Domingo, 31 de Maio de 2009
Há palavras que fazem bater mais depressa o coração
-todas as palavras- umas mais do que outras, qualquer mais do que todas.
Conforme os lugares e as posições das palavras.
Segundo o lado de onde se ouvem - do lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol.
Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro
Sexta-feira, 29 de Maio de 2009
Edvard Munch - O Grito
Sumariamente, pode-se dizer o seguinte: a dupla vertente da governação Sócrates que evocámos atrás – por um lado, o centralismo autoritário, regulador, fazendo intervir o Estado nos mais ínfimos mecanismos da vida social; por outro, a vontade de “emagrecer o Estado”, de reduzir o seu peso na sociedade civil, “modernizando” o seu funcionamento, leva a que os efeitos das reformas, e em particular a do sistema educativo, possam ser, na substância, puramente superficiais, não produzindo mudanças de fundo, e, na forma, imperativos pesadíssimos, tarefas insuportáveis e inexequíveis. Porquê? Porque – e refiro-me aqui ao Estatuto da Carreira Docente, ao Estatuto do Aluno e à avaliação dos professores – a vertente autoritária e super-reguladora do Estado exerce-se fundamentalmente e quase exclusivamente na forma, na burocracia, nas centenas de documentos, formulários, regulamentações que os professores devem estudar, preencher, horários extraordinários que devem cumprir, etc., sem que os conteúdos do ensino, a substância da relação de aprendizagem professor-aluno seja tratada. Quem examine em pormenor toda esta extraordinária burocracia, que já é pós-kafkiana, a que estão submetidos os professores fica com a ideia de que uma espécie de delírio atravessa quotidianamente os conceptores e decisores do MNE. É verdade que o governo recuou depois das manifestações e greves dos professores. Mas não esqueçamos que toda aquela burocracia que caiu sobre os professores, sufocando-os, impedindo-os de ensinar, foi pensada para ser aplicada – o que revela mesmo um certo delírio na concepção das tecnologias de biopoder. O processo de domesticação dos professores está em curso – e longe de ter terminado. Mas o que se passou chegou para ver que tipo de “modernização" da educação, através da avaliação, está nos espíritos dos governantes, mesmo se estes, pela resistência dos professores, que contaminou a opinião pública, foram levados a ceder em certos aspectos.
Porquê tudo isto? Porque o interesse do Governo é, antes de mais, cumprir a racionalidade orçamental, levando dezenas de milhares de professores a abandonar a escola. Através, afinal, de um sistema educativo em que avaliar significa desnortear, desanimar, dominar, humilhar, desprezar os professores, os alunos e a educação. É o máximo de mais-valia de biopoder que o Governo quer extrair – com o risco, inevitável, de o sistema se voltar contra si mesmo.
Durante o período de confronto mais agudo entre professores e o Ministério da Educação, o Governo reagiu segundo uma estratégia que lhe é própria: às manifestações de massa (100 000 e 140 000 pessoas na rua), às greves de professores (mais de 90% de participação), respondeu com o silêncio e a inacção. Justificando-os com esta frase: “Estamos em democracia, toda a gente tem o direito de se manifestar. Que se manifestem à vontade. Mas nós temos também o direito de continuar a fazer o que fazemos.” Ou seja, quanto a nós, continuaremos a enviar-lhes directivas, portarias, regulamentos a cumprir sob pena de… (ser punido segundo a lei). Fugindo à contenda, tornando-se ausente, o poder torna a realidade ausente e pendura o adversário num limbo irreal. Deixando intactos os meios da contestação mas fazendo desaparecer o seu alvo, desinscreve-os do real. É uma técnica de não-inscrição. Ao separar os meios do alvo, faz-se do protesto uma brincadeira de crianças, uma não-acção, uma acção não-performativa. Esta reduz-se a um puro discurso contestatário, esvaziado do conteúdo real a que reenviava (é o avesso, no plano da acção, do enunciado de Austin: um acto que é um discurso). Resultado: o professor volta à escola, encontra a mesma realidade, mas sofre um embate muito maior. É essa a força da realidade. É essa a realidade única. E é preciso ser realista. Assim começa a interiorização da obediência (e, um dia, do amor à servidão, como notou La Boétie).
