(O verdadeiro osso das coisas)
Posso dizer que foi um ano branco, aquele. Redigida a Carta Constitucional, o país auscultado com o estetoscópio da democracia parlamentar. Henrique esfumava-se sob um álamo, a cinza devolvia a política aos altares naturais.Só falava quem tinha pergaminhos ou quem não tinha vergonha de tropeçar na sua ignorância. Nos anos de brasa podia-se mostrar a ignorância sem vergonha. A ignorância era uma medalha da opressão. Os doutores ouviam os ignorantes e apreciavam a sabedoria da ignorância. Mas a cinza repôs o pêndulo da História e os néscios voltaram a ter vergonha. O país ficou ponderado. No fundo, o país não queria falar tanto, só queria ouvir quem tivesse o mérito da fala, apreciar a oratória televisiva. Tornou-se um país de cidadãos sentados com a faca numa mão e o queijo na outra. O queijo era o sorriso do político e a faca o voto do eleitor. Aceitaram-se os patrões e os capatazes como inevitabilidade da vida, eram as cigarras da economia. Eu estava numa posição de privilégio para o dizer porque era patrão e empregado ao mesmo tempo, tinha dado dois dias de salário à nação no tempo do Vasco Gonçalves, um como empregado e outro como patrão. Descobriram-se curvas desconhecidas na nossa língua. Foi tempo da Sónia Braga e do doutor Mundinho. Cinema indiano, introspecção, melodrama, frigoríficos, televisores.
[...]
O amor, soube-o ali, não precisava de palavras de legendar filmes. E antes que nada mais restasse do que uma narrativa inútil, juntei as minhas bagas de trovisco às do padre Rubim e transformámos os Melros numa associação cultural com teatro, biblioteca, desporto, escola de música. Tal como a utopia nos tinha ensinado. E utopia pareceu-me uma palavra justa para definir um sonho amplo no céu coberto pela cinza dos dias.
CARLOS TÊ, O Voo Melancólico do Melro
Quim Comandos preocupa-me, o seu estado enquistado em processo revolucionário permanente. As paredes do bar grafitadas com frases de ponta e mola, assinadas por um tal comandante Raio:
Os mais fortes demoram apenas mais tempo a ser abatidos.
O objectivo da guerra é atingir a paz, o objectivo da paz é acabar com a guerra; o meu objectivo é acabar com as duas.
Quero que todas as revoluções aconteçam ontem. Hoje é demasiado tarde.
Que raio de comandante será este? Tenho a certeza de que é apenas um pseudónimo do próprio Quim, devoto do Che Guevara e de mais ninguém. Preocupa-me esse seu estado alucinado, vulcão adormecido capaz de atravessar a qualquer momento a fronteira entre a sanidade e a loucura e fazer um disparate, julgando que a revolução, a insurreição armada, chegará num dia talvez de nevoeiro, como um sebastianismo no cano de uma metralhadora.
No entanto, por vezes parece-me que tem razão. Esta sociedade precisa duma revolução. Quando olho para o mundo e vejo a loucura das guerras, fomentadas pelos comerciantes de armas e por aqueles que fazem fortunas a reconstruir cidades arrasadas por bombardeamentos… Quando vejo a corrupção de governantes e políticos, quando assisto impotente a todas as técnicas de manipulação da imprensa, do condicionamento das mentes, quando os eleitores elegem sucessivamente quem os conduz ao desastre e à miséria, sem saber como ou porquê, quando a democracia é apenas uma forma mais trabalhosa de alguns explorarem todos, aí eu tenho a certeza de que Quim Comandos é senhor da razão. Loucos são os outros…
Miguel Miranda, Sem Coração
A explicação do sossego do quarto ao alugá-lo era ser domingo. Os vizinhos daquele prédio tinham ido de passeio ao campo, restituir-se à natureza.
Saiu da cama e subiu os três degraus para chegar à janela. Já começara o primeiro aviso do anoitecer. Vinha uma aragem do Tejo, fria, na cara quente de estar deitado, o bastante para mudar para outro assunto. O rio movia-se com um certo rebuliço, que dava a ideia também de ir fechar por hoje. Em todo o caso via-se bem que era domingo, pois o ruído era diferente do dos dias úteis. No fundo dos pátios, os andares mais baixos acendiam as luzes. O Antunes descobriu que a noite nascia da terra. Um transatlântico imenso custava a deslocar-se do cais, como um mau pensamento leva tempo a deixar-nos. O resto do dia juntava-se todo a Oeste. A outra margem perdia o volume e achatava-se num plano. Cada vez ia cabendo mais tudo dentro de uma só olhadela. Poder-se-ia ver Portugal inteiro de uma só olhadela, como no mapa, em aeroplano?
- Palmela e Almada. De cá, Sintra e Santarém. Mouros, Afonso Henriques. Os cruzados. E desde então até hoje. Até aqui a esta água-furtada. Até mim. Tanta gente e tantos séculos encarreirados por aqui: as quinas, Avis, caravelas, o pelicano, a esfera armilar, Filipes, azul e branco, encarnado e verde, e continua. Nada para mim. Portugal.
José de Almada Negreiros, Nome de Guerra
Desistir do amor será talvez inevitável,
mas seguramente obsceno.
Júlio Machado Vaz
O grande amor da minha vida, à semelhança de todas as paixões veementes e sinceras, não foi, não podia ser feliz, e dava para uma linda novela que só teria o defeito de a verdade aparecer inverosímil. Começou, tinha eu 23 anos, quando tentava namorar, num teatro de Sevilha, uma senhora ao lado de quem estava uma menina, quase criança ainda, que se julgou o objecto dos meus requebros. O curioso, também, é que eu, no momento, iludi-me com os olhares da senhora requestada: tomava-os para mim, e eles iam de alma e coração para um oficial de cavalaria que me estava perto. O quiproquó desfez-se; depois comecei a reparar na menina, que encontrava por todos os lados, nos passeios, nas igrejas, nas tertúlias, e que ruborescia como rosa de Maio apenas me encarava. Iniciou-se o galanteio, estabeleceu-se correspondência; e como era uso em Sevilha, eu acudia todas as noites a falar-lhe às grades de uma janela do seu palácio que abria para uma travessa erma e tortuosa. E neste regime romântico andámos perto de 6 anos! que foram tempestuosos, e cruéis, e adoráveis. Tudo me era pretexto para ir a Sevilha; e à custa de quantos sacrifícios e habilidades, muitas vezes! [...] Mas não vem para aqui a narração do que foram esses 6 anos de divinos tormentos. Basta dizer o desfecho. O amor entrara naquele coração virginal, em labaredas, e com todo o seu cortejo de ilusões; e consumira-se por si à medida que as ilusões se desfaziam. Mas, na ingenuidade do seu arrebatamento, ela fizera-me promessas a que se julgava ligada eternamente: "mais ainda do que se a Santa Madre Igreja as houvesse sancionado", repetia-me a miúdo, e ao seu espírito brioso, e de católica fervente, afigurava-se mais fácil morrer do que faltar ao prometido. Em mim o amor, que nascera da curiosidade, ateara-se lentamente, e tomara tais proporções que a morte me parecia mil vezes preferível a perdê-la. Mas a oposição, por parte do pai, à nossa união, era invencível; a minha namorada, já rica de si pelo legado de um tio-avô, era filha única, e herdeira de um grande nome e de uma fortuna imensa, e eu não tinha, como se diz na minha terra, "nem eira, nem beira, nem ramo de figueira"; e quando me convenci de que o seu amor desaparecera, julguei-me obrigado a desligá-la dos seus juramentos. Foi uma operação horrorosa, uma espécie de amputação que me deixou leso para o resto da vida. Mas fi-la.
Manuel Teixeira-Gomes, in Miscelânea
(através de David Mourão-Ferreira, in Terraço Aberto)
Mais tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas.
Quando empedernir, esquecido de toda a humanidade da vida, ficará entre as loiças, como inútil souvenir ou peça de mesa para uma festa que nunca acontecerá.
Terei sempre pena dele. Estará como um animal antigo que perdeu a qualidade dos novos dias. Sem visitas. Será apenas a humilhação entristecedora de todos os afectos.
