… ontem Lício, suicidou-se um vizinho meu, que eu mal conhecia. E foi o bastante: o meu Natal abortou ontem. Sabes, via-o todos os dias: era um velhote muito direito… Todo branco, baixinho, mas muito direito. Só tinha isso de particular: aquele aprumo, aos sessenta e tal anos. Não sei ao certo quantos…
- E por que é que ele se matou?
- Aí é que está a graça da história. Suicidou-se, com um raticida, imagina, porque a reforma não chegava. Não lhe chegava para viver. As reformas não chegam, Lício. Pensa bem: um homem velho, só, já incapaz de trabalhar e em frente dele apenas uma perspectiva… a miséria. Um, não: muitos. Muitos velhos. Mas este sempre tinha andado direito; não se resignou: matou-se.
- É por causa destas coisas, Lício – continuou Manuel João, momentos depois -, que às vezes, no meio das nossas conversas sobre livros, sobre cinema ou pintura, eu dou comigo a pensar que somos todos, mesmo nós, uns “parlapatões”. Enquanto estas misérias subsistirem, até a inteligência é um pecado!
- Sim, meu velho, mas que podemos nós?...
- Nada. E tudo, talvez. Não sei, Lício. Às vezes, a atenção bastaria… E nós passamos distraídos, pelo meio da desgraça, embriagados com palavras. Eu via todas as manhãs aquele velho. Mas não reparava nele: sonhava com a Liberdade – levou a mão, pesarosa, ao bolso, do lado do coração, onde levava a carteira e nela o papel pelo qual se batera antes, no café. – E a liberdade, a liberdade para nós, a ressurreição dos nossos direitos, adiantaria alguma coisa ao meu vizinho… falecido?
- Talvez…
- Pois é: talvez. Mas eu gostava de ter a certeza. A certeza de que não havemos de esquecer os velhos sem esperança, nem os catraios com fome, nem estes cegos que tocam pelas ruas, nem os que morrem sem um queixume, quando formos nós a fazer congressos e filmes, e exposições… Porque restaurar a verdade não basta. É preciso modificar a verdade. E mesmo a ciência, mesmo a beleza me parecem frívolas, vãs, se…
- Mas a ciência é um caminho, Manuel, a beleza também, de outro modo…
- Mas a miséria…
- Não podes acabar com ela de um da para o outro.
- Eu sei. E também sei que mesmo a extinção da miséria material não torna os homens felizes. Mas estou certo de que as subtilezas do pensamento, as euforias do amor, a dignidade da arte livre, tudo o que tu e eu e outros como nós podem desejar e têm razão para desejar, nada disso, Lício, está ainda ao alcance dos deserdados, no género daquele, vês, que ali vai, carregado como um jumento, com tábuas à cabeça, nesta tarde de festa…, e como os que nem se mostram, metidos nas suas tocas. Por isso, Lício, o que dá um sentido à minha vida, que de outro modo o não teria, porque eu não sou de grandes préstimos nem de formidáveis talentos, é apenas isto: a luta contra a miséria. É esse o meu único crime… E, apesar disso, às vezes (sem retórica, meu velho), chego a pensar que tenho efectivamente uma culpa a pesar-me na consciência: a solidão. Porque a minha independência, a minha ciosa independência, cria em volta de mim a solidão. E essa solidão não será, na verdade, um crime?
- Porquê?
- Porque um homem só não se ilude: sabe que nada consegue. Mas, Lício, onde é que está a boa-fé? Eu falo, falo, eu bem falo, mas não abdico, não posso… Não poderia sujeitar-me à mentira, a outra mentira ao contrário desta, nem à violência, ainda que convergissem para o mesmo fim que eu ambiciono, para o bem comum, para a redenção que eu desejo… Nem a liberdade, apesar de tudo, não, não é para mim uma palavra vã! Quando é que encontraremos, lado a lado, a eficiência e a dignidade, o futuro e o presente, limpos e lisos, à espera do nosso abraço ou do nosso sangue? Porque então…
- Mas, se calhar – disse Lício, já lá não chegaremos, a menos que tudo se precipite no mundo, durante estes quinze anos. E quinze anos, para mim, é muito: não consigo conceber-me velho. A ideia da velhice aflige-me mais que a da morte. Com a morte ainda tenho uma intimidade…
- Sim, sim… E até lá?...
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