No processo de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento e de fabricação de subjectividades obedientes. Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz “a desactivação da acção”. É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos psicóticos.
José Gil, Em Busca da Identidade – o desnorte
Sábado, 23 de Maio de 2009
Pelas 18h 30m, do próximo dia 28 de Maio de 2009, será lançado no Porto, na Cooperativa Árvore, o Volume I do livro de Camilo Mortágua "Andanças para a Liberdade", editado pela Esfera do Caos |
Andanças para a Liberdade
[…]
A planificação e preparação do assalto ao Santa Maria foi feita neste clima de exacerbação e desconfiança entre afectos à Junta Patriótica Portuguesa e ao “Grupo Galvão”, grupo este que só viria a ter outra designação após o acordo com os espanhóis para a constituição do DRIL,[i] feito pelo Galvão na qualidade de Secretário-geral do Movimento Nacional Independente. Esta representação deixava-nos (aos membros deste grupo) algumas interrogações, já que, segundo informações que circulavam abertamente em Caracas, o general Delgado continuaria, ao mesmo tempo, a manter ligações com a Junta Patriótica.
Aqui chegados, um esclarecimento se impõe:
Ao começar a “andar” com as ditas e tantas vezes auto-proclamadas “altas individualidades políticas”, a apreciação destas “andanças” deve ter em consideração que aquilo que vos conto não pretende ser a narrativa de “uma qualquer verdade histórica” destes tempos e acontecimentos. Longe disso. Não pretendo transmitir-vos resultados de pesquisas realizadas ou de sistemática e ponderada análise às inter-relações do conjunto dos factos narrados. Não sou historiador. Tenho-me a mim mesmo como um razoável contador de histórias vividas.
O que vos conto é aquilo que a minha memória reteve da forma como compreendi, vi e senti os acontecimentos narrados e que nela permaneceram sem alterações. Sempre que não resista a um outro comentário, como é óbvio, ele é feito à luz de uma visão retrospectiva, ou por razões que o desenrolar dos acontecimentos posteriores assim aconselhe. São resenhas da interpretação actual do vivido-recordado, e nada mais. Mas é, ao mesmo tempo, a afirmação de que a nenhum outro protagonista, nem sequer a Henrique Galvão, companheiro de algumas das próximas “andanças”, reconheço o direito de reivindicar o privilégio a uma qualquer verdade incontestável.
Partilho da convicção de que só o cruzamento sistemático de diferentes testemunhos nos pode aproximar da melhor compreensão global das particularidades de cada caso.
[…]
Lamento não dispor de meios e oportunidade para relembrar as muitas centenas de anónimos “dadores de sangue” à causa da luta pela LIBERDADE encontrados ao longo destas “andanças”.
A História contemporânea de Portugal e dos portugueses, vai-se fazendo… também com os contributos daqueles que, com ou sem razão, julgam ter dela feito parte.
Que essa História não venha, mais uma vez, a ser apenas configurada obedecendo ao critério da relativa “altura” mitificada das individualidades mencionadas, ou por desejos de promoção pessoal ou de auto-elogio familiar, e não pela excepcionalidade e exemplaridade da entrega de tempos de vida e vidas, a causas comuns, é um dos motivos do relato destas “andanças”, de discretas mas exemplares individualidades de que mais ninguém provavelmente falará.
Por último, desejo sublinhar que, como qualquer outro, estou consciente de padecer, e ainda bem, das subjectividades inerentes à condição humana, susceptíveis de influenciar, num ou noutro sentido, as apreciações e descrições destas “andanças”.