Poderei, nas arrumações, preparando alguma partida, aligeirando os fardos, deixá-lo no lixo para que a natureza o recicle com as suas ganas aturadas de recomeçar tudo. Até lá, a minha coragem assume apenas a evidência de que somos matéria morrendo. Começarei morrendo pelo coração.
Gostarei sempre dele, como se gosta do que está extinto, sejam os dragões, os anjos ou as distâncias. Histórias de coisas que não voltam.
O meu coração sem visitas perderá a memória e, quando nos separarmos de vez, certamente será mais feliz.
Se me perguntarem, direi que nasci sem ele. Jurarei e mentirei sempre.
Talvez, depois de esquecido, sirva de ocarina e possa com ele tocar canções. Um coração por ocarina faria todo o sentido do mundo.
Pudesse esse ser o destino de cada um, amadurecer assim o coração. De percussão a instrumento de sopro. Ensaiar uma melodia até ao fim. Ter uma melodia por identidade e deixá-la a alguém que a aprendesse. Quando não existíssemos, estaríamos suficientemente no som. Bastaria o som para impedir que a morte fosse tão exagerada. Talvez quem aprendesse a canção pudesse também guardar-nos as paixões. Pousá-las ao pé de si. Dizer: esta ocarina é bonita. A morte seria só bonita. Uma coisa de ouvir, contra o silêncio insuportável.“O que é que te torna diferente?”
Bosco encolheu os ombros.
“O que é que nos torna diferentes de qualquer outra pessoa?”
“Diz-me tu.”
“Uma marca de finitude”, disse Bosco.
“Não sei se te compreendo.”
“Tu, por exemplo. O que é que fazes da vida?”
Demorei algum tempo a responder.
“Na verdade, grande parte do tempo não faço coisa nenhuma. Às vezes sou escritor. Ou fui escritor. Ou escrevo. Ou costumava escrever.”
“E o que é que faz um escritor?”
Franzi o sobrolho.
“Escreve?”
“Porquê?”
“Porque tem uma pergunta na cabeça para a qual não sabe a resposta.”
“Portanto, tenta dar-lhe resposta, ordenando o mundo com as suas palavras.”
Na gare do Sul e Sueste, fazendo horas enquanto aguardavam a chegada da família real, as senhoras, abrigando-se da brisa fria que vinha do rio, recolhiam à sala de espera e os cavalheiros, em pequenos grupos, discutiam cá fora a situação política e, sobretudo, os últimos boatos que circulavam. Os ministros presentes na estação, afirmavam que nada de anormal iria ocorrer, pois os cabecilhas da anunciada conspiração estavam todos eles presos. As cartilagens dos ouvidos dos jornalistas moviam-se, tentando captar declarações que poderiam ser interessantes para o seu trabalho.
O grupo operacional, atento à chegada do vapor, aproveitava também proveitosamente este período suplementar concedido pela avaria ferroviária para, à sombra das arcadas do lado Norte, em vozes sussurradas, recapitular o que cada um iria fazer quando chegasse a hora. Era o das barbas escuras e arruivadas, junto à estátua de D. José, o atirador A dispararia um tiro de revólver, sinal para a operação ser desencadeada. O atirador B, também de junto da estátua, do alto dos degraus que rodeiam o pedestal, dispararia tiros de carabina na direcção do landau, mais com intenção de provocar pânico e desorganização nas forças policiais. Se acertasse, tanto melhor. Estes dois homens, cumprida a sua missão, tentariam aproveitar a confusão que, decerto se seguiria, para, misturando-se com a multidão, fugirem e refugiarem-se nos locais previamente preparados. O atirador C, munido de uma carabina e colocado junto do quiosque que ficava em frente do ministério da Fazenda, colocar-se-ia em posição atrás da carruagem real e começaria a fazer fogo, tentando eliminar o maior número possível dos seus ocupantes, a começar, naturalmente, pelo rei. O atirador D saltaria sobre o estribo do landau e dispararia sobre o rei e sobre os filhos e a rainha. O atirador E, situado no ângulo ocidental da praça, na esquina da Rua do Ouro com a Rua do Arsenal, munido de carabina, interviria se os atiradores anteriores tivessem falhado. Caso verificasse que os atiradores C e D não tinham falhado, nem teria necessidade de intervir e poderia, sem problemas retirar-se. Portanto, o papel principal da acção cabia ao atirador C (o de barbas e varino até aos pés) que, aliás, de todos eles, era o mais credenciado em termos de perícia. Teria, todos o sabiam, poucas possibilidades de escapar. O atirador D, o que ia saltar sobre o estribo, desempenharia também importante, necessitando de grande coragem e sangue-frio. Na realidade, embora nenhum deles o verbalizasse, era quase certa, igualmente, a sua não sobrevivência ao atentado, pois ficaria praticamente colado aos cavaleiros da escolta.
… ontem Lício, suicidou-se um vizinho meu, que eu mal conhecia. E foi o bastante: o meu Natal abortou ontem. Sabes, via-o todos os dias: era um velhote muito direito… Todo branco, baixinho, mas muito direito. Só tinha isso de particular: aquele aprumo, aos sessenta e tal anos. Não sei ao certo quantos…
- E por que é que ele se matou?
- Aí é que está a graça da história. Suicidou-se, com um raticida, imagina, porque a reforma não chegava. Não lhe chegava para viver. As reformas não chegam, Lício. Pensa bem: um homem velho, só, já incapaz de trabalhar e em frente dele apenas uma perspectiva… a miséria. Um, não: muitos. Muitos velhos. Mas este sempre tinha andado direito; não se resignou: matou-se.
- É por causa destas coisas, Lício – continuou Manuel João, momentos depois -, que às vezes, no meio das nossas conversas sobre livros, sobre cinema ou pintura, eu dou comigo a pensar que somos todos, mesmo nós, uns “parlapatões”. Enquanto estas misérias subsistirem, até a inteligência é um pecado!
- Sim, meu velho, mas que podemos nós?...
- Nada. E tudo, talvez. Não sei, Lício. Às vezes, a atenção bastaria… E nós passamos distraídos, pelo meio da desgraça, embriagados com palavras. Eu via todas as manhãs aquele velho. Mas não reparava nele: sonhava com a Liberdade – levou a mão, pesarosa, ao bolso, do lado do coração, onde levava a carteira e nela o papel pelo qual se batera antes, no café. – E a liberdade, a liberdade para nós, a ressurreição dos nossos direitos, adiantaria alguma coisa ao meu vizinho… falecido?
- Talvez…
- Pois é: talvez. Mas eu gostava de ter a certeza. A certeza de que não havemos de esquecer os velhos sem esperança, nem os catraios com fome, nem estes cegos que tocam pelas ruas, nem os que morrem sem um queixume, quando formos nós a fazer congressos e filmes, e exposições… Porque restaurar a verdade não basta. É preciso modificar a verdade. E mesmo a ciência, mesmo a beleza me parecem frívolas, vãs, se…
- Mas a ciência é um caminho, Manuel, a beleza também, de outro modo…
- Mas a miséria…
- Não podes acabar com ela de um da para o outro.
- Eu sei. E também sei que mesmo a extinção da miséria material não torna os homens felizes. Mas estou certo de que as subtilezas do pensamento, as euforias do amor, a dignidade da arte livre, tudo o que tu e eu e outros como nós podem desejar e têm razão para desejar, nada disso, Lício, está ainda ao alcance dos deserdados, no género daquele, vês, que ali vai, carregado como um jumento, com tábuas à cabeça, nesta tarde de festa…, e como os que nem se mostram, metidos nas suas tocas. Por isso, Lício, o que dá um sentido à minha vida, que de outro modo o não teria, porque eu não sou de grandes préstimos nem de formidáveis talentos, é apenas isto: a luta contra a miséria. É esse o meu único crime… E, apesar disso, às vezes (sem retórica, meu velho), chego a pensar que tenho efectivamente uma culpa a pesar-me na consciência: a solidão. Porque a minha independência, a minha ciosa independência, cria em volta de mim a solidão. E essa solidão não será, na verdade, um crime?
- Porquê?
