Faz hoje dez anos que morreu José Cardoso Pires, o escritor cinematográfico que cortou com o neo-realismo vigente.
As homenagens começaram no princípio do mês e continuam domingo fora.
De qualquer maneira, e como se sabe, um escritor não morre enquanto houver gente a lê-lo.
A pieguice é a assassina, besta devoradora que tenta o escritor. Um escritor mostra, mas não mostra o que sente. Deixa-se aliciar pela torrente sentimental, é como pendurar a forca à volta do pescoço e empurrar o banco debaixo dos pés. O escritor senta-se à mesa e contém o caudal de emoções, inventa-lhes canais, subverte-as e elabora-as para as sugerir de outra maneira. Implícita, jamais explicitamente. O escritor concentra-se e pensa como dizer sem ter de dizer. O leitor que chore se quiser. Mas isso não fica escrito. O escritor controla-se porque um escritor não é sentimental. Quando escreve. Já quando fala, a voz é entidade autónoma. Tenta carregar apressadamente na tecla de “pause” mas já a voz adiantou em inflexões que o atraiçoam e o escritor não tem como dominá-la. A não ser assim: “Estou a ficar comovido, passo a palavra ao Júlio Pomar”. António Lobo Antunes remete-se ao silêncio para fazer o trabalho de contenção. Ainda que, dez anos depois, dê vontade de chorar a absurda ausência de um amigo.
Isto passa-se na casa Fernando Pessoa, em Lisboa, Campo de Ourique, no mesmo dia 2 de Outubro em que Cardoso Pires nasceu, há 83 anos. Morreu dez anos, também no mês de Outubro e, no presente, há apenas uma grande vaga de gente a apinhar a sala para ouvir dois amigos íntimos a falar sobre o escritor. Uma homenagem entre as muitas que este mês acontecem em seu louvor, esta de algum modo especial por não ser apenas uma exposição pelo seu trabalho, mas acabando por ser também a “exposição” de uma amizade. E da nossa avidez de intimidade, nem que seja da dos outros.
Enquanto aqui em baixo (imagem infantil esta de imaginar que os mortos passaram a um plano superior, mas adiante), enquanto aqui em baixo esperamos por revelações, José Cardoso Pires “está a passar no purgatório”. A informação é de Lobo Antunes. “As editoras são máquinas terríveis e horrorosas", diz a propósito de “o Zé não estar agora a vender o que podia estar a vender”. A sala apinhada e o Lobo Antunes a blasfemar contra a rapidez com que, hoje em dia, se faz um escritor: O problema é que ser ou parecer um tipo inteligente não chega. “É o livro que tem de ser inteligente, não o escritor.” E tenta esmiuçar o que está a dizer a partir da escrita do José Cardoso Pires: “Todas as palavras que a gente leu, mas que não estão lá. Isto é muito difícil de fazer!” “É uma prosa seca, não é adjectivada, só aparentemente é simples.”
Como é possível escrever ou descrever sem recorrer a adjectivos, como Cardoso Pires tão trabalhosamente conseguia? Como é que se fica sem adjectivos? Lobo Antunes pergunta e responde: “O Zé era um alpinista que trepava sem corda.” Mas como não há milagres nem grandes escritores instantâneos, o seu processo era o de um infindável riscar e apagar. Inês Pedrosa, directora da Casa Fernando Pessoa e mediadora da conversa, diz, ou melhor, pede confirmação: “A Edite dactilografava-lhe vezes sem conta as inúmeras versões, não era?”, e olha para o público onde a mulher de Cardoso Pires acena afirmativamente.
“O que ele sofria para chegar ali, podia passar uma tarde inteira com uma frase”, diz António Lobo Antunes. E Inês Pedrosa, com um misto de espanto e ternura, acrescenta: “Tinha vergonha de escrever pouco.” Coisa irónica, esta de se medir um escritor pelo amontoado de caracteres que se consegue expelir.
