Terça-feira, 20 de Novembro de 2012

Instruções para salvar o mundo

 

- De onde és?

O rapaz titubeou por instantes.

- De Marrocos.

- Ah, bem, de Marrocos… - repetiu Matias mecanicamente.

O jovem ergueu a cabeça num gesto quase imperceptível de rancoroso orgulho.

- Lá não acontecem coisas destas.

- Que coisas? […]

- Lá, os assassinos não matam velhotes. E não vivem sós, os velhos. Os velhos muito importantes no meu país. E a família. Mas aqui… Julgam que sabem tudo e não sabem nada.

 

********************************

 

Rashid tinha visto o cumprimento que Matias lhe fizera ao passar por ele de carro, mas tinha preferido não retribuir. Não se fiava no taxista. Tinha-se portado bem aquando da pneumonia, mas fê-lo com certeza tentando tirar algum proveito, porque os infiéis só se moviam por interesse e o seu único deus era o dinheiro. Eram tipos maus e carentes de valores, e por isso o seu comportamento era incompreensível. Por exemplo, o homem que ia agora com Matias, parecia ser o mesmo que, dois dias antes, vira amarrado, amordaçado e pedindo ajuda. Ainda bem que Rashid não lhe deu importância, porque agora ele e o taxista pareciam muito amigos. Além disso, reparara que o taxista tinha a cara partida, como se tivesse lutado. O que confirmava que era um homem violento. O que se podia esperar de alguém que, de repente e sem vir a propósito, o atacara como um energúmeno? Com certeza que o fizera por motivos racistas. Os acidentais eram todos assim, racistas, agressivos, predadores e imperialistas. Pervertidos capazes de prostituir as suas mulheres e as suas filhas. Tiranos e assassinos do povo árabe.

Rashid, que era um rapaz culto e tinha estudado Engenharia Electrónica na Universidade de Rabat, sentiu que se lhe formava um nó de emoção na garganta. Sempre que pensava na dor e na opressão do povo árabe, comovia-se profundamente. Era um duelo épico, pedras contra mísseis, fé contra avareza, os soldados da luz contra o exército da escuridão. Ele tinha demorado a compreendê-lo, porque os seus pais, embora bons crentes, eram pessoas simples e antiquadas. Bondosas de mais, pacíficas de mais, contemporizadoras de mais com o inimigo. Os seus pais tinham uma loja de electrodomésticos e viviam bem. Ele, filho único, tinha crescido num ambiente de abundância, ignorando a humilhação, a miséria e a opressão de tantos muçulmanos. Tivera-os diante dos olhos, na rua, na própria porta de casa, os pobres, os mendigos. Mas olhava para eles sem os ver, com a cegueira egoísta da rotina, sem saber o que significavam, sem compreender que eram as primeiras vítimas da longa guerra encoberta que estavam a travar. Felizmente, no ano anterior, Rashid tivera a sorte de encontrar Omar e Ahmed, um pouco mais velhos do que ele, e, graças a eles, tinha descoberto o sentido da existência. O seu pai não compreendeu. E aborreceu-se. Proibiu-o de continuar a ver esses amigos. “Um bom muçulmano honra o seu pai e obedece-lhe!”, dizia-lhe. Mas Rashid não podia obedecer, porque havia verdades mais importantes e mais urgentes que a submissão devida aos mais velhos.

Quando estava a chegar à paragem que ficava em frente da farmácia viu que tinha acabado de perder um autocarro. Deixou-o ir porque hoje não estava em condições de correr, mas mortificou-o ter confundido o horário e pôs-se a examinar as rotas e as horas, que estavam dentro de uma caixinha envidraçada. Por mais que examinasse a folha, não conseguia perceber que autocarro era esse que acabara de sair. O que queria apanhar devia chegar dentro de nove minutos. Talvez fosse um autocarro de reforço; ou talvez o anterior se tivesse atrasado muito. Enfim, era igual, decidiu. Também isso estava marcado pelo destino. Enquanto esperava, sentiu a carícia do sol na pele. Estava uma manhã muito bonita que cheirava a Primavera. O seu autocarro apareceu na esquina, avançou com o peso de um boi cansado e parou junto dele com um arfar hidráulico. Rashid entrou, picou o seu passe e sentou-se ao lado de um velho, pousando a mochila no chão, entre os pés. Hoje não pesava nada, porque levava apenas um livro. Observou a rua através da janela, os pequenos jardins, as frescas e sumarentas sombras matinais, o brilho do sol. Pareceu-lhe voltar a sentir no rosto um beijo de luz tíbia e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Sabia que a mãe ficaria louca de dor, que o pai se horrorizaria e envergonharia. Comprimiu as pálpebras, trémulo, e durante cinco minutos mergulhou na vertigem dos seus pensamentos. Os outros passageiros do autocarro deviam pensar que o jovem estava a dormir e os mais observadores, vendo a rigidez da sua postura e a película de suor que lhe humedecia a testa, talvez tenham deduzido que estava enjoado. No entanto, a mente de Rashid estava entregue a uma actividade frenética e o interior da cabeça do rapaz fervilhava de cantos e de rezas, de choros e de gritos. Até que uma luz ofuscante se acendeu no seu cérebro e calcinou todas as palavras, todas as razões e todos os pensamentos. Esse foi o momento em que Rashid abriu de novo os olhos, já sem ver, e, metendo a mão por baixo da camisola, accionou o detonador do seu cinto explosivo.

Felizmente, alguma coisa falhou nas ligações e só explodiu uma das seis cargas que trazia coladas às costelas. De modo que, em vez de provocar uma carnificina entre as vinte e seis pessoas que ocupavam nesse momento o autocarro, houve apenas três vítimas mortais e uma mão-cheia de feridos, todos ligeiros. Os mortos foram o próprio Rashid, o velho que estava ao seu lado e um homem que estava de pé junto deles e cuja identidade nunca pôde ser esclarecida. Como a partir daquele atentado, o assassino da felicidade desapareceu misteriosamente e não voltou a liquidar nenhum velhote, a polícia acabou por aventurar a possibilidade de a vítima não identificada do autocarro ser o criminoso, que ainda por cima coincidia quanto à idade, ao sexo e à fotografia robot que algumas testemunhas lhe atribuíam. Hipótese que, a ser verdadeira, demonstraria uma vez mais que o destino é perverso e caprichoso e que às vezes os males trazem qualquer coisa de positivo, da mesma forma que o bem pode vir prenhe de desgraças.

 

Rosa Montero, Instruções para Salvar o Mundo

 

 

 

 

publicado por Elisabete às 11:36
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