- Porque um homem só não se ilude: sabe que nada consegue. Mas, Lício, onde é que está a boa-fé? Eu falo, falo, eu bem falo, mas não abdico, não posso… Não poderia sujeitar-me à mentira, a outra mentira ao contrário desta, nem à violência, ainda que convergissem para o mesmo fim que eu ambiciono, para o bem comum, para a redenção que eu desejo… Nem a liberdade, apesar de tudo, não, não é para mim uma palavra vã! Quando é que encontraremos, lado a lado, a eficiência e a dignidade, o futuro e o presente, limpos e lisos, à espera do nosso abraço ou do nosso sangue? Porque então…
- Mas, se calhar – disse Lício, já lá não chegaremos, a menos que tudo se precipite no mundo, durante estes quinze anos. E quinze anos, para mim, é muito: não consigo conceber-me velho. A ideia da velhice aflige-me mais que a da morte. Com a morte ainda tenho uma intimidade…
- Sim, sim… E até lá?...
E se os portugueses, fartos de verem o seu futuro roubado, optassem em referendo pelo fim do país? É desta situação-limite que parte Despaís", o novo romance de Pedro Sena-Lino, situado em 2023. "Espelho negro" do país, e não "uma sátira à conjuntura portuguesa actual", o livro é uma "resposta" do autor a quem conduziu o país à presente situação.
Há uns anos este seu romance seria considerado pós-apocalíptico. Hoje, quando muito, é hiper-realista. Só esta transformação diz muito do estado a que chegámos enquanto país?
Mais do que pós-apocalíptico ou hiper-realista, tentei criar um romance seguindo os princípios da história virtual: alterando apenas alguns factores. Comecei a escrevê-lo há quase três anos, com uma enorme pausa pelo meio. Talvez isso explique a “transformação” de que fala. Para mim, foi um exercício quase matemático: como a manutenção de algumas variáveis e a alteração de outras podia gerar essa situação. Hoje fala-se no “segundo resgate”, no romance já vamos no quinto. Mas o que me importa mais é perguntar se de facto o conceito de país, assente no princípio de estado-nação, ainda faz sentido. E sobretudo, se serve aos cidadãos. Veja: a crise está a atacar as estruturas civilizacionais: cada um está preocupado consigo, e a União Europeia consigo própria. Mas quem estão a ser atacados são os Estados fracos e periféricos. Eles estão a servir-nos como representantes do bem comum, como “agregação” de cidadãos, como explicava Rousseau? Criámos o Estado e defendemo-lo durante gerações porque assegurava o bem comum e o progresso de cada um e de um todo. Será o caso hoje? Essa é a pergunta de biliões de euros.
Com a deterioração crescente das condições económicas sociais e políticas de Portugal, admite que o cenário de dissolução do país descrito no livro possa ter lugar muito antes de 2023?
Sou um escritor, não sou vidente (como parece que o são muitos comentadores políticos). Aliás, essa caricatura dos comentadores é uma das linhas de força da ironia que constrói o romance: nem terminam uma frase! Numa sociedade cultivada, os comentadores contribuem com o seu conhecimento e a sua análise para alargar a consciência da opinião pública; não para confundir e acirrar, para manipular segundo programas pessoais, como parece ser o caso em Portugal. É um espelho da falta de qualidade da nossa auto-reflexão. Todavia, o romance quer ser uma espécie de espelho negro: o que podemos fazer, o que podemos alterar, para que isto não seja possível? A uma crise que nos roubou o futuro e nos prendeu a um presente imediato de sobrevivência, estamos a responder a ela com as mesmas armas. A questão deve ser, parece-me: já não somos soberanos praticamente em nada; o estado-nação português, associação de todos os portugueses, está a ser destruído pelo financeirismo, “é um nome vazio que responde pela dívida”, como diz uma das personagens do livro. Não poderemos fazer voltar esta crise de identidade e soberania a nosso favor? Estive há anos num congresso no meio dos Estados Unidos, e muitas pessoas me diziam: «Ah, a União Europeia, um Parlamento, uma moeda comum; isto para nós é um milagre, como é que vocês venceram milénios de guerras e se uniram!». Não vemos isto. A Europa unida é uma potência poderosíssima, sobretudo porque o seu poder assenta num conjunto de valores civilizacionais e culturais. É isto que estão a tentar atacar, e é contra isto que creio, como criador europeu que sou, que deveremos criar uma solução. Que já não nasce dos políticos, mas que deve nascer, entre outros aspectos, da mais velha aliança da Europa: a do povo com a arte.
O projecto de “Despaís” nasceu, antes de mais, da sua insatisfação enquanto cidadão pelo rumo que o país tem seguido?
Como criador (e como cristão) pergunto-me todos os dias sobre o que posso fazer pelo meu tempo. Os criadores mantêm o enorme espaço entre a realidade e a ideia, entre o quotidiano e a memória, entre a ficção e o real. É nesse tremendo espaço que se transcende o presente limitado, e se constrói o futuro. Quero deixar claro que o objectivo deste romance não é uma provocação. Mas que se insere numa linha bem mais clara do meu programa de trabalho enquanto romancista. O que pretendo fazer com o romance, com este e os que se lhe seguirem, é questionar o significado de objectos civilizacionais que consideramos inquestionáveis: em 333, o que é um livro e as redes que estabelece, e como essas redes e esse poder simbólico se mantêm para além do desaparecimento do próprio livro. Em Despaís, com o próprio objecto que é um país assente no conceito de Estado-nação. Num próximo romance, o conceito de estadista, de cabeça e representante do Estado, como produto autofágico do próprio Estado.
Não teme ser acusado de catastrofista? Afinal, ao longo de quase um milhar de anos foram muitas as crises por que o país já passou, algumas das quais provocaram mesmo perdas de independência...
Portugal tem inscrito na sua história um movimento duplo, estaticidade e expansão: de resignação, de deixar andar, e outro de saída de crise. Portugal resolveu sempre isso concebendo a expansão como territorial, com uma dinâmica imperial. Não é o caso agora, essas estruturas acabaram, mas continuam fantasmaticamente activas. Trata-se de saber utilizar esta crise para recriar totalmente o país. Muito que se passa hoje é bem maior do que uma crise financeira da qual temos culpas muito limitadas: é uma crise de identidade nacional. Portugal não resolveu os seus complexos imperiais, tal como a Grécia, a Espanha e Itália: são estes países, no furacão da crise, que têm de repensar-se. Máquinas estatais pesadas, alimentadas por complexos de superioridade esmigalhados e que produzem fantasmas extremamente poderosos. Ainda mais fatalmente, no caso português, são os países de que foi potência colonial que agora compram o país. Todo o imperialismo é um boomerang – os Estados Unidos ainda não compreenderam isso, e não terão estrutura para viver essa situação quando lhes chegar. Grande parte da situação actual revela que Portugal não superou o seu complexo imperialista: ou arrumam-se oito séculos de conquista, na Península Ibérica e depois pelo Oceano fora, em trinta anos de uma revolução pacífica e cordata, nem marxista nem social-cristã? Ou nesta social-democracia sul-europeia, um fantasma assassino e híbrido, que não funcionou nem em Espanha, nem em Itália, muito menos em Portugal. O Estado, diz Engels, é um produto de uma sociedade num certo estádio de desenvolvimento. Gerámos esta III República nos escombros do Estado Novo e da Descolonização, com teorias vagas e improvisadas de Democracia e Desenvolvimento. Não trabalhámos o fim do império. Passámos do complexo de superioridade colonial que o Estado Novo aumentou, para um complexo de inferioridade europeu que alimentou uma sociedade sempre ansiosa de ter ilusões de riqueza para compensar os seus complexos. Eduardo Lourenço estudou-o n’ O Labirinto da Saudade. Agora estamos a vivê-lo. O país foi-nos devolvido na sua dimensão de condado portucalense ingerível, dependente de um poder maior – a União Europeia – e da vigilância de outras entidades. Somos um protectorado. Outro aspecto. Veja os grandes momentos da história da Europa: há sempre obras de arte que impulsionaram esta mudança. Espero que este livro possa ser um grão de areia na engrenagem.
O livro não possui um protagonista, pelo menos no sentido que habitualmente lhe conferimos, mas sim vários. Portugal acaba por ser, nesse sentido, o verdadeiro protagonista deste romance?