O público aproveita a intervenção de Inês Pedrosa para se queixar de que não ouve nada. Vozes irritadas: “Viemos aqui ansiosos por ter esta oportunidade única e não se ouve nada!” A responsabilidade parece não ser da acústica da sala mas de Lobo Antunes, que fala baixo e se afasta do microfone. O escritor justifica-se com a dificuldade que o tema lhe causa. Fala baixo porque ainda lhe “custa muito estarem ali os dois (ele e o Júlio Pomar) sem o Zé aparecer”. O que é de facto uma daquelas ilusões causadas pela própria realidade porque o Zé Cardoso Pires está ali todo o tempo e em todas as palavras de Lobo Antunes, que se percebe não ter desistido de dialogar com o amigo.
Enquanto vai tentando violentar-se por empatia a esta homenagem pública ao amigo, risca e apaga antes de dizer aquilo que a memória provavelmente lhe vai trazendo. Cada revelação é pontuada pela dúvida: “Há coisas que talvez o Zé não quisesse que eu estivesse a contar.” Arrisca outra vez: “O Zé escrevia no apartamento da Costa da Caparica em frente ao mar; precisava de uma grande concentração para escrever. Até as badaladas da igreja o perturbavam. Precisava de estar num isolamento completo. E, às vezes, por sentir que outros escritores seus contemporâneos recebiam mais atenções, perguntava-me: O meu trabalho não é assim tão mau, pois não?”
O pintor Júlio Pomar, menos verbal, também frisa em Cardoso Pires o sentido de responsabilidade que punha naquilo que escrevia. “O sentido de gravidade perante o objecto que estava a fazer e a quantidade de versões que escrevia. Havia uma diferença abissal entre o contador de histórias, ao vivo, e o escritor.” E diz que “o Zé era um homem eternamente solitário apesar de estar sempre rodeado de gente”. Lobo Antunes conta que em casa dele havia muito poucos livros e que não havia um único livro seu à vista. “Tinha muito pudor.” Recebia imensos livros, rasgava a página da dedicatória e deitava fora o resto, revela. Tal como não tinha fotografias suas ou da família na sala, mas tinha três do Hemingway.
De repente, Lobo Antunes está a falar da morte, a dizer que Cardoso Pires “achava a morte uma coisa indigna”, e das coisas indignas a que ele próprio assistiu, como a maneira como Cardoso Pires foi tratado no hospital, da segunda vez que esteve doente. “A tratarem-no por tu quando ele estava semiconsciente! Não me apetece falar sobre os últimos tempos, foram de uma grande revolta.”
Aplica-se o que Cardoso Pires explicou ainda melhor numa entrevista ao “Jornal de Letras”, um ano antes de morrer. A entrevistadora perguntara-lhe “como encara a morte?”. Cardoso Pires responde: “É mais uma puta. É isso. Pena que a definição não seja minha mas do Hemingway”. E disse também, num documento gravado para a RTP, no ano da sua morte: “Eu tenho medo físico, não tenho medo da morte. Tenho medo do sofrimento, da dor e da humilhação. (…) Morrer, a mim, não me faz diferença nenhuma, desde que me tirem as dores, que é obrigação da medicina. (…) Tenho uma grande admiração pela eutanásia, tenho um grande respeito pela morte ajudada e um grande desprezo pelos tais heróis do sacrifício.”
No CCB e na estante
Cardoso Pires morreu na madrugada de 26 de Outubro de 1998. Se se apressar, hoje, dez anos volvidos sobre o dia da sua morte, ainda vai a tempo de participar numa homenagem que acontecerá no Centro Cultural de Belém (CCB), com leituras da sua obra por António Mega Ferreira, Inês Pedrosa, Mário de Carvalho, Lídia Jorge ou Eduardo Agualusa; com o visionamento da adaptação a cinema de “O Delfim”, de Fernando Lopes, ou com a conferência “Memória e Autoficção”, de João Lobo Antunes, médico, amigo e autor do prefácio de “De Profundis, Valsa Lenta, onde Cardoso Pires descreve e revisita a experiência do acidente vascular cerebral que sofreu em Janeiro de 1995.
