Maria Clara
De maneira lenta mas segura, Maria Clara viera realizando um grande progresso: renunciara à felicidade. Ser feliz, não ser feliz, - como ser legítimo, ou não, passar-se com ela o que se passava – eis questões que, pouco a pouco, haviam deixado de se lhe apresentar à consciência; ou à semiconsciência que, na maior parte das vezes, era a sua. Todo o seu actual empenho se reduzia a ir passando os dias sem novidade de maior. Isto é: sem que explodisse qualquer cena com Joaquim. Para isso tinha Maria Clara de exercer uma vigilância cada vez mais hábil (em que sempre se apurara) não já só sobre os seus próprios gestos, palavras, impulsos, como sobre os do marido. Da interpretação destes, que muitas vezes eram enigmáticos ou dúbios, dependia o tom, a maneira, como devia responder ela própria, como se devia ela própria comportar. Assim, dia a dia, viera perdendo o melhor da sua antiga espontaneidade. Também da sua antiga alegria e frescura. Muito aprendera, em compensação; muitas coisas pequenas que lhe poderiam servir a evitar, ou rodear, grandes desgraças. Não era de admirar que estivesse mais inteligente!, como não pudera deixar de notar o próprio Joaquim.
Alegria..., - mas já, actualmente, lhe era uma alegria sacudir aquela timidez, aquele temor, aquele constrangimento ou fingimento em que, no geral, se mantinha perante o marido: atitude por vezes penosa que já, então, desejava o momento de o ver sair. Já libertar-se da sua presença lhe era, certos dias, um alívio! Já conversar livremente com a mulher dos recados, ou ouvir a senhora Rosa Venâncio e dar-lhe trela, ou entreter-se com os arranjos quotidianos da casa (esperando vagamente que o Joaquim voltasse de melhor sombra) se lhe tornara uma felicidade. Relativa, sem dúvida. Porque talvez, em verdade, não seja de todo rigoroso dizer-se que Maria Clara renunciara à felicidade. Quem lhe renuncia? E então ela, Maria Clara!... Só a noção – antes o sentimento – de felicidade se lhe estreitara ou empobrecera muito; e quase toda a sua grande luta não era agora senão pela conquista dum certo sossego, ou dumas pequenas felicidades provisórias e domésticas, circunstanciais, que dantes lhe parecia nada terem com a felicidade, mais não sendo que uma espécie de zona neutra quotidiana. Ia sempre envelhecendo, pois. Já cada vez se contentava com menos, tendo aprendido a conformar-se. Isto é: tendo aprendido que, geralmente, não passa o nosso bem-estar dum breve descanso do mal-estar já normal, (isto era o que se passava com ela): um fugidio intervalo entre receio e receio, pesar e pesar, angústia e angústia. Seria virtude, - tal conformação? Como, por vezes, em momentos de mais vivo desespero, lhe viam ainda sobressaltos de revolta, vagamente se lhe pusera à consciência (ou à semiconsciência que, na maior parte das vezes, era a sua) tal interrogação. E depois desistia de pensar, de consultar, e recaía nessa mesma conformação já parecida com um hábito.
José Régio, A Velha Casa III