Domingo, 6 de Setembro de 2015

Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?

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 Amanhã meto-me no avião e regresso a Tóquio. As férias de Verão estão quase a acabar e voltarei a calcorrear os intermináveis caminhos do costume. É lá o meu lugar, é lá que está o meu apartamento, a minha mesa de trabalho, a minha sala de aulas, os meus alunos. Esperam-me dias tranquilos, romances por ler. Uma ou outra ligação esporádica.

Uma coisa é certa: não voltarei a ser o mesmo. A partir de amanhã, serei outra pessoa. Os que me rodeiam não se darão conta de que voltei ao Japão completamente diferente. Por fora, nada terá mudado, mas algo dentro de mim ficou reduzido a cinzas e deixou de existir. Houve sangue derramado e, dentro de mim, algo morreu. Desapareceu de vez, de cabeça baixa, sem uma palavra. Há uma porta que se abre e uma que se fecha. Apaga-se a luz. Para mim, tal como sou agora, hoje é o último dia. Este é o meu último entardecer. Quando o novo dia nascer, eu, tal como sou agora, já não estarei aqui. Outra pessoa diferente habitará o meu corpo.

Por que será que estamos condenados a ser assim tão solitários? Qual a razão de tudo isto? Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, todos irremediavelmente afastados. Porquê? Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?

Virei-me de costas sobre a laje de pedra, fitei o céu por cima de mim e pus-me a pensar na quantidade imensa de satélites que naquele preciso momento deviam girar à volta da Terra. No fio do horizonte era ainda possível distinguir uma réstia de luz, e as estrelas começavam a brilhar no céu de um profundo tom púrpura. Procurei com o olhar a luz de um satélite, mas havia demasiada claridade para distinguir fosse o que fosse a olho nu. As estrelas que estavam à vista permaneciam imóveis, cada uma no seu sítio, como se cravadas no céu. Fechei os olhos e prestei atenção para ver se conseguia ouvir os descendentes do Sputnik que continuavam a dar voltas à Terra, tendo como único elo de ligação ao planeta a gravidade. Solitários pedaços de metal que se encontraram de repente nas trevas do espaço, cruzam-se no seu caminho e depois separam-se para sempre. Sem trocarem uma palavra, sem fazerem uma promessa.

Haruki Murakami

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publicado por Elisabete às 19:54
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