Quinta-feira, 2 de Julho de 2009

A Casa de José Régio em Vila do Conde

 

1. Casa onde nasceu

2. Casa da Madrinha Libânia, onde morreu e instalou o Museu

  

 
A triste experiência da vida do colégio não fizera senão revigorar o seu amor por aquela casa onde nascera, onde vivera uma infância um pouco estranha mas sedutora, e onde, afinal, se reconhecia feliz sempre que podia sê-lo. Assim se pusera a perscrutá-la, a saboreá-la, a querer-lhe em todos os seus recantos pitorescos, estudando-a como se estuda um livro nunca esgotado. Nem Lelito precisava sair fora para correr praças, avenidas, ruas, becos, retiros, escadarias. Tinha-os ali, dentro daquela sua casa, como os teria na cidade do Porto; - embora em ponto pequeno. No quintal, que era um prolongamento, achava jardins e bosques, hortas e frescos recessos, uma escapada para a imensidade do céu, miradoiros sobre os horizontes longínquos… Assim, mais do que nunca, se lhe tornara aquela casa um mundo: o seu verdadeiro mundo. Como quem vai, a certa hora, sentar-se num certo banco de certo jardim público, ia, pelo entardecer, sentar-se com um livro na sala de jantar, a uma das janelas quase rentes ao quintal. Às vezes, madrinha Libânia estava no canapé. Mas a sua presença contemplativa, a que se habituara durante a doença, não lhe era senão um aconchego a mais. Na cozinha, quase em frente, só separada da sala de jantar pelo corredor, Piedade atarefava-se. Lelito gostava de entrever o seu amplo vulto e a sua face carinhosa, como ela gostava de saber que o menino estava ali perto. Francisca descia a escada em caracol, vinha pôr a mesa. Francisca estivera seis anos em casa do senhor barão da Ponte d’Este. De lá trouxera o seu ar de criada de casa nobre (com que não podia a ti Pinheiro!) e aquela cerimoniosa discrição que a fazia pôr a mesa sem um tilintar de louça, ou um rumor de passos, para não perturbar o menino que lia. (Lia? mas na verdade lia?...) Quem não fazia cerimónias era o canário, no corredor. Lelito distraía-se acompanhando sem querer as modulações estridentes que ele ensaiava, gulosamente espiado pelo Trovador…; - o qual herdara tal nome dum Trovador antecedente, como o herdara este de todos os anteriores gatos da casa. Quando as estridências do canário o impacientavam, Lelito ia sacudir-lhe a gaiola; ou então, assustava-o com pancadas dum trapo no arame. E ninguém poderia saber como todas estas coisas minúsculas, estes pormenores que a outrem ou pareceriam ridículos ou simplesmente passariam despercebidos, - ajudavam Lelito a curar-se: a lutar contra as forças daquele mundo tenebroso e álgido que ainda, a espaços, o atraía… Com estes pequenos nadas tentava fazer – e realmente fazia – amarras bastantes fortes para o prenderem à esperança; para o amarrarem à vida e ao prazer da vida. E até, às vezes, se esforçava por voltar a formas de sentir, de sonhar, de esperar, que tinham sido características da sua infância. Ah, poder tornar a viver – ao menos por um momento – com a inocência e a frescura de outros tempos, antes de recomeçar a vida lá de fora! reconquistar o antigo e feliz desapego, que lhe permitia só se apegar naturalmente ao que lhe agradava! E assim, às vezes, vinha mais cedo, há hora em que Piedade ainda fazia renda rezando o terço com madrinha Libânia, e ao lado de ambas se punha a folhear, como outrora, as velhas revistas conservadas na gaveta da papeleira. Quando, por uma espécie de cansaço daquele envelhecimento a que já chegara, (sobretudo por experiência de si mesmo) independentemente dos seus esforços voluntários reatingia, de facto, um estado de frescura infantil nos sentimentos e impressões, - um estado de graça – tais horas eram para ele cheias de encanto. E sem mesmo o procurar exprimir sequer perante si próprio, através de tudo isto sentia Lelito fazer-se presente – melhor: fazer-se eterno – todo o passado da família, ou pulsar realmente vivo o coraçãodaqueles muros...

