A explicação do sossego do quarto ao alugá-lo era ser domingo. Os vizinhos daquele prédio tinham ido de passeio ao campo, restituir-se à natureza.
Saiu da cama e subiu os três degraus para chegar à janela. Já começara o primeiro aviso do anoitecer. Vinha uma aragem do Tejo, fria, na cara quente de estar deitado, o bastante para mudar para outro assunto. O rio movia-se com um certo rebuliço, que dava a ideia também de ir fechar por hoje. Em todo o caso via-se bem que era domingo, pois o ruído era diferente do dos dias úteis. No fundo dos pátios, os andares mais baixos acendiam as luzes. O Antunes descobriu que a noite nascia da terra. Um transatlântico imenso custava a deslocar-se do cais, como um mau pensamento leva tempo a deixar-nos. O resto do dia juntava-se todo a Oeste. A outra margem perdia o volume e achatava-se num plano. Cada vez ia cabendo mais tudo dentro de uma só olhadela. Poder-se-ia ver Portugal inteiro de uma só olhadela, como no mapa, em aeroplano?
- Palmela e Almada. De cá, Sintra e Santarém. Mouros, Afonso Henriques. Os cruzados. E desde então até hoje. Até aqui a esta água-furtada. Até mim. Tanta gente e tantos séculos encarreirados por aqui: as quinas, Avis, caravelas, o pelicano, a esfera armilar, Filipes, azul e branco, encarnado e verde, e continua. Nada para mim. Portugal.
José de Almada Negreiros, Nome de Guerra
Desistir do amor será talvez inevitável,
mas seguramente obsceno.
Júlio Machado Vaz
O grande amor da minha vida, à semelhança de todas as paixões veementes e sinceras, não foi, não podia ser feliz, e dava para uma linda novela que só teria o defeito de a verdade aparecer inverosímil. Começou, tinha eu 23 anos, quando tentava namorar, num teatro de Sevilha, uma senhora ao lado de quem estava uma menina, quase criança ainda, que se julgou o objecto dos meus requebros. O curioso, também, é que eu, no momento, iludi-me com os olhares da senhora requestada: tomava-os para mim, e eles iam de alma e coração para um oficial de cavalaria que me estava perto. O quiproquó desfez-se; depois comecei a reparar na menina, que encontrava por todos os lados, nos passeios, nas igrejas, nas tertúlias, e que ruborescia como rosa de Maio apenas me encarava. Iniciou-se o galanteio, estabeleceu-se correspondência; e como era uso em Sevilha, eu acudia todas as noites a falar-lhe às grades de uma janela do seu palácio que abria para uma travessa erma e tortuosa. E neste regime romântico andámos perto de 6 anos! que foram tempestuosos, e cruéis, e adoráveis. Tudo me era pretexto para ir a Sevilha; e à custa de quantos sacrifícios e habilidades, muitas vezes! [...] Mas não vem para aqui a narração do que foram esses 6 anos de divinos tormentos. Basta dizer o desfecho. O amor entrara naquele coração virginal, em labaredas, e com todo o seu cortejo de ilusões; e consumira-se por si à medida que as ilusões se desfaziam. Mas, na ingenuidade do seu arrebatamento, ela fizera-me promessas a que se julgava ligada eternamente: "mais ainda do que se a Santa Madre Igreja as houvesse sancionado", repetia-me a miúdo, e ao seu espírito brioso, e de católica fervente, afigurava-se mais fácil morrer do que faltar ao prometido. Em mim o amor, que nascera da curiosidade, ateara-se lentamente, e tomara tais proporções que a morte me parecia mil vezes preferível a perdê-la. Mas a oposição, por parte do pai, à nossa união, era invencível; a minha namorada, já rica de si pelo legado de um tio-avô, era filha única, e herdeira de um grande nome e de uma fortuna imensa, e eu não tinha, como se diz na minha terra, "nem eira, nem beira, nem ramo de figueira"; e quando me convenci de que o seu amor desaparecera, julguei-me obrigado a desligá-la dos seus juramentos. Foi uma operação horrorosa, uma espécie de amputação que me deixou leso para o resto da vida. Mas fi-la.
Manuel Teixeira-Gomes, in Miscelânea
(através de David Mourão-Ferreira, in Terraço Aberto)
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