Domingo, 4 de Janeiro de 2015

Seis anos de divinos tormentos...

Desistir do amor será talvez inevitável,

mas seguramente obsceno.

Júlio Machado Vaz

 

Amor.jpg

O grande amor da minha vida, à semelhança de todas as paixões veementes e sinceras, não foi, não podia ser feliz, e dava para uma linda novela que só teria o defeito de a verdade aparecer inverosímil. Começou, tinha eu 23 anos, quando tentava namorar, num teatro de Sevilha, uma senhora ao lado de quem estava uma menina, quase criança ainda, que se julgou o objecto dos meus requebros. O curioso, também, é que eu, no momento, iludi-me com os olhares da senhora requestada: tomava-os para mim, e eles iam de alma e coração para um oficial de cavalaria que me estava perto. O quiproquó desfez-se; depois comecei a reparar na menina, que encontrava por todos os lados, nos passeios, nas igrejas, nas tertúlias, e que ruborescia como rosa de Maio apenas me encarava. Iniciou-se o galanteio, estabeleceu-se correspondência; e como era uso em Sevilha, eu acudia todas as noites a falar-lhe às grades de uma janela do seu palácio que abria para uma travessa erma e tortuosa. E neste regime romântico andámos perto de 6 anos! que foram tempestuosos, e cruéis, e adoráveis. Tudo me era pretexto para ir a Sevilha; e à custa de quantos sacrifícios e habilidades, muitas vezes! [...] Mas não vem para aqui a narração do que foram esses 6 anos de divinos tormentos. Basta dizer o desfecho. O amor entrara naquele coração virginal, em labaredas, e com todo o seu cortejo de ilusões; e consumira-se por si à medida que as ilusões se desfaziam. Mas, na ingenuidade do seu arrebatamento, ela fizera-me promessas a que se julgava ligada eternamente: "mais ainda do que se a Santa Madre Igreja as houvesse sancionado", repetia-me a miúdo, e ao seu espírito brioso, e de católica fervente, afigurava-se mais fácil morrer do que faltar ao prometido. Em mim o amor, que nascera da curiosidade, ateara-se lentamente, e tomara tais proporções que a morte me parecia mil vezes preferível a perdê-la. Mas a oposição, por parte do pai, à nossa união, era invencível; a minha namorada, já rica de si pelo legado de um tio-avô, era filha única, e herdeira de um grande nome e de uma fortuna imensa, e eu não tinha, como se diz na minha terra, "nem eira, nem beira, nem ramo de figueira"; e quando me convenci de que o seu amor desaparecera, julguei-me obrigado a desligá-la dos seus juramentos. Foi uma operação horrorosa, uma espécie de amputação que me deixou leso para o resto da vida. Mas fi-la. 

Manuel Teixeira-Gomes, in Miscelânea 

Manuel Teixeira-Gomes.jpg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 (através de David Mourão-Ferreira, in Terraço Aberto)

 

 

 

publicado por Elisabete às 13:34
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