A tropa do duque da Terceira desembarcara em Cacela, entre o estuário do Guadiana e Tavira, a 24 de Junho, após três dias de viagem sem novidade ao longo da costa. A esquadra miguelista era um mistério bem guardado dentro da barra do Tejo.
Após quase um ano metido numa cidade cercada, Filipe de Villepin tinha a sensação de estar redescobrindo o vasto mundo naquela partícula a que chamava pátria, muito mais ideia que rincão, mais fantasia que realidade. Ao passar em frente dos recortes do litoral, dava ao que via os nomes que ouvira antes e deslumbrava-se por descobri-los – a Figueira, alvo e longínquo casario arrimado à foz do Mondego; Peniche e os alcantis fragorosos do cabo Carvoeiro, com o círculo alaranjado do Sol avermelhando o céu e o mar com o seu lento mergulho, para lá das Berlengas, e as sombras em que, depois da Roca, ecoava mais forte o marulhar da vaga larga no costado do vapor; e, ao dobrar a massa imponente e mais negra que a noite do promontório e do cabo de S. Vicente, as silhuetas dos frades do Hospício do Cabo recortadas na fogueira que tinham acendido para celebrarem a véspera de S. João; e Lagos branquíssima na antemanhã; e Faro, e Tavira, e a boca prateada da baía de Cacela. Nem os tiros soltos de algumas baterias de costa, que os não puderam atingir, o distraíram da contemplação maravilhada duma aura de espuma e areia pontuada por coroas de rochedos e cortada por arribas que anunciavam o ocre da terra. E era o palpitar do coração dessa terra que ele sondava, com a esperança renovada no verdadeiro regresso povoado pelas promessas forjadas no exílio e nos grandes sofrimentos do Porto. Os navios de guerra, a Rainha de Portugal, a D. Pedro, a D. Maria, o Portuense, o Vila Flor e a Faro, toda a frota liberal, formados em linha diante dos vapores, dispararam uma salva contra a única peça postada em Cancela, pondo os artilheiros em fuga. Sem mais, desembarcaram.
Depois duma noite de bivaque ao relento, escaramuçaram junto à ribeira de Almargem com tropas do visconde de Molelos, que pareceram bisonhas e tímidas, e entraram em Tavira deserta. Filipe recordou Penafiel, nos primeiros dias da campanha. Viria outra vez a mostrar-se o fantasma duma pátria afinal madrasta, em que o povo que queriam livre se sumia sob a tutela do mais forte e dos santos da sua devoção, para salvar a pele e a fazenda? O general duque espalhou proclamações e, como pardais assustados à cata duns bagos de milho, foram aparecendo pela tarde os habitantes de Tavira. Desculparam-se dizendo que os tinham convencido que estavam sendo assaltados por uma quadrilha de bandidos dispostos a pilhá-los. Já gritavam vivas à Carta e à rainha, que aqueceram quando chegou de Vila Real uma deputação para cumprimentar o duque e informá-lo da aclamação de D. Maria na sua terra que os milicianos miguelistas tinham desertado. Filipe queria crer que o povo levantava finalmente a cabeça, porque isso lhe honrava as ideias e a memória de Raimundo e dos camaradas mortos. Mas ouvia-os dizer “haja quem mande”. E, no fundo, verificava o que Tomás d’Aquino, sem paixão, dizia: “O povo? Nem bom nem mau. O povo é católico e bronco.” E Nuno, o diletante, lutava sem ilusões, para mostrar que não precisava de ser delegado da vontade geral que não existia. Não o tinham visto, o povo, trancar as portas e arrotear as leiras, à passagem dos exércitos, sem querer saber de Pedro ou Miguel, desbarretando-se quando convinha ou virando as costas, se podia? Quantos tinham sido eles nas trois glorieuses? Um punhado de idealistas, a reboque a canalha e na cauda os políticos a colarem os cacos do Poder. Quantos tinham sido eles? A explosão popular parecera ser imensa, mas a maioria também ficara à espera atrás das portas fechadas, a olhar pelos tarecos e pelas economias escondidas debaixo dos sobrados. E mesmo se tivesse sido Paris inteiro, o que fazia o resto da França? No Porto, só fora diferente porque a vida não valia nada e o desespero e o medo eram de todos por igual – todo o instinto de sobrevivência parecia um acto de heroísmo. E, agora, em Tavira muitos vivas e foguetes. Pela liberdade ou pelos mais fortes? O povo aclamava-os quando ganhavam e fazia o mesmo aos inimigos: e também era capaz de lágrimas sinceras e inúteis pelos vencidos. Filipe olhava os grupos de camponeses levantando ao ar os chapéus pretos e os pescadores desbarretados saudando o senhor general e o Estado-Maior, como muito provavelmente haviam feito aos governadores de D. Miguel, e os dedos das duas mãos chegavam para contar os que se ofereciam para pegar em armas contra o tirano. Olhava-os e pensava que só os legitimava, a ele e a alguns companheiros, a convicção de que faziam avançar o mundo para a luz e os homens para a dignidade. Não podiam era esperar o mesmo sucesso de Deus, que não precisava de dar a conhecer-se. Nem sequer viviam um equívoco, porque andavam descobrindo incessantemente a realidade duma luta implacável e desigual – a do futuro que não podia demonstrar-se contra o presente monolítico, fatal, brutal e fanático, que invocava um passado imóvel e a cólera de Deus.
