu, entregou-se ao tacto e queimou a ponta dos dedos, e caminhou, forçando a sua coragem de menino gigante que recusava entregar-se à morte, caminhou, buscando os irmãos ou uma voz conhecida, buscando a vida ou o que fosse uma saída, caminhou como se as ruas menos queimadas fossem a saída do labirinto,
molhou o corpo e o cabelo e a boca com a primeira água que encontrou e, no meio dos estranhos ruídos, o menino, no seu choro cansado, começou por descobrir uma espécie de silêncio, uma cama de tons não musicais que nasciam dos ruídos vindos das árvores e das casas em queda
os líquidos todos no seu rosto – o que era baba e ranho, o que era lágrima e medo, tudo isso se esvaiu numa sensação repentina em que o incrível monstro da solidão gemeu e se desfez – o menino viu um peixe arfante saltitando, cheirando, se fosse isso, mínimas gotículas de água onde ela houvesse, para saber, também ele, da possível salvação,
do outro lado, como se de duas criaturas salvadoras se tratasse, um pássaro branco, chamuscado e manco, compunha o cenário que, repentinamente, como um poder renovador do mundo, fazia o menino, no meio do fogo, começar a sorrir,
não hesitando, a criança, em transportar consigo o seu sorriso, os seus dedos queimados, as unhas doloridas, levando a fome no seu estômago em ardência, trazia de um lado do peito, por segurança, restos de um sólido medo, do outro, meio apagada, uma intensa saudade da mãe e
acometido de súbita sabedoria, pegou no peixe trémulo e deu de comer ao pássaro – como se aquele gesto resolvesse o mundo.
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