Portugal, sim, mas enquanto estado-nação. Repare que no romance, quando é proposto o referendo, este não assenta sobre o fim da “República Portuguesa”, ou sobre o sistema parlamentar, mas assim mesmo num sentido genérico: o fim de Portugal. Quis com isto ironizar com a distância que os Portugueses têm hoje do sistema político. De tal forma vivemos uma crise de representação, de tal forma disruptiva, que as fronteiras entre o país e o modelo de Estado que temos estão esbatidas. A personagem principal, por isso, é Portugal como Estado-nação, asfixiado por uma crise e também pelo seu excessivo sistema de mitos.
Há acusações bastante certeiras e severas à classe política. A provocação com que o livro vem rotulado advém também daí?
Impreparação, servilismo, incapacidade de servir a causa pública: foram estes os traços de identidade dos políticos que desenhei no romance. Qualquer semelhança com a realidade é uma wake-up call. Mas também pergunto: o que acontece a um cidadão que rouba outro? Que rouba um banco? É julgado e preso. O que acontece a um servidor do Estado que rouba o Estado, ou seja, o conjunto de todos os cidadãos? Vai para uma empresa pública repetir o feito. Qual é o crime pior? E a punição? Como veículos do poder do Estado, a pena deveria ser bem superior.
O exercício de encontrar equivalentes na política portuguesa actual dos personagens do livro faz sentido? Dito de outro modo: qualquer semelhança não é mera coincidência?
Um romance é uma obra de arte, como a Torre de Belém, uma canção de David Bowie, ou a Gioconda. Encontrar num quadro de Da Vinci ou nos Concertos Brandenburgueses de Bach os senhores Sidónio Pais ou Helmut Köhl fará sentido?
Das várias medidas de austeridade que têm vindo a ser adoptadas, quais as que, como cidadão, lhe pareceram mais chocantes?
Não posso responder a essa questão. Deve perguntar aos economistas, responsáveis pela verdadeira ciência oculta assente em previsões e modelos que falhou redondamente nas últimas dezenas de anos. Já reparou que neste momento vivemos num sistema económico financeirista onde não sabemos quais são os limites da ficção e da realidade? Onde acaba a economia real e onde começa a economia virtual? Pergunto-me também o que é a economia real: é a bolsa de valores, são os mercados informáticos, irreais, da dívida, ou o resultado do trabalho de um cidadão integrado num grupo? O que devemos fazer é retraçar o caminho que nos levou até aqui. Fomos escravizados com um modelo de crescimento falso, que levou a um consumismo que agora nos mata. As pessoas pensavam gerar a sua segurança, e agora é uma prisão, como acontece com o mercado imobiliário. Isso levou a um predomínio do ter pelo ser, do parecer pelo ser, que se liga de uma forma particularmente agressiva em Portugal pelo complexo imperial que está longe de ser resolvido. Porém, uma nota apenas: o ataque aos pensionistas é inqualificável. Repare: o Estado guardou uma parte do trabalho mensal dos trabalhadores durante anos, como guardião do bem comum. E agora retira esse valor para pagar os seus excessos. Diga-me se isto faz sentido. Quando, ainda para mais, são as reformas dos pensionistas que estão a segurar a economia: quantos pais pagam as rendas dos filhos, quantos avós as escolas dos netos? Quantas famílias almoçam e jantam à mesa dos avós?
Vive na Alemanha, país que, aos olhos da opinião pública, surge como um dos responsáveis pela aplicação da austeridade aos países do Sul. Impera a ideia entre os alemães de que estes povos são pouco trabalhadores e que a situação actual é consequência de excessos vários cometidos ao longo de muitos anos?
A Alemanha é uma realidade sócio-política complexa. O muro ainda impera de formas permanentes, duráveis e inimagináveis. Quero dizer com isto que não podemos fazer generalizações de um país sobre outro, porque não há uma voz única, e no caso alemão, isto é ainda mais uma dinâmica irresolvida. Temos a ideia de que a reunificação foi automática, quando é um processo lento; como temos a ideia de que Portugal viver apenas com o seu território europeu é uma coisa simples, quando viveu alastrado pelo oceano fora quase o triplo do tempo do que viveu apenas no seu território europeu. É certo que a Alemanha foi a responsável pela 2ª guerra mundial, com excessos inqualificáveis. Mas também é certo que fizemos pagar à Alemanha uma conta de dezenas de anos. O alemão comum é rigoroso no seu trabalho, nas suas contas, no respeito pelo próximo: numa economia de moeda comum, é demasiado pedir isso aos outros vizinhos? É igualmente importante separar povo e Estado. Nunca me senti, mas nunca, discriminado por ser Europeu do Sul. Em Berlim, todas as diferenças são operativas, constrói-se a partir delas. Acho, porém, bem mais relevante pensarmos que há outro tipo de diferenças culturais; que são factores que contribuem para esta crise, como a herança do catolicismo e do protestantismo, como concepções diferentes do que é o Estado. Uma União enfrenta estas diferenças.
Tudo o que temos vindo a assistir nos chamados países sob assistência financeira vem provar que não só a solidariedade entre os países da UE é uma miragem, como o próprio conceito de construção europeia não passa de uma utopia?
Pelo contrário: este é o momento para uma construção europeia alargada. Se a Comissão organizasse um grande referendo europeu a perguntar pelo reforço de poder das instituições europeias eleitas democraticamente, não duvide de uma esmagadora resposta positiva. Em Berlim, convivo com muitos expatriados: sou mais próximo de um alemão da antiga RDA do que de um americano; de um polaco do que de um brasileiro, de um finlandês do que de um mexicano. A maioria dos cidadãos europeus de 35-40 anos para baixo considera-se, sem problemas, mais “europeia” do que “alemã”, “francesa” ou “portuguesa”. Por outro lado, assistiremos a um cenário assustador nas próximas eleições europeias, em que os partidos contra a UE correm o risco de terem uma representação enorme no Parlamento Europeu. Mas, claramente, isto não é uma votação contra a UE, mas contra o que os nossos políticos entendem da UE, e dela fizeram. A haver uma revolução europeia, é pela integração, não pela desagregação.
Politicamente sempre foi muito activo ou os acontecimentos dos últimos anos fizeram despertar essa atenção?
Não sou politicamente activo. Intervenho como artista, com a consciência de que tenho de servir o meu tempo e os meus semelhantes com o meu trabalho.
Aos que dizem que não há alternativa à austeridade o que responde?
Uma história: o médico disse ao meu sobrinho de 13 anos que tinha de perder peso para poder crescer. Mas também não lhe disse para arrancar o estômago. Estamos a ser demasiado maniqueístas nesta crise: ou austeridade ou investimento. Não é essa a questão, mas sim: planificação. Estamos num mercado comum. O que é que Portugal pode fazer bem e que a Europa não tem? Veja como o Marquês de Pombal percebeu isso no século XVIII.
Em termos formais, “Despaís” é um romance substancialmente diferente do anterior, “333”. Era a especificidade deste livro em concreto que exigia o tom que acabou por adoptar (menos experimental e mais directo) ou é consequência de uma mudança natural enquanto autor?
Tenho, como já referi, um objectivo programático como romancista. Porém, quando crio cada livro, espero que seja o livro a determinar o tom que pretende. O livro deve ensinar-me como posso eu servi-lo melhor. Os livros não nos pertencem nunca: sou mais um maestro do que um compositor, a seguir a pauta de uma ideia complexa que surgiu da minha experiência e do tempo em que vivo. Lembro-me sempre do célebre maestro Leopold Stokowski (o único maestro que falou com o Mickey Mouse, em Fantasia de Walt Disney), que dizia que não dirigia a orquestra, mas a seguia. Posso porém confidenciar que este livro correspondeu a uma série de equilíbrios difíceis que tentei articular. A ironia é um meio, não é um fim em si. Isso aprendi com os experimentalistas portugueses, como Ana Hatherly e Alberto Pimenta.
Vários escritores, como Miguel Real têm defendido que os intelectuais estão alheios dos problemas sociais, “dormitando narcisisticamente na sua concha”. O seu livro é um contributo no sentido de provar que há quem esteja alerta?