Todas as homenagens para que depois possa regressar a casa e reencontrar José Cardoso Pires entre as páginas de “O Anjo Ancorado”, de “O Delfim” ou de “Alexandra Alfa”, e redescobrir a inigualável companhia deste homem e deste escritor, improvável e danadamente vivo
“Não me beije”
Há cinquenta anos, podia “coçar-se o sexo” sem problemas e até violar em grupo uma vadia porque “ou bem que uma mulher pertence só a um homem ou então, catrapus, arroz fingido” (“Ritual dos Pequenos Vampiros” in “Histórias de Amor”). Podia sugerir-se as coisas só não se podia verbalizá-las. Do que a censura não gostava era de palavrões, coisas tipo “comeu-a”, “galdéria” ou “camandro” e, evidentemente, de ninguém que aparecesse nu ou aos beijos num livro. Cardoso Pires escreve: “Não me beije”, a censura corta. Ele escreve: “Com a coberta enrodilhada aos pés, o jovem fitava-a. Estava nu e fitava-a”. A censura corta.
Nelson de Matos, que foi seu editor durante vinte anos, primeiro na Moraes Editores e, depois, na Dom Quixote (onde está editada grande parte da obra de Cardoso Pires), volta agora a sê-lo em nome próprio (Edições Nelson de Matos), com a recente edição do inédito “Lavagante” e do livro de contos “Histórias de Amor”, que não sendo inédito porque foi publicado, e logo apreendido, no Verão de 1952, é original por tudo o que reúne no mesmo volume. E é de leitura deliciosa como curiosidade histórica. Aos contos de José Cardoso Pires, escritor que na altura ainda não completara trinta anos de idade, mas que já deixa inscritas as marcas da obra ímpar que viria a criar, juntam-se todos os cortes que a censura tentou impor-lhe (assinalados a cinzento no texto), bem como a carta que dirige à censura e com que tenta contra-argumentar, mais as críticas ao livro que então foram publicadas, da autoria de Mário Dionísio, Luís de Sousa Rebelo e Óscar Lopes.
A censura regista o livro como “imoral”, sublinhando o retrato que o escritor faz das “misérias sociais” onde “o aspecto social se revela indecorosamente”. “De proibir”, classifica. A crítica enaltece e glorifica o escritor mas aproveita para lhe apontar uns pecados a corrigir e para lhe dar uns pequenos conselhos paternalistas. Felizmente, Cardoso Pires nunca desistiu do pecado que a crítica lhe aponta em uníssimo, corre o ano de 1952. Nas palavras de Mário Dionísio, “grandes escritores americanos continuam a ser presença excessiva nos contos do autor de “Caminheiros” (primeiro livros de contos de 1949). (…) Faulkner, Caldwell, Hemingway, estão demasiado presentes nestas histórias que desejam ser portuguesas”. E mais adiante o conselho de que “o contacto mais estreito com os europeus lhe será utilíssimo na desamericanização dos seus processos e até da sua construção linguística”.
Mas o estilo de Cardoso Pires perdurará, como diz Inês Pedrosa na fotobiografia que escreveu e organizou sobre o autor. José Cardoso Pires “sempre se guiou pela lei anglo-saxónica que manda agarrar o leitor pela gola do casaco e empurrá-lo para dentro do livro – mas educadamente, como convém a um cavalheiro de cartilha. Sempre se deu ao trabalho de neutralizar a resistência à leitura através da técnica da surpresa”.
Imagens retiradas de José Cardoso Pires,
Fotobiografia, de Inês Pedrosa. Dom Quixote, 1999
Notícias magazine
26 Outubro 2008
Texto: Cláudia Moura
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