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- Ouça, senhor Zarco, por que não escreve umas memórias? – sugeriu-me ele quando se despediu de mim, sentindo que me incomodara. – Pelo menos assim pode contar tudo da maneira que quiser.
Parecia-me uma ideia absurda, mas, alguns dias depois de ele ter partido, peguei no cálamo e na tinta. Trabalhar dessa maneira produziu em mim uma estranha sensação de estar a fazer o que era correcto. Mais tarde, percebi que estivera à espera de dar voz à minha história desde que o Grande Inquisidor me dissera pela primeira vez a sua charada sobre um livro poder continuar a falar aos leitores muito depois de o terem terminado. Afinal, reduzir a minha história a escrito era a única maneira que tinha de, a partir do meu túmulo, falar de tudo o que acontecera. E era alguma coisa – talvez a única coisa – que podia dar de volta ao mundo em troca de todo o mal que fizera.
O Geral da Inquisição de Goa nunca poderia ter adivinhado que daquela maneira me estava a ajudar. E também isso parecia acertado.
Nestes últimos meses, sentado à secretária a escrever sobre Sofia, Wadi, Tejal, o meu pai e Phanishwar, tenho sido capaz de, para além de mim próprio, espreitar para os calabouços de Goa, de Lisboa e de uma centena de outras cidades na Ásia, na Europa e na América. Vi os homens e mulheres a apodrecer neles em nome de Cristo, Maomé e Krishna. Desejaria poder dar-lhes mais do que isto, mas isto é tudo o que tenho.
Em breve o leitor há-de fechar a capa deste manuscrito, selar-me lá dentro, e seguir o seu caminho, como lhe compete, mas talvez pense nesses prisioneiros – e em mim – de tempos a tempos. Agora que pego no último desenho da minha irmã e olho para ele à luz de uma única vela, talvez o leitor possa sentir até a morna brisa que entra pela minha janela em Bijapur, arrastando consigo o odor das flores de tamarindo. Consegue ver-me a pôr a mão sobre o contorno dos dedos que Sofia desenhou há tanto tempo? Vou rezar por que possa, e por muitas outras coisas:
Que Ana, Gonçalo, o meu pai, Sofia, Wadi, e todos os mortos descansem em paz.
Que Phanishwar tenha tido uma boa reencarnação.
Que Nupi tenha perdoado ao afilhado.
Que o meu filho nunca tenha sabido de mim e que Tejal tenha sido feliz.
A seguir, vou pegar na minha cruz de prata e sair para o meu alpendre para observar o pôr do Sol. Tentarei congregar alguma da coragem do meu pai, mas, por favor, não pense muito mal de mim se me vir tremer. Afinal, já sabe que não sou um homem muito corajoso, e, de qualquer forma, não é coisa fácil terminar uma história, mesmo uma história em que desempenhámos o papel do vilão.
TIAGO ZARCO
Bijapur, 14 de Maio de 1616
Richard Zimler, Goa ou o Guardião da Aurora
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