Miguel Real tem produzido uma obra não apenas ensaística que é de uma importância fulcral para a consciencialização de algumas ideias que andam arredadas da produção artística nacional. Essa sua chamada de atenção, como outras, parece-me de uma pertinência fulgurante. Porém, como notou Pierre Bourdieu, a “ilha sagrada da arte” está em muitos aspectos refém da sociedade capitalista, de uma Economia que deixou de ser “uma coisa em si” para tornar-se “uma coisa por si”. A crise actual pede também uma reformulação do que é o conceito de artista, como o próprio Bourdieu estudou relativamente à mudança que nesse campo se operou do século XIX para o Modernismo. O que quero dizer é que, se termos como “arte realista” deixaram de fazer sentido, a missão social do escritor também. Estes últimos 40-50 anos foram de pura apropriação da arte pelo mercado, que se estendeu ao papel dos escritores. Chegou o momento em que os produtores artísticos produzam não só obras, mas uma nova identidade para o artista. Ainda não sei o quê nem como, mas é para mim certo que neste momento de descivilização, em que perdemos a cada dia séculos de conquistas pelo bem comum, o artista deve desmontar os próprios princípios da civilização. Mas tudo está ainda por inventar, e é essa a grande força da Europa: reinventar-se do nada depois de cada devastação.
Entrevista de Sérgio Almeida (Jornal de Notícias)
Os negros não entendiam o que lhes estava a acontecer. Ninguém os tinha avisado das conclusões da Conferência de Berlim e que a África fora dividida entre seis nações europeias. De repente, viram chegar soldados brancos com mulas, carroças e armas, que mandavam carregar cunhetes; de seguida, obrigaram-nos a abrir estradas e a cravar no chão linhas de caminho-de-ferro ao longo de infinitas distâncias, que atravessavam os seus reinos e, para seu espanto, também os dos seus inimigos. Vieram feiticeiros de barbas e cobertos da cabeça aos pés destruir os seus deuses e obrigarem-nos a adorar outros, ensinarem-lhe novas línguas. Exigiram-lhes trabalho, expulsaram-nos das terras, substituíram as pequenas vacas por outras gordas e enormes. Viram-se varridos e enxotados como as folhas do terreiro das aldeias quando chega o vento forte. Quiseram resistir e os brancos foram pacificá-los, isto é, obrigá-los, pela força de zarabatanas que disparavam relâmpagos mortíferos, a obedecerem a chefes desconhecidos.
As opiniões do capitão Vaz sobre a presença europeia em África podiam soar a sacrilégio na terra da sede do Seminário das Missões, onde eram preparados os jovens que iriam deixar crescer as barbas negras, vestir uma sotaina branca para a tripla missão de cristianizar, civilizar e aportuguesar os selvagens e donde regressariam para professores, depois de dezenas de anos nos trópicos, com as barbas brancas, para retomarem a sotaina negra metropolitana. Eram, no entanto, curiosamente, partilhadas pelo padre Nunes, o velho missionário reformado, que tinha vindo almoçar nesse dia e se deixara para a sesta, para a conversa e para o lanche. O capitão e o padre difundiam impressões sobre África como se atirassem respingos de água benta do hissope. A coerência interessava-lhes pouco. Estavam de acordo em que o melhor para todos seria cada um viver a sua vida. Se os europeus não queriam fazer em África aquilo que tinham feito na América: instalarem-se lá, reproduzirem-se e reduzirem os indígenas ao mínimo, deviam então evitar distribuir armas de fogo aos negros. Daí a nada estariam a virar-se contra quem os armou.
O caso é simples de narrar. Talvez tenhas adivinhado já do que se trata e a verdade é que posso resumi-lo em poucas palavras, embora não saiba bem como fazê-lo. Temo que possa chocar-te ouvir dizer aquilo que tu mesma pediste que te dissesse, mas a verdade é que há sempre muitas maneiras de contar uma história. Para mim tanto faz qual venha a ser a que eu escolher – isto não pode já magoar-me mais do que o pouco que aparentemente me feriu. O caso é que te quero poupar a ti do sofrimento que algo assim pode causar, mesmo que só o sintas tangencialmente, como uma bala que não passou demasiado próxima para te doer, mas suficientemente próxima para te ferir a pele e te tatuar a lembrança com a marca de uma cicatriz que tempo nenhum poderá apagar.
Entendes?
O caso é que temo o modo como reagirás ao que tenho para te dizer – que não é muito, é quase nada, é só o que eu sou segundo aquilo que tu queres que eu seja: não somente aquele que aqui vês, mas também aquele que fui antes e, enfim, aquele que supões que eu virei a ser por simples adição aritmética das duas partes que ficarás a conhecer. É isso, não é? É isso que queres saber. Pois é também isso que eu receio que tu venhas a rejeitar quando terminar de te contar a minha história, embora não haja já modo de voltar atrás e fazer de conta que não principiei a narrar cada um destes episódios. Agora sou eu quem quer que conheças tudo, para que não fique entre nós a sombra de uma dúvida, o muro de uma interrogação ou a barreira de uma desconfiança. Descansa que não vou obrigar-te a engoli-lo como a uma colher de óleo de fígado de bacalhau; hei-de pesar cada uma das palavras, como pepitas apanhadas à mão na margem de um ribeiro raso. Hei-de contar tudo não tal como sucedeu – porque isso não sei como foi -, mas de um modo tão claro e objectivo que, no final, não te restará mais do que acolher-me a cabeça no anteparo do teu peito.
Manuel Jorge Marmelo, O Amor é para os Parvos
Tudo morto, agora. Tudo desaparecido, quieto, silencioso. Casas esventradas, limos, arbustos, crescendo entre o granito da Rua Direita, a barbearia arrombada, a porta do Café Central batendo com o vento, a igreja transformada em ninho de pombos e ratos, o altar de talha dourada, oferecido por uns antepassados emigrados em New Bedford, levado, dizia o meu avô, por uns imigrantes da Roménia. A minha escola, construída segundo o modelo único do Estado Novo (tal como os modelos únicos para os palácios da justiça, os edifícios das câmaras ou dos correios, as pontes, os marcos da estrada e tudo o resto), agora reduzida a um paralelepípedo de pedra, de vidros partidos, sem portas nem janelas nem telhado. Assim se finara um regime político, um sonho ou demência, toneladas e toneladas de granito arrancadas às entranhas da terra para construir um país em tudo uniforme e ordenado, em tudo planeado e mandado, excepto na impensável premonição de que o povo fugiria das aldeias e dos campos, viria povoar os subúrbios das grandes cidades, encostado a um mar que não compreendia, fechado em torres de cimento com todos os outros desterrados de um Portugal vazado. Um Portugal de aldeias mortas, de comerciantes falidos, de agricultores sentados à berma das estradas construídas com os dinheiros da Europa, vendo passar os grandes camiões TIR que traziam de Espanha e dessa Europa as frutas e os legumes criados em estufas maiores do que quaisquer hortas deles, em direcção aos centros comerciais onde, em breve, eles próprios aprenderiam o novo e insípido sabor dos melões e das cebolas, dos reinventados “frangos do campo” ou dos porcos sem gordura nem pecado, embalados em vácuo. E onde se resignaram a passear aos domingos, com filhos e noras e netos, tentando não se perder no meio dessa turba deslizante, entre montras e restaurantes e néons, num dédalo baptizado com nomes de avenidas e ruas, nomes de países ou heróis da Pátria, como se assim os velhos cuja aldeia era agora um centro comercial dos subúrbios não dessem pela diferença ou até, dando por ela, a apreciassem. Ou tudo se tivesse tornado tão longínquo que já não fazia diferença.
Miguel Sousa Tavares, Madrugada Suja
E se os seus companheiros dos dias se coibiam de observações abstractas que pudessem despertar a ingenuidade das opiniões de Zoltan, também ele se abstinha de confessar a secreta, embora leve, simpatia que lhe causavam aqueles jovens capazes de rebentar o mundo por um ideal. Comparava-os com o seu próprio filho Cleonardo, de olhos sem chama, gestos sem propósito, vida sem alcance. E recordava os seus tempos de caixeiro, o entusiasmo com as notícias das barricadas de França, o zelo das reuniões secretas, defendidas por senhas e contra-senhas, as caminhadas à noite, rostos escondidos por estranhos chapéus de abas largas, rebuçados em capas de empréstimo, embalando os devaneios de um devir à medida de todos os caixeiros e artesãos do mundo. Aos seus companheiros de então, a vida ou os abatera, ou os traíra. A alguns, a intratável ceifeira já os tinha convidado para longe. Mas as sugestões de liberdade, igualdade e fraternidade haviam persistido no fundo das almas, como palhetas de ouro, ocultas por águas lamosas. A ideia da pena de morte era para Zoltan mais um lance sinistro do velho poder das trevas, sem cuja lembrança podia bem passar.