 

 

 

 

Porque não bastava que viesse sentar-se à janela da sala de jantar, como quem vai sentar-se num banco predilecto dum jardim público; não bastava que entre certos escaninhos da casa, que buscava nas horas de particular devaneio, e as partes mais agitadas pela lida quotidiana, visse a mesma diferença que há entre certos recantos duma cidade e os seus centros mais movimentados; não bastava que passeasse nos corredores, entrasse nos quartos, subisse ou descesse escadas trocando umas palavras com quem topasse, como quem sai a divagar pelos cafés e ruas, dando uns dedos de palestra aos amigos; não bastava que hesitasse, às vezes, entre o instalar-se numa ou noutra parte, (por exemplo: na sala de jantar ou a uma das janelinhas do sótão; no seu quarto ou na varanda da buganvília; na saleta contígua ao quarto de madrinha Libânia ou na sua pedra por trás das canas-da-índia) como quem hesita entre os sítios mais afastados, convidativos todos mas por atractivos diversos; não bastava, em suma, que fosse a casa para ele uma cidade inteira… mais que uma cidade, um mundo!: Era preciso que a sua imaginação a tivesse identificado com um ser vivo. Pois não lhe sentia ele bater o coração? não aprendera a penetrar nas encantadoras delicadezas do seu espírito? Se ninguém mais o sabia, - sabia ele que a sua casa tinha alma e nervos. Reconhecia-lhe os dias de melancolia, as horas de festa, os vaivéns do humor… Destas coisas, porém, não podia falar senão consigo próprio; ou, às vezes, nos seus papéis, - o que vinha a dar no mesmo. Eram coisas que faziam parte do seu segredo. E quem lhas compreenderia? Qualquer observador superficial não deixaria de atribuir à disposição dos móveis, ou a qualquer outro motivo meramente externo, o aspecto característico dum aposento: assim como à vida e costumes dos moradores toda a vida da moradia. Ora a verdade é que, nestas questões subtis, já todos apareciam a Lelito como suspeitos de superficialidade. A verdade nua e crua era, até, que a imensa maioria dos homens (incluindo os reputados de inteligentes) lhe apareciam réus da mais charra incompreensão perante o quer que se lhes ofereça de verdadeiramente subtil… Mas, visto ser ainda muito limitado o seu conhecimento experimental dos homens, fundava-se tal juízo mais na intuição do que na experiência. O que lhe mostrava a experiência é que ninguém, senão ele, sabia na casa como ela tinha personalidade própria; como dessa personalidade compartilhavam todos os aposentos, tendo, embora, cada um o seu papel funcional; e como não só a personalidade da casa era insubmissa às coisas e pessoas que a povoavam, mas antes acaba por pesar sobre os seus gestos, palavras, atitudes, sentimentos…
 
José Régio, A Velha Casa I

 

 

publicado por Elisabete às 18:49
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Segunda-feira, 29 de Junho de 2009

Que nada me dariam do infinito que pedi...

Vila do Conde.Estátua de José Régio

 

Poema do silêncio

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi-trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. Ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.
 
                                                                    José Régio

 

publicado por Elisabete às 18:57
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Domingo, 5 de Outubro de 2008

Renúncia conformada

 

 Maria Clara

 
De maneira lenta mas segura, Maria Clara viera realizando um grande progresso: renunciara à felicidade. Ser feliz, não ser feliz, - como ser legítimo, ou não, passar-se com ela o que se passava – eis questões que, pouco a pouco, haviam deixado de se lhe apresentar à consciência; ou à semiconsciência que, na maior parte das vezes, era a sua. Todo o seu actual empenho se reduzia a ir passando os dias sem novidade de maior. Isto é: sem que explodisse qualquer cena com Joaquim. Para isso tinha Maria Clara de exercer uma vigilância cada vez mais hábil (em que sempre se apurara) não já só sobre os seus próprios gestos, palavras, impulsos, como sobre os do marido. Da interpretação destes, que muitas vezes eram enigmáticos ou dúbios, dependia o tom, a maneira, como devia responder ela própria, como se devia ela própria comportar. Assim, dia a dia, viera perdendo o melhor da sua antiga espontaneidade. Também da sua antiga alegria e frescura. Muito aprendera, em compensação; muitas coisas pequenas que lhe poderiam servir a evitar, ou rodear, grandes desgraças. Não era de admirar que estivesse mais inteligente!, como não pudera deixar de notar o próprio Joaquim.
Alegria..., - mas já, actualmente, lhe era uma alegria sacudir aquela timidez, aquele temor, aquele constrangimento ou fingimento em que, no geral, se mantinha perante o marido: atitude por vezes penosa que já, então, desejava o momento de o ver sair. Já libertar-se da sua presença lhe era, certos dias, um alívio! Já conversar livremente com a mulher dos recados, ou ouvir a senhora Rosa Venâncio e dar-lhe trela, ou entreter-se com os arranjos quotidianos da casa (esperando vagamente que o Joaquim voltasse de melhor sombra) se lhe tornara uma felicidade. Relativa, sem dúvida. Porque talvez, em verdade, não seja de todo rigoroso dizer-se que Maria Clara renunciara à felicidade. Quem lhe renuncia? E então ela, Maria Clara!... Só a noção – antes o sentimento – de felicidade se lhe estreitara ou empobrecera muito; e quase toda a sua grande luta não era agora senão pela conquista dum certo sossego, ou dumas pequenas felicidades provisórias e domésticas, circunstanciais, que dantes lhe parecia nada terem com a felicidade, mais não sendo que uma espécie de zona neutra quotidiana. Ia sempre envelhecendo, pois. Já cada vez se contentava com menos, tendo aprendido a conformar-se. Isto é: tendo aprendido que, geralmente, não passa o nosso bem-estar dum breve descanso do mal-estar já normal, (isto era o que se passava com ela): um fugidio intervalo entre receio e receio, pesar e pesar, angústia e angústia. Seria virtude, - tal conformação? Como, por vezes, em momentos de mais vivo desespero, lhe viam ainda sobressaltos de revolta, vagamente se lhe pusera à consciência (ou à semiconsciência que, na maior parte das vezes, era a sua) tal interrogação. E depois desistia de pensar, de consultar, e recaía nessa mesma conformação já parecida com um hábito.
 
