- É bonito, o céu?
- Sim, o céu é bonito.
- Mais bonito do que a terra?
Não respondi logo. Pensei um momento:
- Há coisas que só começo a compreender agora. Por exemplo, que o céu é mais bonito havendo o mar e havendo terra. Que uma terra sem céu também não seria bonita.
Aimée interveio, curiosa:
- Estão a falar de quê, nessa vossa língua misteriosa?!
Debatíamos, expliquei-lhe, a beleza do céu e da terra. O que pensava ela? Aimée lembrou o que repetiam os velhos. Na terra, diziam eles, não havia paredes. Contudo, ali, naquela floresta, tudo eram paredes. Caminhando entre as árvores imensas, que mal deixavam passar a luz do sol; sobre o chão húmido e poroso, coberto de folhas, ela sentia-se, como o profeta Jonas, a ser engolida por uma baleia.
- Ui, que imagem terrível! Não pareces muito entusiasmada…
Ao contrário, protestou Aimée. A terra, ao menos ali, não se assemelhava ao que imaginara. Era muito mais bonita, de uma forma insólita, imprevisível e não domesticável:
- E se estamos a falar de beleza, acho que esta é a verdadeira beleza. A verdadeira beleza não se deixa subjugar.
- Como o céu?
- Sim. Como o céu.
Colocámos as mochilas às costas e mergulhamos de novo no denso arvoredo (no ventre da baleia). Caminhámos mais três horas. Então, de repente, a floresta abriu-se, como se abre um livro, e vimos, diante de nós, as duas grandes pedras de que Luan nos falara. Escutei, pela primeira vez, o som macio da água correndo entre a folhagem – sim, era um rio!
Até então eu vira a água em muitas outras formas. Vira-a desenhando nuvens. Vira-a cair do céu, em rajadas bruscas, e, por vezes, transformada em duras pedras de gelo. Vira-a, lá muito em baixo, brilhando entre as nuvens. Contudo, nunca a vira assim, uma corrente escura, saltando sobre o verde e sobre as rochas.
Nesse momento alguém gritou o meu nome. Era o meu pai. Estava ocupado a desenhar alguma coisa, com uma comprida vara, na areia do terreiro. Diante dele encontrava-se um homem minúsculo que logo adivinhei ser Jerónimo. Havia ainda três outros sujeitos e duas mulheres. Júlio largou a vara e correu para mim de braços abertos:
- Carlos! Sabia que virias…
- Pai, devias ter-me acompanhado.
- Lamento. Na altura não acreditei na história da Ilha Verde. Pensei que te faria bem a experiência, por isso te deixei partir…
- Fez-me bem.
Abraçámo-nos. Mais tarde mostrou-me a aldeia. As pessoas que ali vivem vieram de diferentes pontos do Brasil. Há vários estrangeiros, entre os quais uma dúzia de filhos do céu. Alguns chegaram ali por acaso. Outros, após muito procurarem, depois de também eles terem escutado a lenda da Ilha Verde. Não é um mundo perfeito. Em todos os paraísos há serpentes. Ou, como diz o meu pai, cada homem é o seu próprio paraíso e o seu próprio inferno.
Não encontrámos na ilha nenhum familiar, ainda que remoto. Jerónimo afirma lembrar-se do velho Lucas, meu bisavô, pajé dos Tucanos. A família mudou-se para São Paulo anos antes do Dilúvio.
Na República da Neblina – é assim que os respectivos habitantes chamam à ilha – encontrei, como no céu, pessoas infectadas pela inveja, pelo ciúme, pelo rancor, e por tantas outras doenças que, desde sempre, afligem a humanidade. Contudo, encontrei também corações generosos e uma vontade colectiva de corrigir os erros do passado.
Sibongile e Mang ficaram lá. Jerónimo reconheceu Mang assim que o viu:
- Este chegou aqui há muitos anos, em péssimo estado. Devolvemo-lo ao céu. Uma vez que voltou, pode ficar. Gosto de pessoas teimosas.
Termino de escrever este relato, sentado a uma mesa, na varanda do meu pequeno apartamento, no Paris. Tenciono entregá-lo, amanhã, ao governo da cidade. Escrevi-o a pedido de Jerónimo e dos habitantes da República da Neblina.
Conscientes de que não poderão continuar a esconder-se, os cidadãos da República da Neblina requerem a protecção das grandes nações, de forma a preservar o pouco que subsiste das grandes florestas. Aceitam receber grupos restritos de visitantes, na condição de que estes respeitem as leis do território e não perturbem a frágil ecologia da ilha.
Aimée, sentada diante de mim, estuda velhos mapas da terra. Há pouco mostrou-me o Aconcágua, o ponto mais elevado das Américas, de todo o hemisfério sul e o mais alto fora da Ásia. Aconcágua, em língua aimara, significa algo como “sentinela branca”. Aimée quer procurar o Aconcágua.
Por que não?
O melhor da viagem é o sonho.
José Eduardo Agualusa, A Vida no Céu
* Outros BLOGUES onde estou...
* MEMÓRIAS
* RECANTOS
* BLOGUES COM "EDUCAÇÃO"
* Ecos
* Movimento dos Professores Revoltados
* Movimento Mobilização e Unidade dos Professores
* Não calarei a minha voz... até que o teclado se rompa
* Paideia:reflectir sobre Educação
* Sem Rede
* IMPRENSA
* Expresso
* Público
* Visão
* OUTROS BLOGUES
* Murcon
* SÍTIOS
* Arquivo Maria de Lourdes Pintasilgo
* G.A.I.A.
* O melhor da viagem é o so...