Mário de Carvalho, O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel
deus é uma cobiça que temos dentro de nós. é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante. deus é uma inveja pelo que imaginamos. como se não fosse suficiente tanto como se nos põe diante durante a vida. queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe nem vai existir. e também inventamos deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. é tão mais fácil gerir os vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. é tão mais fácil se esta ideia for vendida a cada pessoa com a agravante de se lhe dizer que, um dia, quando morrer, esse mesmo sinistro ser virá ao seu encontro para o punir ou premiar pelo comportamento que houver tido em todo o tempo que gastou. e a comunidade respira mais de alívio por saber que assim estamos todos policiados da melhor maneira, temos um polícia dentro de nós, um que sendo só nosso também é dos outros e, a cada passo, pode debitar-nos ou acusar-nos e terminar o nosso percurso com facilidade. eu sei que a humanidade inventa deus porque não acredita nos homens e é fácil entender porquê. os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros. e quanto mais assim for, quanto menos acreditarmos uns nos outros, mas solicitamos o policiamento, e se o policiamento divino entra em crise, porque as mentes se libertam e o jugo glutão da igreja já não funciona, é preciso que se solicite do estado esse policiamento. que medo o de voltarmos ao tempo de uma polícia para costumes e convicções. Que medo se voltamos a temer os vizinhos e os vizinhos nos puderem entregar por ideias contrárias. que medo se nos entra outro filho-da-puta no poder, a censurar tudo quanto se diga e a mandar que pensemos como pensa e que façamos como diz que faz. que medo de tudo se em tudo quanto os homens fazem vai a vontade torpe de ultrapassar o outro, poder mais do que o outro, convencer o outro de que fica bem no andar de baixo e depois subir, subir o mais sozinho possível, porque ganhar acompanhado não satisfaz ninguém. estamos a fazer tudo errado agora, sem valores, sem medo da igreja, sem um fascismo que nos regule o voluntarismo. estamos como que sozinhos da maneira errada. mais sozinhos do que nunca, a ver a coisa passar sem sabermos muito bem em quem confiar. e nisto, é verdade, pressupomos que todos são bons homens, mas a cabeça de alguns, senão a de todos, tem de estar a cozinhar muito do esquisito que para aí acontece e se sente. muito do esquisito que nos impede, mais e mais, de acreditar nos homens.
e a lei, essa coisa sensível que gosta de nós e se preocupa com o estarmos felizes e confortáveis, comove-me. põe-se à espreita dos gestos todos e salta-nos em cima com entusiasmo se lhe parece que nos arrogamos mais espaço do que o esperado, ou se simplesmente queremos tomar uma decisão sozinhos, tragando o que é nosso, sem ter de dar conta aos outros do que é nosso, do que toda a vida foi nosso e, agora, é sempre por percentagem do estado também. […]
Valter Hugo Mãe, a máquina de fazer espanhóis
[…]
«tudo começou em nós com Neruda», é o que pretende dizer, agora que a mão do homem se apossou por inteiro da sua e a enconchou sob a palma,
mas não diz,
só diz: «continuas o mesmo»,
num tom que tanto pode ser de ternura e de complacência como de moderada censura,
ela era a mulher de Neruda, doze anos atrás, ainda estudante do Magistério,
era a voz dele, de Álvaro Miguel, que a fazia desposá-lo,
«En la red de mi música estás presa, amor mío,
y mis redes de música son anchas como el cielo.
Mi alma nace a la orilla de tus ojos de luto.
En tus ojos de luto comienza el país del sueño»
«tinhas pássaros na voz», atreve-se, já com a mão esquerda a aninhar-se e a procurar poiso na mão direita do homem,
«não achas que é uma loucura?»,
«o quê?»,
«isto»; e desvia os olhos para as duas mãos entrelaçadas,
isto: um homem e uma mulher que já se não pertencem por inteiro, que de si apenas têm disponível a clandestinidade que o passado lhes outorga, irremediavelmente presos a um presente que não pode nem deve, «nem nenhum de nós quer», diz Maria Teresa Moura, «que seja mais do que é», ele em Breda, na Holanda, ela numa livraria de Estremoz, separados ambos por milhares de quilómetros,
«de solidão», poderia acrescentar,
e de (des)esquecimentos premeditados,
talvez ligados apenas pelos fios de névoa com que os mundos se atam e desatam,
«não, o melhor é não irmos por aí»,
«por aí?»,
por esse curto-circuito que se estabeleceu já entre as duas mãos coladas sobre o balcão, e foi sempre
«tu lembras-te?»
o primeiro acorde para o ajustamento, quer no interior do Renault quer fora dele, que depois se pediam,
que se pediam como agora, sem palavras,
«conta-me coisas de ti», outra vez pede,
de Breda, na Holanda,
e ele, inabilmente, diz que sentiu a sua falta, que uma e mil vezes esteve para regressar e que outras tantas lhe faltou a coragem para isso,
«depois apareceu a Maria Eugénia e as coisas compuseram-se»,
como apareceu Rafael Matos, em Évora, mas ela não o diz assim, e a sua vida se recompôs também,
decompôs, é o termo certo; ou não?,
«a vida é assim»,
«é»,
«dizia eu que…»,
«falavas da vida»,
«ah»,
crescemos, deixamos passar o tempo, perguntamos por certas coisas (emoções, queria ela dizer) de nós e dos outros, e elas já não estão ali, ou estão com outro rosto e já não as reconhecemos, ou ignoramo-las de propósito, desejamos considerá-las alheias, as coisas, as palavras, as comoções, os arrependimentos, tudo,
«tudo, até o desamor»,
ah, não bem o desamor, embora às vezes também o possa haver,
«não é o nosso caso, pois não?»,
«tonto, por que havíamos de sentir desamor?»,
raiva, muita, isso sim, e vontade de gritá-la, de nos cercarmos dela como se fosse uma parede que nos protegesse da intromissão dos outros,
«quando fugiste para Argel e depois para Amesterdão e depois para Haia e depois te fixaste em Breda…»,
«Teresa…»,
«senti isso, senti que me queria emparedar por detrás dum muro de raiva»,
«contra mim?»,
«contra ti, contra mim, contra os outros, todos, até mesmo contra as recordações que me chegavam…»,
«não penses agora»,
Álvaro Miguel segura-a pelo pulso, ergue-lhe a mão à altura do rosto, bebe-lhe a palma como o fez tantas vezes, doze anos antes, em todos os sacros e mágicos lugares da paixão, de Évora a Nossa Senhora do Divor, de Vila Viçosa ao Redondo, de Monsaraz a São Pedro do Corval, territórios de pronunciamentos, esses,
«não, ainda não, tonto, ainda não são horas para nada»,
e deixa que ele se incline para ela, sobre o balcão, e lhe rase tão de leve a face que Maria Teresa outra vez lhe reconheceu o cheiro, o olor da paixão, e lhe estendeu os lábios para melhor reconhecer esse eflúvio, ainda vago mas já acobertador, que irá depurar, para si mesma, nos instantes que se seguirem.
«Às sete horas tens-me aqui, queres?»
Hugo Santos, A Mulher de Neruda
Sozinhos com a sobrinha, porque Afonso só de longe a longe vinha do quartel, José Maria e a mulher viviam metidos em casa, indiferentes à passagem do tempo, amargurados como se jamais pudessem tornar a sentir-se felizes.
Alegres que tinham sido, as horas da comida eram agora soturnas. Ele deixara o hábito de lhes ler o jornal ao fim da ceia, e desde o começo da doença do filho ninguém voltara a mexer na guitarra, nem sequer para limpar a caixa que, abandonada a um canto e coberta de pó, parecia acentuar a mágoa que sobre eles pesava.
As lições que dava a Ernestina também tinham terminado, embora aí a culpa fosse da aluna, que preferia fazer renda, dizendo que já tinha aprendido o bastante e não se sentia com cabeça para estudos.
