Vila do Conde, 20 de Janeiro de 1887
Meu caro Amigo:
Acabo de ler o seu livro[i] e, desde a primeira à última página, sempre com interesse e gosto. Há em todas elas pensamento e esse pensamento é conexo: há, além disso, uma maneira pessoal de ver as coisas e de se exprimir: vê-se finalmente que o autor não quis brilhar, mas simplesmente dizer alguma coisa que merecia ser dita. Por tudo isto não deve estar descontente com o seu livro e pode estar certo de que está muito longe de ser uma publicação inútil – compreendo entretanto essa espécie de dúvida e desgosto, que a sua carta acusa, mas não o aprovo. Convém mirar sempre à perfeição, mas nunca afligirmo-nos porque não a alcançámos, desde que trabalhámos com ânimo limpo de vaidade e que fizemos como melhor soubemos e pudemos. Nesta impaciência e desconsolação, que eu desaprovo, quando não entra inconscientemente um certo orgulho, entra uma certa inquietação parente dos “escrúpulos”, que são uma verdadeira doença moral. Não podemos exigir de nós mesmos mais do que é justo exigir-se da natureza humana: isto é, não devemos em coisa alguma exigir a perfeição, mas contentarmo-nos com a bondade e rectidão das intenções. Banir a vaidade das nossas obras, isso é que está inteiramente na nossa mão; torná-las perfeita, não. Mas a obra concebida e executada sem vaidade tem já por isso mesmo uma espécie de perfeição. E a quem trabalha assim, muitos outros dons lhe serão dados sem que os procure.
Depois, deixe-me dizer-lhe uma coisa: e é que não está tudo em sermos caridosos com os outros: é necessário sê-lo também com nós mesmos. Deitar aos lombos do pobre jumento carga maior do que aquela com que ele pode, implica mais dum pecado: ou soberba, ou desarrazoada impaciência ou, pelo menos, o desconhecimento da harmonia e ponderação natural das coisas. A justiça perfeita para com os outros chama-se caridade; a justiça perfeita para com nós mesmos chama-se humildade. Aquele homem incomparável e maravilhoso que foi S. Francisco de Assis, quando, novo ainda, se achou quebrado, extenuado e quase cego, em virtude das muitas penitências e jejuns, reconheceu que tinha errado e disse esta frase notável: Reconheço que pequei muito contra meu pobre irmão corpo.
Do seu do coração
Antero de Q.
[i] Estudo sobre a Literatura Contemporânea, Porto, 1886
Passeio dos Prodígios
Vamos lá contar as armas
tu e eu, de braço dado,
nesta estrada meio deserta
não sabemos quanto tempo as tréguas vão durar…
Há vitórias e derrotas
apontadas em silêncio
no diário imaginário
onde empilhamos as razões para lutar!
Repreendo os meus fantasmas
ao virar de cada esquina
por espantarem a inocência
quantas vezes te odiei com medo de te amar…
Vejo o fundo da garrafa
acendo mais outro cigarro
tudo serve de cinzeiro
quando os deuses brincam é para magoar!
Vamos enganar o tempo
saltar para o primeiro comboio
que arrancar da mais próxima estação!
Para quê fazer projectos
quando sai tudo ao contrário?
Pode ser que, por milagre,
troquemos as voltas aos deuses.
Entre o caos e o conflito
a vontade e a desordem
não podemos ver ao longe
e corremos sempre o risco de ir longe demais.
Somos meros transeuntes
no passeio dos prodígios
somos só sobreviventes
com carimbos falsos nas credenciais.
Vamos enganar o tempo…
Jorge Palma
1. Casa onde nasceu
2. Casa da Madrinha Libânia, onde morreu e instalou o Museu
A triste experiência da vida do colégio não fizera senão revigorar o seu amor por aquela casa onde nascera, onde vivera uma infância um pouco estranha mas sedutora, e onde, afinal, se reconhecia feliz sempre que podia sê-lo. Assim se pusera a perscrutá-la, a saboreá-la, a querer-lhe em todos os seus recantos pitorescos, estudando-a como se estuda um livro nunca esgotado. Nem Lelito precisava sair fora para correr praças, avenidas, ruas, becos, retiros, escadarias. Tinha-os ali, dentro daquela sua casa, como os teria na cidade do Porto; - embora em ponto pequeno. No quintal, que era um prolongamento, achava jardins e bosques, hortas e frescos recessos, uma escapada para a imensidade do céu, miradoiros sobre os horizontes longínquos… Assim, mais do que nunca, se lhe tornara aquela casa um mundo: o seu verdadeiro mundo. Como quem vai, a certa hora, sentar-se num certo banco de certo jardim público, ia, pelo entardecer, sentar-se com um livro na sala de jantar, a uma das janelas quase rentes ao quintal. Às vezes, madrinha Libânia estava no canapé. Mas a sua presença contemplativa, a que se habituara durante a doença, não lhe era senão um aconchego a mais. Na cozinha, quase em frente, só separada da sala de jantar pelo corredor, Piedade atarefava-se. Lelito gostava de entrever o seu amplo vulto e a sua face carinhosa, como ela gostava de saber que o menino estava ali perto. Francisca descia a escada em caracol, vinha pôr a mesa. Francisca estivera seis anos em casa do senhor barão da Ponte d’Este. De lá trouxera o seu ar de criada de casa nobre (com que não podia a ti Pinheiro!) e aquela cerimoniosa discrição que a fazia pôr a mesa sem um tilintar de louça, ou um rumor de passos, para não perturbar o menino que lia. (Lia? mas na verdade lia?...) Quem não fazia cerimónias era o canário, no corredor. Lelito distraía-se acompanhando sem querer as modulações estridentes que ele ensaiava, gulosamente espiado pelo Trovador…; - o qual herdara tal nome dum Trovador antecedente, como o herdara este de todos os anteriores gatos da casa. Quando as estridências do canário o impacientavam, Lelito ia sacudir-lhe a gaiola; ou então, assustava-o com pancadas dum trapo no arame. E ninguém poderia saber como todas estas coisas minúsculas, estes pormenores que a outrem ou pareceriam ridículos ou simplesmente passariam despercebidos, - ajudavam Lelito a curar-se: a lutar contra as forças daquele mundo tenebroso e álgido que ainda, a espaços, o atraía… Com estes pequenos nadas tentava fazer – e realmente fazia – amarras bastantes fortes para o prenderem à esperança; para o amarrarem à vida e ao prazer da vida. E até, às vezes, se esforçava por voltar a formas de sentir, de sonhar, de esperar, que tinham sido características da sua infância. Ah, poder tornar a viver – ao menos por um momento – com a inocência e a frescura de outros tempos, antes de recomeçar a vida lá de fora! reconquistar o antigo e feliz desapego, que lhe permitia só se apegar naturalmente ao que lhe agradava! E assim, às vezes, vinha mais cedo, há hora em que Piedade ainda fazia renda rezando o terço com madrinha Libânia, e ao lado de ambas se punha a folhear, como outrora, as velhas revistas conservadas na gaveta da papeleira. Quando, por uma espécie de cansaço daquele envelhecimento a que já chegara, (sobretudo por experiência de si mesmo) independentemente dos seus esforços voluntários reatingia, de facto, um estado de frescura infantil nos sentimentos e impressões, - um estado de graça – tais horas eram para ele cheias de encanto. E sem mesmo o procurar exprimir sequer perante si próprio, através de tudo isto sentia Lelito fazer-se presente – melhor: fazer-se eterno – todo o passado da família, ou pulsar realmente vivo o coraçãodaqueles muros...
Porque não bastava que viesse sentar-se à janela da sala de jantar, como quem vai sentar-se num banco predilecto dum jardim público; não bastava que entre certos escaninhos da casa, que buscava nas horas de particular devaneio, e as partes mais agitadas pela lida quotidiana, visse a mesma diferença que há entre certos recantos duma cidade e os seus centros mais movimentados; não bastava que passeasse nos corredores, entrasse nos quartos, subisse ou descesse escadas trocando umas palavras com quem topasse, como quem sai a divagar pelos cafés e ruas, dando uns dedos de palestra aos amigos; não bastava que hesitasse, às vezes, entre o instalar-se numa ou noutra parte, (por exemplo: na sala de jantar ou a uma das janelinhas do sótão; no seu quarto ou na varanda da buganvília; na saleta contígua ao quarto de madrinha Libânia ou na sua pedra por trás das canas-da-índia) como quem hesita entre os sítios mais afastados, convidativos todos mas por atractivos diversos; não bastava, em suma, que fosse a casa para ele uma cidade inteira… mais que uma cidade, um mundo!: Era preciso que a sua imaginação a tivesse identificado com um ser vivo. Pois não lhe sentia ele bater o coração? não aprendera a penetrar nas encantadoras delicadezas do seu espírito? Se ninguém mais o sabia, - sabia ele que a sua casa tinha alma e nervos. Reconhecia-lhe os dias de melancolia, as horas de festa, os vaivéns do humor… Destas coisas, porém, não podia falar senão consigo próprio; ou, às vezes, nos seus papéis, - o que vinha a dar no mesmo. Eram coisas que faziam parte do seu segredo. E quem lhas compreenderia? Qualquer observador superficial não deixaria de atribuir à disposição dos móveis, ou a qualquer outro motivo meramente externo, o aspecto característico dum aposento: assim como à vida e costumes dos moradores toda a vida da moradia. Ora a verdade é que, nestas questões subtis, já todos apareciam a Lelito como suspeitos de superficialidade. A verdade nua e crua era, até, que a imensa maioria dos homens (incluindo os reputados de inteligentes) lhe apareciam réus da mais charra incompreensão perante o quer que se lhes ofereça de verdadeiramente subtil… Mas, visto ser ainda muito limitado o seu conhecimento experimental dos homens, fundava-se tal juízo mais na intuição do que na experiência. O que lhe mostrava a experiência é que ninguém, senão ele, sabia na casa como ela tinha personalidade própria; como dessa personalidade compartilhavam todos os aposentos, tendo, embora, cada um o seu papel funcional; e como não só a personalidade da casa era insubmissa às coisas e pessoas que a povoavam, mas antes acaba por pesar sobre os seus gestos, palavras, atitudes, sentimentos…
José Régio, A Velha Casa I