José Régio, A Velha Casa III

 

publicado por Elisabete às 15:21
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Segunda-feira, 22 de Setembro de 2008

José Régio e uma casa da minha memória

Lugar da minha memória

 

Toada de Portalegre

 

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...
 
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego.
 
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras
Ao vento suão queimada
( Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela
 
 
Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tosse e gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!
 
 
Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e amarelos,
Salpicados de oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como as do meu aconchego...
 
Ora agora,
Que havia o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento suão
De se lembrar de fazer?
 
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O documento maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?
 
 
Lá num craveiro, que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus...
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...
 
Como é que o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere... e consola
Com o próprio mal que faz?
 
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre; cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida
- Não vivida!, sim morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do tal suão
Já varias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...
 
Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a trás à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela!
 
Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acaciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu; dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...
Quem desespera dos homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!,
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!
 
O amor, a amizade, e quantos
Mais sonhos de oiro eu sonhara,
Bens deste mundo!, que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixando só, nulo, vácuos,
A mim que tanto esperava
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...
 
E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casa que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.
 
Vento suão!, obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar, me chegara!
 
E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!... mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.
 
                                                      José Régio
 
 

 

publicado por Elisabete às 11:52
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Domingo, 27 de Julho de 2008

REMAR CONTRA A MARÉ

 

 A marcha do caranguejo
 
1.José Régio publicou, no número 14/15, de “Presença” (há 80 anos!), “A Lição Inútil ou Carta a um Juvenil Individualista”, que o leitor poderá encontrar na preciosa edição fac-similada compacta da revista (Contexto) ou em “Páginas de Doutrina e Crítica da Presença” (Brasília Editora). Convinha relê-la e, especialmente, introduzi-la no programa de leituras dos alunos do ensino secundário, cuja pobreza e desconchavo ofendem o bom gosto. O texto de Régio é actual e interveniente: obriga quem lê a pensar e a impor-se a coragem da liberdade individual – e exige, aos outros, que a deixem afirmar-se. Destaco – entre tantas importantes – a seguinte frase: “ser de determinada maneira pessoal e fatal – qualquer coisa que se seja!” Isto é: lutar e descobrir e assumir cada um o seu caminho. Descobrir-se, em diálogo franco e amigo, com os mestres que o ajudarão a escolher-se, oferecendo-lhe ou proporcionando-lhe o mais vasto leque de opções. De ambas as partes, a alegria e a confiança. Fazer-se, pois, o jovem um homem verdadeiro: livre, consciente e habilitado a sempre alargar o aprendido.
 
2.Não creio que a lição de Régio interesse àqueles que, entre nós, decidem da “educação”. Durante o ano escolar que termina, o leque de opções dos alunos reduziu-se: descartaram-se as humanidades e simplificou-se e facilitou-se o que se deveria aprofundar. E aos mestres, espicaçados, rebaixados, desconsiderados, feriu-se, mortalmente, não apenas a auto-estima mas também o amor à profissão. As consequências desastrosas estão à vista dos que percebem o cinismo (e a perniciosidade) de certas “estatísticas”. Em suma: a mentalidade a andar para trás…
 
Manuel Poppe,
 Jornal de Notícias [27.07.2008]
publicado por Elisabete às 22:24
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