As noites passavam-nas sentados à mesa, silenciosos, ele absorvido no jornal ou nalgum livro, elas umas vezes com o crochet, outras no trabalho moroso de remendar a roupa.
Mas a época em viviam era de mudanças bruscas na sociedade e na política, e as inquietações não tardaram a chegar. Raro passava semana em que não houvesse revolta, os governos mudavam constantemente, os correligionários de hoje tornavam-se os inimigos de amanhã, por um nada se perdia o emprego ou se acabava na prisão.
José Maria deu-se conta de que, com as obrigações do seu cargo e família a proteger, naquele ambiente lhe seria difícil opor-se abertamente ao partido de Salazar, que cada dia arrebatava um pouco mais do poder, e no qual os generais e os ricos se tinham unido à Igreja. Mas homem justo e socialista convicto, não ia ficar de braços caídos enquanto os governantes e a secreta cada dia espezinhavam mais o povo.
Fez-se conspirador. Saía de noite à paisana, ou então disfarçado de pescador do mar, tão completamente que arranjara uma rede e bóias que carregava às costas. Doutras vezes da parte de doente e desaparecia durante dias, deixando a mulher e a sobrinha aflitas. Se alguém viesse perguntar por ele, dissessem que tinha ido para o hospital.
Quando regressava, sempre pelo escuro, assustavam-se ao vê-lo desembrulhar da rede caixas de munição, revólveres ou os panfletos vermelhos que misteriosamente apareciam depois espalhados pelas ruas, no mercado, no adro das igrejas. E como nenhuma delas tinha força para o dissuadir daqueles perigos, nem ele era pessoa de escutar súplicas, cada vez que se ia embora ajoelhavam-se ambas diante da cómoda, onde o bruxulear da lamparina parecia dar vida à imagem de Santo António.
Dos esforços e dos riscos só tirou o lucro de ter feito o que lhe mandava a consciência e o orgulho de ter permanecido fiel aos seus ideais.
Ficou-lhe também a cicatriz duma bala que o tinha apanhado de raspão num braço, e a lembrança da amargura do dia em que o comandante o intimou a que fosse ao seu gabinete. Que o tinha por homem de respeito e funcionário cumpridor, disse, por isso não compreendia que se tivesse metido com uma canalha que queria a desgraça do país. Felizmente, as forças que defendiam Deus, a Família, a Ordem e o Progresso tinham triunfado, e os opositores iam pagar caro a ousadia de terem desafiado quem defendia os mais preciosos valores da Pátria.
Graças à sua intervenção pessoal, ele, José Maria, desta vez escapava. Passava-se a esponja sobre as asneiras que tinha feito; mas aos concursos não precisava de ir, porque nunca mais seria promovido. A menos que, se estivesse disposto a cooperar…
José Maria respondeu-lhe que não estava no seu feitio ser canalha nem denunciante, o melhor era deixarem a conversa, porque assim se evitavam dissabores para ambos, nem teria ele de lhe pagar ali mesmo o insulto com um par de bofetadas.
O comandante corou e calou-se. Talvez menos por temor do que pelo respeito que lhe impunha o senhor José Maria desde o tempo em que um era o que ficara, simples chefe de posto, e o outro o guarda seu subordinado, que à força de traições tinha subido os graus da hierarquia com uma celeridade de foguete.
Alarmadas com o modo que lhe viram quando entrou em casa, pálido, a transpirar, as mãos num tremedouro, a mulher e a sobrinha recearam que lhe fosse dar outro ataque. Mas ele sossegou-as, não era nada, uma arrelia que tinha tido. Que lhe arranjassem um chá e despachassem a ceia, depois lhes contava o que se tinha passado entre ele e o Andrade. Lembravam-se dele? Um que tinha uma mulher ruiva e era agora comandante?
J. Rentes de Carvalho, Ernestina
Acordei com uma sensação de fome a apertar-me o estômago. […] Simultaneamente, reparei que estava num outro lugar qualquer […] uma cave escura, onde eu estava deitado dentro de um saco-cama. O que faço aqui, pensei, enquanto tentava identificar o lugar onde me encontrava. Sentia um coração a bater dentro da cabeça, depois verifiquei que era mais o eco de passos que se aproximavam. Percebi que era urgente ficar lúcido, erguer-me a pulso daquele torpor que me invadia o corpo e me toldava o raciocínio. Os cartazes nas paredes, do Che Guevara, do Poder Popular, do Palma Inácio, tiravam-me as últimas dúvidas: estava na cave da sede da Organização, e alguém chegava para me passar o turno de vigilância no telhado. […]
Reconheci a juba curta do Quim Comandos, adivinhei-lhe um sorriso arrumado ao canto da boca, enquanto me punha de pé. O Gato seguiu-me em silêncio pela escada de ferro em caracol que dava acesso ao parapeito do telhado. Fumámos o último cigarro antes de sair para o exterior, para fazer o turno das três às seis. Espreguiçámo-nos, verificámos as armas, um ritual necessário a quem vai passar três horas com os ossos a comer o frio da noite, sem poder conversar a não ser por sinais.
[…]
Lá em baixo passavam carros com lentidão. Atendendo à hora adiantada da madrugada, o volume de tráfego era excessivo. A Praça do Marquês era ponto de encontro de chulos, bimbos, proxenetas,passadores, dealers, prostitutas, travestis, bichas, que atraíam carros como enxames de moscas à volta da bosta. Vozes e gritos dispersos coados pelas árvores e pelas sombras da noite indiciavam as goelas da porta do dancing club onde, às vezes, de madrugada se partiam mesas, cadeiras, e algumas cabeças. E o nosso ofício, pendurados do telhado da Sede da Organização, era peneirar os sons, distinguir movimentos anormais dentro da anormalidade permanente da noite no Marquês. Identificar carros que rodeiam vezes de mais a praça, e que possam não ser apenas putanheiros. Vigiar as copas das árvores do jardim central, onde se podia plantar um atirador para visar a Sede. Controlar a manta de retalhos que se estendia pelo quarteirão, por onde poderia vir a salto algum intruso. Era um trabalho de tensão e de paciência, seguir movimentos suspeitos com a ponta do cano da G3, colocar na mira os carros que abrandavam a marcha ao rolar em frente ao nosso posto de observação. Distinguir entre curiosidade e ameaça era como um jogo, uma intuição. Estar pronto para entrar em acção naquele instante infinitesimal que separa a dúvida da certeza, entre balear curiosos e inocentes ou deixar abrir fogo um eventual inimigo. Eu sorria no escuro, apertando o ferro gelado da espingarda-metralhadora, sentindo o seu poder. Mais eficiente que mil palavras de ordem, com que o Grito do Povo enchia a Avenida dos Aliados. Eu também gostava de gritar até ficar rouco, gritar e marchar confortava-me a alma e as manifestações faziam-me arrepios na espinha. Tanta gente junta gritando pelo Socialismo, a Revolução, pelo Poder Popular, dava uma quase certeza de se poder transformar o Mundo ao amanhecer, entre coros de vozes e gente anónima de mãos dadas. As bandeiras vermelhas a esvoaçar provocavam-me arrepios na espinha, e eu entoava entredentes a Internacional, a Bandiera Rossa, sentindo força de gigante dentro do peito. Mas quando a manifestação chegava ao fim e a longa lagarta humana se dispersava em pequenos cachos de gente que já não gritava, apenas murmurava, ficava uma sensação de vazio, de impotência, de apreensão. De medo que, a coberto da noite, alguém subvertesse os sonhos por que se gritava de dia. De angústia, por não saber se ao acordar no dia seguinte não estaria tudo a ferro e fogo, destruído pelas sinistras forças do ELP, do MDLP, dos Ex-Pides, fachistóides e legionários, gente que se vestia com o veludo negro da noite para tentar subverter a Democracia. Eu continuava a sorrir no escuro, agarrado ao aço frio da canhota. Algures, pendurado no beiral, o Gato também devia estar a sorrir. Para nós, no cimo de um telhado e na ponta do cano de uma arma, não havia limites para o sonho. Como se as armas falassem mais alto que todos os gritos de Povo, a as balas fossem palavras de ordem muito mais certeiras e demolidoras.
