Sexta-feira, 13 de Março de 2015

Não há vacina para a memória

1968, o ano em que foi possível sentir que alguma coisa terminava. Não tinha um nome para essa coisa. O Ed dizia que era o fim da esperança, e muitas pessoas também o diziam, para onde quer que se fosse. O senhor Eugenides dizia que era a morte da esperança. O senhor Pelowski do cinema também o dizia.

Para a senhora Wolohan era uma outra grande montanha de sofrimento a escalar, de modo e espetar a sua bandeira de coragem no cimo.

Em relação ao Ed, o seu silêncio viu-se completado.

No fim de contas, ele conhecera algumas daquelas pobres pessoas assassinadas, que tinham estado à mesa da senhora Wolohan. Ele falara com elas, elas tinham falado com ele. Ele podia não passar do filho da cozinheira, mas, na América, o filho da cozinheira podia fazer qualquer coisa, e o Ed brilhava como um nascer do Sol em Junho.

Não creio que ele acreditasse que tinha de abrir a balas o caminho de fuga à sua angústia do Vietname. Na verdade, sei que não pensava assim. Fazia parte do corpo de engenharia e especializara-se mais tarde em minas terrestres. Usava um daqueles paus de vedor para as descobrir, madeira de freixo, como se fossem poços. Era um talento que tinha. Montes de camaradas foram implodidos enquanto faziam esse trabalho. Mas o Ed era habilidoso. Almejava pôr em prática essa habilidade, colocar uma coisinha que fosse nos anais da História, muito embora pequenina, a única que possuía. Permaneceu naquele país, do qual apenas me chegavam estranhos vislumbres na televisão pouco nítida a preto-e-branco. Imagino que ele assistia a tudo ao vivo e a cores.

O Ed já não falava muito, agora. Tornara-se um livro fechado na juventude. Eu própria tinha de adivinhar as coisas.

2 sebastian barry.jpg

Se entrou em mutismo, foi um mutismo que acabou, mas somente no que toca à condição geral de adolescente desprovido de palavras. Aos dez anos, irradiava uma intimidade bela. Aos catorze, começou uma longa caminhada de volta ao silêncio. Em criança, era comparável à biblioteca de Alexandria, repleta de histórias e curiosidades raras. Depois, parece que a vida consumiu quase todas essas coisas, página a página. Nunca soube, e ainda hoje não sei, se poderia ter feito alguma coisa quanto a isso. Se calhar era só o facto de estar a crescer. De ainda viajar sem bagagem como homem. Mas eu não deixava de sentir que alguma coisa estava a ser objecto de troca, palavra a palavra, até não haver mais palavras, ou somente um punhado delas, em qualquer dos casos.

Retesou-se. Os músculos endureceram e vestiram os ossos. Vivia na sua própria mente, mas eu não sabia, mas eu não sabia o que lá estava guardado, porque a porta estava aferrolhada. Não fiz barulho, não bati com força pedindo para entrar. Achava que sabia o que era aquilo a que eles chamavam uma fase. Haveria de a atravessar e, no fim, voltar a abrir-se, como uma porta, e sair ao encontro da luz, banhar-se nela. Tinha a certeza absoluta. A razão era por ele ser uma pessoa tão digna de amor. A sua beleza, já desde criança, transformara-se noutro género de beleza. O senhor Dillinger, que gostava de tirar fotografias, tirou uma do Bill que eu tenho cá dentro, ao lado da cama. Foi no dia em que ia apanhar o autocarro do exército para Bridgehampton, para fazer a recruta na Georgia, como o pai, antes dele. Havia cerca de uma dúzia de rapazes do distrito naquele autocarro, tal como antes, mas uma nova geração. O senhor Dillinger apareceu com a sua máquina toda aparatosa. Nem sequer fez o Bill posar para a fotografia, limitou-se a disparar, enquanto o Bill estava de uniforme a beber café, junto ao escorredor do lava-loiça. A luz de Bridgehampton ficou-lhe no rosto, a luz estranha e salgada dos campos da batata de Bridgehampton. A casa do Bill, a sua terra natal. Um americano na América. Uma criança no meu coração. Está simplesmente a levantar a caneca azul na direcção do rosto, vai a meio caminho, para sempre. Está prestes a beber dela, sem pensar. Uma mera caneca de café. Não sabe nada do deserto para onde vai lutar pelo seu país. Acabou de usar exactamente esta frase há uns segundos, transportando-me de volta à velha sala de estar do meu pai, no castelo de Dublin, onde o Willie fez a mesma declaração fatídica. É assim que começa, e lá está, na fotografia. Não há fotografia de como acaba.

