PABLO PICASSO, "O Mendigo e a Criança"
O mendigo devorava uma costeleta, sentado nos degraus da igreja, e tinha em frente um chapéu, à espera das esmolas. Reparou nele porque parecia ter um ar quase normal, se não fosse a sujidade, a barba de muitos dias e o mau estado da roupa.
Não era novo nem velho, mas quando ele tornou a abrir a boca viu que tinha dentes podres e lhe faltavam alguns, logo na frente. No entanto, dava grandes dentadas no pedaço de carne que segurava numa das mãos, e de vez em quando um pedaço de pão que segurava na outra. Mastigava com vontade e dava outra dentada, inclinando um pouco a cabeça, como os cães costumam fazer quando procuram a melhor posição para cravar os dentes.
Certamente a costeleta era suculenta e saborosa, porque ele lambia os beiços, que por vezes limpava à manga e às costas da mão. A certa altura parou, pousou a costeleta e o pedaço de pão dentro do chapéu e tirou do bolso uma lata de cerveja. Abriu-a fazendo estalar a tampa e bebeu um grande trago, e depois outro e outro. Arrotou e recomeçou as dentadas, até não restar quase nenhuma carne.
Agora já não devorava: roía devagar, entreabrindo os dentes, e ajudava com a língua e os beiços a puxar os últimos pedaços, agarrados ao osso. Era uma operação mais demorada, mas visivelmente ainda prazerosa. Só depois de chupar e lamber o osso voltou ao pão, em que recomeçou a dar dentadas, bebendo de cada vez um gole de cerveja, como um animal buscando uma recompensa.
Quando acabou, atirou fora o osso e a lata, que galgou metade da rua, batendo com estrépito nas pedras da calçada. Enroscou-se depois sobre si próprio e deitou-se no degrau, como um cão a preparar-se para dormir ao sol. Porque havia sol e, apesar da hora matinal, o ar não estava frio.
Ou talvez estivesse, afinal, porque o homem tirou um gorro do bolso e o enfiou na cabeça, depois de levantar e puxar para si a gola do casaco.
Foi nessa altura que o homem que o olhava saiu do carro e entrou na igreja, passando ao lado do mendigo. Era sempre assim, por uma ida à igreja, que começava o seu dia.
Só que muito raramente, como naquela manhã, era ele próprio a conduzir o carro. Aliás poucas vezes utilizava o carro para chegar ao trabalho, já que tinha um helicóptero privado, que em escassos minutos o levava do prédio onde morava ao edifício do Banco. Descia então no elevador até à rua e entrava numa igreja ao lado.
Naquela manhã, no entanto, apetecera-lhe fazer o trajecto com vagar, reflectindo nos assuntos que o preocupavam. As coisas estavam a correr mal, eram necessárias medidas drásticas e urgentes. Mais do que nunca precisava da ajuda divina, de um sinal, uma inspiração. Deus sabia que ele cumpria o seu dever como podia e, num mar de dificuldades, ia mantendo o Banco a navegar. Pertencia com bravura à elite que dominava a sociedade, segurando-a pela cabeça. Se a cabeça da sociedade estivesse a salvo, também o resto do corpo social sobrevivia.
Com a ajuda de Deus, a cabeça da sociedade ia salvar-se. Todas as noites rezava, de joelhos, por essa única intenção, que continha em si todas as outras. Só depois se despia, devagar, e, como autorizara o seu capelão e confessor, retirava o cilício do seu corpo humilde.
Desde a juventude se mantivera casto, só no estrito cumprimento dos deveres matrimoniais fornicara e unicamente para gerar os filhos que um dia estariam lá, no seu lugar, servindo a Deus, segundo a sua doutrina e a sua lei.