O que daqui para a frente for dito, repito, não deve ser tomado como pretensão a julgar as/os combatentes com quem me fui cruzando, tão só e apenas, dar e pedir testemunhos de diferentes visões dos acontecimentos relatados, coisa que não foi possível obter na quantidade e diversidade desejadas para este primeiro volume das “andanças”, mas que espero conseguir para o próximo. Pela minha parte, a idade adquirida e o que ainda espero da vida, incitam-me a tudo dizer sem a pretensão de julgar, mas, sem medo, até, de errar! Sem os medos cuja ausência permite afastar de mim o “cálice paralisante” da incerteza no futuro. Quanto ao resto, caberá ao tempo e aos investigadores da História, atribuir-lhes a sua utilidade.
Camilo Mortágua, Andanças para a Liberdade (Vol. I)
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[i] Directório Revolucionário Ibérico de Libertação
Camilo Mortágua
Entre os inimigos de Salazar que lutaram de armas na mão contra o Estado Novo destacam-se dois homens: Camilo Mortágua e Hermínio da Palma Inácio ― os últimos revolucionários românticos. A eles se devem os golpes mais espectaculares que abalaram a ditadura. Mas a história da acção directa contra o regime há-de reservar a Camilo Mortágua um capítulo muito especial: participou na Operação Dulcineia, em Janeiro de 1961, comandada pelo capitão Henrique Galvão e inspirada pelo general Humberto Delgado ― o desvio do paquete português «Santa Maria», que seria o primeiro acto de pirataria dos tempos modernos. Mais tarde, com Palma Inácio e outros companheiros, fundaria a LUAR.
Nos últimos anos tem trabalhado na concepção e implementação de programas e projectos de desenvolvimento local, assim como na mobilização de pessoas e grupos socialmente desprotegidos e na animação e organização de comunidades em risco de exclusão.
Presidente da DELOS Constellation, Association International pour le Developpement Local Soutenable (1994-2002). Presidente da APURE, Associação para as Universidades Rurais Europeias. Grande Oficial da Ordem da Liberdade da República Portuguesa.
Segunda-feira, 18 de Maio de 2009
Pode sair, Senhora Ministra. Obrigado pela sua colaboração!
Até quando vão os Professores consentir que esta senhora os insulte e trate como adolescentes iletrados ou atrasados mentais?
Está tudo anestesiado? É urgente fazê-la cair do pedestal a que subiu. Acreditem que tem pés de barro.
Sábado, 16 de Maio de 2009
Árvores do Alentejo
Horas mortas? Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido? e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!
E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro e giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!
Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!
Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
pedindo a Deus a minha gota de água.
Florbela Espanca
Quinta-feira, 14 de Maio de 2009
Cada árvore é um ser para ser em nós
Cada árvore é um ser para ser em nós
Para ver uma árvore não basta vê-la
a árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdida
e encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas
e de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a da árvore
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses
António Ramos Rosa
Quarta-feira, 13 de Maio de 2009
Casa no Campo
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais
Eu quero carneiros e cabras pastando solenes
No meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
E meu filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros
E nada mais
Composição: Zé Rodrix e Tavito
Interpretação: Elis Regina
Segunda-feira, 11 de Maio de 2009
VII
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos
Quarta-feira, 6 de Maio de 2009
Abílio Manuel de Guerra Junqueiro nasceu em Freixo de Espada à Cintaa 17 de Setembro de 1850, filho do negociante e lavrador abastado José António Junqueiro e de sua mulher D. Ana Guerra. A mãe faleceu quando Guerra Junqueiro contava apenas 3 anos de idade. Estudou os preparatórios em Bragança, matriculando-se em 1866 no curso de Teologia da Universidade de Coimbra. Compreendendo que não tinha vocação para a vida religiosa, dois anos depois transferiu-se para o curso de Direito. Terminou o curso em 1873.
Foi o poeta mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada “Escola Nova”. Poeta panfletário, a sua poesia ajudou criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República.
Regresso ao Lar
Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...
Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...
Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...
Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...
Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!
Guerra Junqueiro, in Os Simples