Eis um fait-divers. Seguramente nada banal. Mesmo incrível, mas autêntico. Aconteceu no mês de Novembro de 1980 em Casablanca. A história de Slimane constitui um paradoxo.
Naquela noite, ao frio e na confusão, várias pessoas esperavam um táxi. Ela também esperava. Confiante, com as mãos juntas sobre o ventre. Não se empurra uma mulher grávida. Respeitamo-la e ajudamo-la. Acabara de chegar, mas o próximo táxi seria para ela.
Slimane é um homem calmo. Detesta a violência e evita a confusão. Uma vez quase fora linchado por uma multidão impaciente e encolerizada. O seu “pequeno táxi”[i], um Simca 1000 de cor vermelha, ficara todo amolgado depois da zaragata. Desde então tornara-se desconfiado. Já não parava nas praças, preferindo apanhar clientes ao acaso.
Nessa noite, de regresso a casa, passou sem parar na praça. Vislumbrou a mulher grávida, efectuou então marcha-atrás e parou precisamente ao seu lado. Ninguém ousou protestar. A mulher era ainda jovem. Aparentemente, não era desta cidade. Tinha um ar algo perdido. Slimane perguntou-lhe se “o feliz acontecimento” era “para breve”.
- Para o mês que vem -, respondeu-lhe ela. – De qualquer modo não tenha receio, não vou dar à luz no seu carro!
Ele sorriu sem dizer mais nada. Uma vez chegados a Derb Ghellef, junto ao número 24 A, parou e desceu para lhe abrir a porta. A jovem pediu-lhe para esperar um pouco, o tempo de ir buscar o dinheiro da corrida à casa da irmã. Slimane esperou fumando um cigarro. Cinco minutos depois, a jovem regressou banhada em lágrimas:
- Oh meu Deus! O que será de mim? Não há ninguém em casa da minha irmã; deve ter ido de viagem, nem os vizinhos cá estão… Como é que lhe hei-de pagar, e para onde irei com o meu filho, oh meu Deus!... Sou como uma estrangeira… Não conheço aqui ninguém…
Slimane ficara perturbado. Queria lá saber do preço da viagem. Não podia deixar esta pobre mulher sozinha, em semelhante estado de desespero.
- Minha senhora, não a vou abandonar nessa situação. Nós, muçulmanos, devemos ajudar-nos uns aos outros. Esta noite, convido-a a ficar em minha casa enquanto espera o regresso da sua irmã. A minha mulher ficará encantada e até as três crianças ficarão contentes… por termos visitas. A nossa casa é pequena, mas há sempre lugar para as pessoas de bem…
- Não, meu caro senhor, é muito bondoso da sua parte. Não quero incomodar de maneira nenhuma, e além do mais a sua esposa podia não compreender…
- A minha mulher é maravilhosa. Deu-me três belas crianças, uma menina e dois rapazes, e muita felicidade… A minha mulher é muito boa.
Slimane voltou a insistir. A jovem aceitou. Em casa correu tudo muito bem. As crianças estavam excitadas. Emprestaram-lhe o seu quarto. A esposa de Slimane era muito simpática e deu inúmeros conselhos à futura mamã. Ambas pensaram em nomes para o bebé e tagarelaram pela noite dentro.
Slimane estava manifestamente orgulhoso da sua boa acção e da sua esposa. Ergueu-se de manhã cedo. A mulher grávida já estava levantada. Repousada, descontraída, estava à-vontade, como se fizesse parte da família. Slimane deu-lhe os bons dias e ofereceu-se para a levar à casa da irmã. Ela parecia não ter compreendido bem o que ele lhe estava a dizer. Então este repetiu a sua oferta:
- Se quiser, posso deixá-la em casa da sua irmã. Ela talvez esteja preocupada…
- Em casa da minha irmã? Mas que irmã? Não tenho irmã, sabes bem disso… E depois estás a esquecer-te que é aqui a minha casa e que esta criança que trago no ventre é tua!...
Slimane deu um grito de estupefacção e chamou a esposa.
- Nós somos demasiado bons! Sempre te disse! Demasiado bons! É inacreditável. Esta mulherzinha quer enganar-nos. Diz que está em sua casa e que eu sou o pai da criança… É doida… De qualquer modo, eu não discuto com ela. Tenho confiança na justiça do meu país. Vou chamar a polícia.
A esposa encorajou-o a fazê-lo. A convidada ria às gargalhadas e já tratava a esposa de Slimane como uma criada: - Traz-me o pequeno-almoço. Chega aqui, vou fazer-te umas confidências. Slimane, o homem discreto e pacato, o homem que não falha uma oração, esse homem é um grande sedutor! Estás a ver esta pulseira de ouro, é um presente do mês passado, e este colar de coral, foi no dia em que aceitei entregar-me a ele… É curioso, temos os mesmos lenços de pôr na cabeça! Que indelicadeza da sua parte!...
- Cala-te! Não quero falar contigo.
O caso adquiriu rapidamente proporções graves e foi levado a tribunal. Antes de analisar o problema em pormenor, o juiz decidiu constituir um ficheiro clínico para cada um dos queixosos. Foram feitas análises: às urinas, ao sangue e também ao esperma de Slimane. Não iriam provar nada de especial. Era apenas uma formalidade. O que se descobriu iria, no entanto, abalar esta história. Os médicos eram categóricos: Slimane não podia ser o pai da criança que estava para nascer. Ele era estéril e sempre o tinha sido.
Este golpe teatral fustigou Slimane. Começou a beber. Passou a viver e a dormir no seu táxi. A esposa fez greve de fome e revelou ao juiz o nome do pai das crianças. Era o senhorio da casa onde moravam. Ela procurou explicar, a quem a quis ouvir, que nunca enganara o marido e que fora por amor a este que lhe tinham feito as crianças. Segundo as suas palavras: “Um homem nunca é estéril. A culpa é sempre da mulher!”
Tahar Ben Jelloun (هر بن جلون), O Primeiro Amor é Sempre o Último
[i] Em Marrocos existe o denominado “petit taxi”, veículo pequeno de diferentes marcas que circula no interior das localidades. Para efectuar a ligação entre povoações, o utente utiliza o “grand taxi” de marca Mercedes e cor creme.
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