Tudo morto, agora. Tudo desaparecido, quieto, silencioso. Casas esventradas, limos, arbustos, crescendo entre o granito da Rua Direita, a barbearia arrombada, a porta do Café Central batendo com o vento, a igreja transformada em ninho de pombos e ratos, o altar de talha dourada, oferecido por uns antepassados emigrados em New Bedford, levado, dizia o meu avô, por uns imigrantes da Roménia. A minha escola, construída segundo o modelo único do Estado Novo (tal como os modelos únicos para os palácios da justiça, os edifícios das câmaras ou dos correios, as pontes, os marcos da estrada e tudo o resto), agora reduzida a um paralelepípedo de pedra, de vidros partidos, sem portas nem janelas nem telhado. Assim se finara um regime político, um sonho ou demência, toneladas e toneladas de granito arrancadas às entranhas da terra para construir um país em tudo uniforme e ordenado, em tudo planeado e mandado, excepto na impensável premonição de que o povo fugiria das aldeias e dos campos, viria povoar os subúrbios das grandes cidades, encostado a um mar que não compreendia, fechado em torres de cimento com todos os outros desterrados de um Portugal vazado. Um Portugal de aldeias mortas, de comerciantes falidos, de agricultores sentados à berma das estradas construídas com os dinheiros da Europa, vendo passar os grandes camiões TIR que traziam de Espanha e dessa Europa as frutas e os legumes criados em estufas maiores do que quaisquer hortas deles, em direcção aos centros comerciais onde, em breve, eles próprios aprenderiam o novo e insípido sabor dos melões e das cebolas, dos reinventados “frangos do campo” ou dos porcos sem gordura nem pecado, embalados em vácuo. E onde se resignaram a passear aos domingos, com filhos e noras e netos, tentando não se perder no meio dessa turba deslizante, entre montras e restaurantes e néons, num dédalo baptizado com nomes de avenidas e ruas, nomes de países ou heróis da Pátria, como se assim os velhos cuja aldeia era agora um centro comercial dos subúrbios não dessem pela diferença ou até, dando por ela, a apreciassem. Ou tudo se tivesse tornado tão longínquo que já não fazia diferença.
Miguel Sousa Tavares, Madrugada Suja
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