Ajoelhado na igreja, com a cabeça entre as mãos, o homem pensava nessas coisas, e nas muitas outras que o preocupavam. Sentia-se esmagado de responsabilidade e, sem dar conta, começou a chorar baixinho. Ao Bancos eram os alicerces, se falissem a sociedade ruía. E ele sentia uma tempestade, um terramoto que se aproximava, sub-repticiamente.
Um medo sem precedentes invadiu-o e transformou-se em pavor. Todo ele tremia, suplicando a Deus que viesse em seu auxílio. Mas a igreja estava escura, envolta em sombra, silenciosa. E vazia.
Só lá em cima, diante do altar do Santíssimo, cintilava frouxamente uma lamparina. Que não resistiria ao menor sopro do vento.
Sentiu-se abandonado, como Cristo no Monte das Oliveiras, antes de beber o cálice que Deus não veio afastar da sua boca.
A boca do homem arfava agora com ruído, como se o ar lhe faltasse, mesmo o chão onde se mantinha ajoelhado.
Chorava desabaladamente e gemia. Acabava de pecar com gravidade. Tivera a presunção de se comparar a Cristo e pecara também por desespero, duvidando que Deus o socorresse, que estivesse ali e o ouvisse.
Nessa noite fustigaria as costas com mais violência, com o chicote com pedaços de metal nas pontas. Pensou na força com que sangraria, e que o seu sangue impuro derramado talvez pudesse redimi-lo de se ter comparado a Jesus, o do sangue sem mácula, no horto das oliveiras.
Mas não parou de chorar, apesar de sentir o alívio do arrependimento e uma espécie de torpor que o invadia.
As suas lágrimas pareciam provir agora, inexplicável e confusamente, do mendigo que vira comer com gula, do pecado de ter tido inveja de o ver comer daquele modo bruto, daquele prazer animal de cravar os dentes no pedaço de carne, devorando-o com voracidade até ao osso.
Sentia, de um modo absurdo, que o mendigo o ofendia só por existir e sobretudo por comer assim. Como se o naco de carne e o acto de comê-la fossem uma agressão e um roubo contra ele próprio, contra o mundo que ele representava e defendia.
Esse mundo que começava a tremer e ameaçava ruir.
Talvez estivesse a enlouquecer, pensou, e o seu entendimento das coisas vacilasse, por excesso de stress e de aflição.
Levantou os olhos para a lamparina do altar-mor e pediu a Deus que o iluminasse, lhe apontasse um caminho.
E então, de repente, a salvação surgiu-lhe.
Viu-se no brilhante papel de benemérito a assinar um compromisso de serviços gratuitos aos mendigos: distribuição ilimitada de pão, vinho e carne, tratamento nas clínicas geridas pelo Banco, garantia de todos os encargos com a sua cremação ou enterro.
A abundância de comida pouco variada mantê-los-ia fartos e gordos, mas não saudáveis, por um tempo relativamente curto. E, vivos ou mortos, os seus corpos tornavam-se um manancial de lucro, desde recolha de sangue a venda de órgãos, campo livre para testar novas substâncias, para já não falar do que, como a gordura, poderia ser aproveitado no campo da cosmética. Bastava saber como fazer as coisas, mas nisso ele era perito e tinha uma enorme rede a colaborar com ele.
Claro que toda essa parte seria omissa no que viria a público e permaneceria insuspeitada em tudo o que ele dissesse e assinasse, com pompa e circunstância, com as autoridades governamentais.
Meu Senhor e meu Deus, eu Vos dou graças. Aleluia, aleluia, o Vosso humilde servo foi ouvido.
Levantou-se depressa e viu as horas – ia chegar tarde à reunião, Jesus, como se atrasara.
Benzeu-se e curvou-se diante do altar, numa reverência profunda e agradecida.
Sobretudo agradecida, meu Deus, como se sentia grato, pensou descendo a correr os degraus e batendo a porta do carro, depois de passar, sem sequer o ver, ao lado do mendigo.
TEOLINDA GERSÃO, “Prantos, amores e outros desvarios”
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