Avançaram até Faro, sem encontrarem resistência. Estiveram dois dias a recompor-se; a cólera morbus fazia o mais das baixas, como nas terras por onde passavam – só num mosteiro, onde lhes deram os melhores figos do mundo, restavam da confraria o frade guardião e o donato. Morreu o major David e quatro soldados de Infantaria 6. O calor sufocava e nem a vista do mar sereno e das copas verdes das alfarrobeiras e das amendoeiras, nos outeiros ondulados para o interior, os aliviavam da canícula de que buscavam refúgio na sombra das paredes caiadas do Paço Episcopal onde se instalara o duque da Terceira. Aí viu Filipe pela primeira vez aquele homem que entrava no limiar da lenda – o almirante Charles Napier. Era atarracado, cara larga, patilhas tufadas, nariz comprido de cana alteada, olhar vivo e firme. Estava conversando num razoável português com o major Loureiro, quartel-mestre general, e com os capitães marquês de Fronteira e Manuel da Câmara, ambos do Estado-Maior. Os seus modos eram rudes e directos, mas transmitiam uma confiança e uma segurança quase magnética, porque era grande o contraste com as hesitações e demorados debates dos comandos portugueses. Fumava vorazmente um havano e talhava, com um gesto de mão em cutelo, um rumo, que não se perdesse tempo, só a audácia poderia demonstrar que o inimigo era um fantasma protegido pela própria sombra. Eram só dois mil? Não importava, que a vitória seria de quem tivesse a decisão que faltava a todos. E Filipe, observando-o, pensava que o inglês, excêntrico e romântico, estava percebendo muito bem que pátria era aquela que ele perseguia com uma nostalgia antiga e se lhe escapava quando julgava possuí-la – como uma conquista sempre inacabada.
Álvaro Guerra, A Guerra Civil
[Dom Quixote, 1993]
* Outros BLOGUES onde estou...
* MEMÓRIAS
* RECANTOS
* BLOGUES COM "EDUCAÇÃO"
* Ecos
* Movimento dos Professores Revoltados
* Movimento Mobilização e Unidade dos Professores
* Não calarei a minha voz... até que o teclado se rompa
* Paideia:reflectir sobre Educação
* Sem Rede
* IMPRENSA
* Expresso
* Público
* Visão
* OUTROS BLOGUES
* Murcon
* SÍTIOS
* Arquivo Maria de Lourdes Pintasilgo
* G.A.I.A.
* ANTERO – ONTEM, HOJE E AM...
* POMPEIA: A vida petrifica...
* JOSÉ CARDOSO PIRES: UM ES...
* PELA VIA FRANCÍGENA, NO T...
* CHILE: O mundo dos índios...
* NUNCA MAIS LHE CHAMEM DRÁ...
* ARTUR SEMEDO: Actor, galã...
* COMO SE PÔDE DERRUBAR O I...
* CRISE TRAZ CUNHALISMO DE ...
* O CÓDIGO SECRETO DA CAPEL...
* O VOO MELANCÓLICO DO MELR...
* Explicação do "Impeachmen...
* OS PALACETES TORNAM-SE ÚT...
* Tudo o que queria era um ...
* 1974 - DIVÓRCIO JÁ! Exigi...
* Continuará a Terra a gira...
* SETEMBRO
* Por entre os pingos da ch...
* Não há vacina para a memó...
* Um pobre e precioso segre...