 

Sebastian Barry, Do Lado de Canaã

1 sebastian-barry.jpg

 

 

publicado por Elisabete às 16:34
link do post | comentar | favorito
2 comentários:
De Beatriz Santos a 14 de Março de 2015 às 07:36
Os livros chamam-nos com palavras acesas, instantes, doces ou misteriosas. mas a verdade é que não há vida nem bolsa para todos. Haverá para alguns o tempo e o espaço de lê-los e não saberemos nunca se escolhemos ler os melhores. Porém, quem sabe se não somos nós leitores quem lhes completa o ser e cada um tem em nós o seu momento de glória.
De Anónimo a 10 de Outubro de 2016 às 16:40


"... quem sabe se não somos nós leitores quem lhes completa o ser e cada um tem em nós o seu momento de glória."

É isso mesmo.
Obrigada

Comentar post

*mais sobre mim

*links

*posts recentes

* Joaquim Alberto

* ANTERO – ONTEM, HOJE E AM...

* QUINTA DE BONJÓIA [PORTO]

* POMPEIA: A vida petrifica...

* JOSÉ CARDOSO PIRES: UM ES...

* PELA VIA FRANCÍGENA, NO T...

* CHILE: O mundo dos índios...

* NUNCA MAIS LHE CHAMEM DRÁ...

* ARTUR SEMEDO: Actor, galã...

* COMO SE PÔDE DERRUBAR O I...

* DÉCIMO MANDAMENTO

* CRISE TRAZ CUNHALISMO DE ...

* O CÓDIGO SECRETO DA CAPEL...

* O VOO MELANCÓLICO DO MELR...

* Explicação do "Impeachmen...

* CAMILLE CLAUDEL

* OS PALACETES TORNAM-SE ÚT...

* Tudo o que queria era um ...

* 1974 - DIVÓRCIO JÁ! Exigi...

* Continuará a Terra a gira...

* SETEMBRO

* SEM CORAÇÃO

* A ESPIRAL REPRESSIVA

* 1967 FÉ DE PEDRA

* NUNCA MAIS CAIU

* Alfama é Linda

* Por entre os pingos da ch...

* DO OUTRO LADO DA ESTRADA

* Não há vacina para a memó...

* Um pobre e precioso segre...

*arquivos

* Dezembro 2018

* Junho 2018

* Maio 2017

* Abril 2017

* Março 2017

* Fevereiro 2017

* Janeiro 2017

* Setembro 2016

* Junho 2016

* Abril 2016

* Novembro 2015

* Setembro 2015

* Agosto 2015

* Julho 2015

* Junho 2015

* Maio 2015

* Março 2015

* Fevereiro 2015

* Janeiro 2015

* Dezembro 2014

* Fevereiro 2014

* Janeiro 2014

* Dezembro 2013

* Novembro 2013

* Setembro 2013

* Agosto 2013

* Julho 2013

* Junho 2013

* Maio 2013

* Abril 2013

* Março 2013

* Fevereiro 2013

* Janeiro 2013

* Dezembro 2012

* Novembro 2012

* Outubro 2012

* Setembro 2012

* Agosto 2012

* Julho 2012

* Maio 2012

* Abril 2012

* Março 2012

* Janeiro 2012

* Dezembro 2011

* Novembro 2011

* Outubro 2011

* Setembro 2011

* Julho 2011

* Maio 2011

* Abril 2011

* Março 2011

* Fevereiro 2011

* Janeiro 2011

* Dezembro 2010

* Novembro 2010

* Outubro 2010

* Agosto 2010

* Julho 2010

* Junho 2010

* Maio 2010

* Abril 2010

* Março 2010

* Fevereiro 2010

* Janeiro 2010

* Dezembro 2009

* Novembro 2009

* Outubro 2009

* Setembro 2009

* Julho 2009

* Junho 2009

* Maio 2009

* Abril 2009

* Março 2009

* Fevereiro 2009

* Janeiro 2009

* Dezembro 2008

* Novembro 2008

* Outubro 2008

* Setembro 2008

* Agosto 2008

* Julho 2008

* Junho 2008

* Maio 2008

* Abril 2008

* Março 2008

* Fevereiro 2008

* Janeiro 2008

* Dezembro 2007

* Novembro 2007

* Outubro 2007

* Setembro 2007

* Agosto 2007

* Julho 2007

* Junho 2007

* Maio 2007

* Abril 2007

* Março 2007

* Fevereiro 2007

*pesquisar