O gorgolejar do vómito dos bêbados nas esquinas dissolvia-se em gritos de puta ao longe, no tossir dos carros, nos ecos de zaragata no dancing club. A lesma húmida da noite descia sobre as minhas costas, enquanto recordava as lições do Quim Comandos sobre técnica de soltar o corpo. O telhado recoberto de visgo não era o local ideal para treinar artes musculares, o perigo de queda não permitia grandes abstracções. O sono e o cansaço tornavam os olhos pesados, e era preciso fazer um esforço de concentração para permanecer com os sentidos alerta.
Um carro, igual a tantos outros, aproximou-se lentamente. Estacou, expondo os seus ocupantes. Na ponta das armas, reconheci os ombros largos e os cabelos do Mau Tempo, as farripas de palha do Bailarino, o vulto baixo e entroncado do Tono da Viela. Os três pareciam enquadrar um quarto personagem magro e alto, que parecia vir a contragosto, como se não agradecesse a escolta. Outro carro aproximou-se, e largou outro trio, onde apenas se destacavam os cabelos de prata do Velho. Os dois grupos encontraram-se no meio da rua, e demoraram-se em conferência. As palavras não chegavam ao cimo do telhado onde me encontrava, mas havia qualquer coisa que não estava bem com o homem alto. Pelo menos, parecia que estava a ser submetido a uma espécie de interrogatório. Depois, como se decidissem outra coisa, partiram novamente. Pelos gestos do grupo, quase podia apostar que o matulão era algum bufo que o Velho ia pôr a cantar. Quando lhe cheirava a esbirro da Pide, ele perdia a noção das proporções. Dizia que começava a ver tudo desfocado, vinham-lhe à memória os tempos da Solitária, da tortura da gota de água, da tortura do sono, dos mamilos queimados a pontas de cigarro, das sessões de porrada que apanhara nas caves da António Maria Cardoso. Nada que o tivesse feito denunciar a célula da ARA, quando pertencera ao Partido Comunista. Recordava o Forte de Peniche com lágrimas nos olhos. Chorara lágrimas de alegria quando Cunhal se evadira, e ele ficara a cumprir o resto da pena. Só chorara outra vez mais, contara ele. Quando dera o salto para a Polónia, com a ajuda do Partido, e em seis meses perdera a fé no Centralismo Democrático. Depois surgira-lhe atravessado na vida o Palma Inácio, o Camilo Mortágua, e renascera para o sonho e a aventura. Teria que haver algo, outra via, dizia ele. Qualquer coisa… Eu bebia as palavras que se lhe acendiam nos olhos, e sentia o mesmo arrepio da Internacional, da Bandiera Rossa, da Grândola, das cantigas do Zeca. Vezes sem conta me narrara o assalto ao Banco da Figueira da Foz, em que desempenhara o papel de mecânico da avioneta em que o Palma se escapulira para o estrangeiro, uma história difusa que ele recontava de muitos modos diferentes, o que me fazia desconfiar da sua veracidade. Mas o desejo de acreditar tornava sempre reais as suas palavras, por mais contraditórias que elas fossem.
Passei o resto do turno em sobressalto. Como se esperasse o regresso do Velho. Como se pudesse avisá-lo que mais tarde tinha um encontro marcado com a morte. Como se isso fosse possível.
Às seis horas da madrugada vieram substituir-nos. Uma aurora leitosa crescia nos telhados, e nos gritos de pássaros ensonados. Descemos, eu e o Gato, ainda em silêncio. De facto, não havia nada para dizer. Adormeci dentro do saco-cama, como se caísse num poço.
[…]
Quero regressar ao passado, a ver se ainda vou a tempo. Desta vez, não vamos falhar. Não sei se acerto na espira certa do tempo, estas coisas da hipnose não sei se acontecem à medida dos desejos. Ofélia, ajuda-me a regressar àquela noite do vinte e cinco de Novembro, onde estávamos todos reunidos numa cave. Tu não sabes, Ofélia, nunca poderás saber a força que nos unia, eu, o Gato, o Alegria, o Mau Tempo, o Quim Comandos, o Professor, a Adélia, o Cofres, o Tono da Viela, o Leonel, a Lisa, a Elsa, o Dílio Bailarino, o Hiroxima, o Vagamente, o Beto Doutor, o Poeta, espalhados em silêncio esperando pelas armas pesadas que vinham de Lisboa. Tu nunca poderás ter a noção de como foi dura a espera, como a nossa força se transformou em desespero, pela madrugada dentro, quando nos convencemos de que as armas não chegariam nunca.
- Concentra-te na minha voz, tu tens muito sono…
Sim, sinto uma vontade irresistível de adormecer, e acordar noutro tempo. Desta vez nada vai falhar, iremos a Maceda buscar os arsenais de reserva, não ficaremos eternamente à espera. Cortaremos a Ponte da Arrábida e o Viaduto de Santo Ovídio na noite de vinte e quatro para vinte e cinco, abriremos caminho à bala e à granada, morreremos se preciso for, para que a noite não acabe. Para não voltarmos a acordar de manhã com os sonhos todos desfeitos. Revolução ou morte, será o nosso grito. Talvez ainda haja tempo para fazer com que não tenha acontecido o que aconteceu. Talvez possamos salvar a Revolução, repito vezes sem conta, enquanto escorrego na voz de Ofélia direito ao passado com a certeza de ter uma missão a cumprir. Como se caísse num poço sem fundo, sem certeza de regresso.
Desta vez, não vai falhar.
Miguel Miranda, O Estranho Caso do Cadáver Sorridente (Prémio Caminho de Literatura Policial, 1997)
[Ponta Delgada, 18 de Abril de 1842-Ponta Delgada, 11 de Setembro de 1891]
Você sabe quanto é triste viver em Lisboa e não estar vivo – sem as paisagens, sem uma única árvore em frente dos olhos, tão longe do mar e do céu dos Açores? É-se medíocre assim, toda a vida entre prédios altíssimos que nos proíbem de ver e amar a distância. Em Lisboa, o infinito, ao contrário daqui, não é plano nem horizontal: a única possibilidade é torná-lo perpendicular, na vertical daquele céu luminoso e quase sempre azul. Muitas vezes, imaginei que devia vender o apartamento de Lisboa, vender agora a casa dos meus pais e ir realizar lá longe a loucura infinita, onde houvesse campo, duas árvores e qualquer mar em frente. Gostava de aprender de novo os segredos da terra: plantar canas em redor dum muro, escorar pequenos troncos com estacas e ver como cresciam as árvores da minha vida. Se possível, uma figueira. Sabe porquê? Quando era pequeno, existiram sempre essas árvores de folhas ásperas para me abrigarem da chuva. Os figos vertiam leite e rebentavam-me os lábios, quando a gula dos figos proibidos era superior às bostelas da tinha no couro cabeludo. Isso era viver o sentido do tempo. Podia também suspirar por uma criptoméria: árvore porosa e altiva, das que sempre fizeram os dias de festa e o esplendor das bandas de música na Ilha. Vinham procissões de andores, com anjos coroados, multidões de opas vermelhas, o grande pálio dourado sob que se abrigavam padres translúcidos e solenes: era sempre domingo quando isso acontecia, todos estavam vivos e não era preciso sofrer a solidão dos meus futuros domingos de Lisboa.
A casa tem os espaços e os passos perdidos de toda a minha vida. A de Lisboa, ao contrário desta, é um corredor com paisagenzinhas dependuradas das janelas, passos suaves nas alcatifas das salas, o santuário tristonho dum quarto de casal. A minha angústia foi-se povoando aos poucos dos ruídos das portas batidas pelo vento. Disse-o o poeta Ruy Belo, que morreu disso, isto é, só de fazer versos: no meu país não acontece nada; à terra vai-se pela estrada em frente… Para mim, no entanto, nunca houve sequer uma estrada que desse para a Ilha, porque Lisboa cortou-me toda a possibilidade dessa retirada. Fechei-me por dentro da cidade magnífica e mortuária, de tal sorte que nunca soube os nomes daqueles que nasceram depois de mim. Não conheci os rostos nem o tempo dos rostos. E, como o pior do homem é a ausência dessas e de todas as outras memórias sobre os lugares, não sei quem sou aqui, o que faço agora nos Açores – ou por que razão vou herdar a sombra duma casa. Dizem-me, os que aqui viveram, que eu serei talvez o primeiro e único morto da família que ainda não morreu…
João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas
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