E talvez mais. Talvez também o que escreveu António Lobo Antunes, na mesma hora em que Semedo partiu: “chamavam-te marialva, galã, machista, irónico, sei lá que mais, quando, na minha ideia, me lembraste sempre esses artistas de circo que dispõem uma mesa no centro da pista, em cima da mesa sete ou oito varinhas verticais, no topo de cada varinha um prato de loiça, e correm, aflitos, de um lado para o outro, a agitar as varinhas de forma a que os pratos continuem a rodar e nenhum deles tombe e se quebre. No teu caso parecia-me que cada prato era uma lágrima. Deus sabes o esforço que fizeste mas nunca deixaste cair nenhuma.”
Este belo texto de Melo Antunes, que foi grande amigo de Artur Semedo, põe o ponto final na ternura que o actor derramava à sua volta. Sim, o Artur era um homem terno, doce e apaixonado. Apaixonado por tudo, pelo cinema, pelo teatro, pelas mulheres, pelos amigos, pelo Benfica. Se ele pudesse ter visto a bandeira do Benfica a meia haste quando o seu funeral passou pelo seu querido Estádio da Luz, teria sorrido feliz.
A história da luva preta
Muita gente ficava intrigada quando via Artur Semedo com uma luva preta na sua mão direita. O mistério da luva preta era afinal uma forma de aquecer a mão que, depois de um acidente com um copo partido, ficara com os tendões afectados e, para sempre, irremediavelmente fria.
A luva preta era, também, a sua imagem de marca. Artur Semedo era o realizador da luva preta, o homem de “O Dinheiro dos Pobres” (1956), “Malteses, burgueses e às vezes” (1973), “O Rei das Berlengas” (1977), “O Barão de Altamira” (1987), “O Querido Lilás” (1987). O homem de teatro de “A Rainha do Ferro Velho” e de “Meu Amor é Traiçoeiro”, com Laura Alves. De “O Vison Voador”, ao lado de Raul Solnado. Do teatro de revista em “Mini-Saias” ou “Mulheres à Vela”. Enfim, Artur Semedo foi homem de sete ofícios, de muitas viagens (Angola, Moçambique, Brasil), de muitos enredos.
A Missa das Sete
Artur Semedo era, todos o sabiam, um benfiquista ferrenho, um benfiquista a quem o clube fazia febre e esfarelava os ossos. Quando ia ver jogar o Benfica, ao Estádio da Luz, costumava dizer que ia à catedral, à missa das sete. E, apesar do Benfica ter sido sempre “a sua religião”, Artur tinha orgulho em dizer que era amigo de Pinto da Costa que vi, triste e sombrio, no velório de Artur Semedo, o mesmo Pinto da Costa que, disse-me Artur, vinha a Lisboa para o visitar no Hospital Curry Cabral, onde o actor acabaria por morrer.
Semedo foi grande amigo de outro grande senhor da Lisboa boémia chamado Diniz Machado. Diniz era sportinguista e o Artur, conta Lobo Antunes, dizia-lhe: “Como podes ser um homem às riscas? O Diniz a sorrir, como se pode ser de clubes às riscas…”
De Arronches para a Luz
Natural de Arronches, alentejano da raia, Artur cedo demonstrou um talento natural para o teatro e até José Régio, que foi seu professor no liceu de Portalegre, escreveu uma peça de teatro para o pequeno Artur representar. O destino estava traçado desde então e mesmo os pais, latifundiários e com militares na família, não conseguiram desviar o rapaz da cena teatral. Ainda passou pelo Colégio Militar de onde acabou de ser expulso e o resto já se sabe como decorreu. Teatro, cinema, televisão, rádio. Imprensa, não houve meio onde Artur Semedo não desse largas à criatividade e ao talento.
Gostava de dizer que a Luz sempre o seguiu na vida. De facto, morava na Luz, o Colégio Militar está situado na Luz e o seu clube do coração vive na Luz.
Apetece-me perguntar, como Lobo Antunes, “morreste?”. E ainda hoje me custa a acreditar. Mas já faz nove anos neste mês de Fevereiro.
Maria João Duarte
(Na TEMPO LIVRE nº 212)
Fevereiro 2010
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