Quarta-feira, 20 de Julho de 2011

POBRES

Gustave Doré.Empíreo da Divina Comédia

 

(a João de Deus)

 

I

 

Eu quisera saber, ricos, se quando

Sobre esses montes de ouro estais subidos,

Vedes mais perto o céu, ou mais um astro

Vos aparece, ou a fronte se vos banha

Com a luz do luar em mor dilúvio?

Se vos percebe o ouvido as harmonias

Vagas do espaço, à noite, mais distintas?

Se quando andais subidos nas grandezas

Sentis as brancas asas de algum anjo

Dar-vos sombra, ou vos roça pelos lábios

De outro mundo ideal místico beijo?

Se, através do prisma de brilhantes,

Vedes maior o Empíreo, e as grandes palmas

Sobre as mãos que as sustêm mais luminosas,

E as legiões fantásticas mais belas?

E, se quando passais por entre as glórias,

O carro de triunfo de ouro e sândalo,

Na carreira que o leva não sei onde

Sobre as urzes da terra, borrifadas

Com o orvalho de sangue, ó homens fortes!

Corre mais do que o vôo dos espíritos?

 

Ah! vós vedes o mundo todo baço...

Pálido, estreito e triste... o vosso prisma

Não é vivo cristal, que o brilho aumenta,

É o metal mais denso! e tão escuro,

Que ainda a luz que vê um pobre cego

Luzir-lhe em sua noite, e a fantasia

Em mundos ideais lhe anda acendendo...

Esse sol de quem já não espera dia...

 

Ah! vós nem tendes essa luz de cegos!

Que! subir tanto... e estar cheio de frio!

Erguer-se... e cada vez trevas maiores!

Homens! que monte é esse que não deixa

Ver a aurora nos céus? qual é a altura

Que vela o sol em vez de ir-lhe ao encontro?

Que asas são essas, com que andais voando,

Que só às nuvens negras vos levantam?

Certo que deve ser o vosso monte

Algum poço bem fundo... ou vossos olhos

Têm então bem estranha catarata!

 

II

 

Há às vezes no céu, caindo a tarde,

Certas nuvens que segue o olhar do triste

Vagamente a cismar... há nuvens destas

Que o vestem de poesia e de esperança,

E lhe tiram o frio deste inverno

E o enchem de esplendor e majestade...

Mais do que as vossas túnicas de púrpura!

Eu, às vezes, nas naves das igrejas

Lá quando desce a luz e a alma sobe...

E entre as sombras perpassam as saudades...

E no seio de pedra tem o triste

Mil seios maternais... eu tenho visto

Branquejar, nos desvãos da nave obscura,

Como as nuvens da tarde desmaiadas,

Uns brancos véus de linho em frontes belas

De umas pálidas virgens cismadoras,

Que, em verdade, não há para cobrir-nos

A alma de mistério e de saudade

Gaze nenhuma assim! Vede, opulentos,

Como Deus, com olhar de amor, as veste

A elas, de uma luz de aurora mística,

De poesia, de unção e mais beleza

Que o véu tecido com o velo de ouro!

 

Os vossos cofres têm tesouros, certo,

Que um rei os invejara... Mas eu tenho

Às vezes visto o infante, em seio amado

De mãe, dormir coberto de um sorriso,

Tão guardado do mundo como a pérola

No fundo do seu golfo... e sei, ó ricos,

Que aquele abrigo aonde a mãe o fecha

— Entre braços e seio — é precioso,

Cerra um tesouro de mais alto preço

Que os tesouros que encerram vossos cofres!

 

III

 

LEVITAS do MILHÃO! o vosso culto

Pode ter brilhos e esplendor de pompas...

Arrastar-se nas ruas da cidade

Como um manto de rei... e sob os arcos

De mármore passar, como em triunfo...

Ter colunas de pórfido luzente...

E ser o altar do vosso santuário

Como o templo do Sol... cegar de luzes...

O vosso Deus pode ser grande e altivo

Como Baal... o Deus que bebe sangue...

Mas o que nunca o vosso culto esplêndido

Há-de ter, como um véu para o sacrário,

A velar-lhe mistérios... é a poesia...

 

Esse mimo de amor... esses segredos...

O ingénuo sorriso da criança...

O olhar das mães, espelho de pureza...

A flor que medra na soidão das almas...

O branco lírio que, manhã e tarde,

Aos pés da Virgem, no oratório humilde,

Rega a donzela, em vaso pobrezinho!

Nunca a vossa cruz-de-ouro há-de dar sombra

Como a outra da Gólgota — o alívio,

Sombra que buscam almas magoadas —

Onde os citisos pálidos rebentam...

Consolações... saudade... e inda esperanças...

Podeis cavar... as minas são bem fundas...

Cavai mais fundo ainda... e já é o centro

Da terra, aí! Mas, onde, ó vós mineiros,

Por mais que profundeis não heis-de uma hora

Chegar mais... é ao coração...

 

                                           E, entanto,

É lá a única mina de ouro puro!

 

IV

 

O coração! Potosi misterioso!

O grande rio de areais auríferos,

Que vem de umas nascentes ignoradas

Arrastando safiras em cada onda,

E depondo no leito finas pérolas!

 

O coração! É aí, ricos, a mina

Única digna de enterrar-se a vida,

Cavando sempre ali... sem ver mais nada...

Foi lá, como na areia o diamante,

Que Deus deixou cair da mão paterna

As esmeraldas do diadema humano...

 

O Sentimento vivo... a Acção radiante...

E a Ideia, o brilhante de mil faces!

Foi lá que esse Mineiro dos futuros

Encobertos andou c’os braços ambos

Metidos a buscar — mas quando um dia

Do fundo as mãos ergueu... o mundo, em pasmo,

Viu-lhe brilhar nas mãos... o Evangelho!

 

1863

 

Antero de Quental, Odes Modernas

 

 

publicado por Elisabete às 18:10
link do post | comentar | favorito

*mais sobre mim

*links

*posts recentes

* Joaquim Alberto

* ANTERO – ONTEM, HOJE E AM...

* QUINTA DE BONJÓIA [PORTO]

* POMPEIA: A vida petrifica...

* JOSÉ CARDOSO PIRES: UM ES...

* PELA VIA FRANCÍGENA, NO T...

* CHILE: O mundo dos índios...

* NUNCA MAIS LHE CHAMEM DRÁ...

* ARTUR SEMEDO: Actor, galã...

* COMO SE PÔDE DERRUBAR O I...

* DÉCIMO MANDAMENTO

* CRISE TRAZ CUNHALISMO DE ...

* O CÓDIGO SECRETO DA CAPEL...

* O VOO MELANCÓLICO DO MELR...

* Explicação do "Impeachmen...

* CAMILLE CLAUDEL

* OS PALACETES TORNAM-SE ÚT...

* Tudo o que queria era um ...

* 1974 - DIVÓRCIO JÁ! Exigi...

* Continuará a Terra a gira...

* SETEMBRO

* SEM CORAÇÃO

* A ESPIRAL REPRESSIVA

* 1967 FÉ DE PEDRA

* NUNCA MAIS CAIU

* Alfama é Linda

* Por entre os pingos da ch...

* DO OUTRO LADO DA ESTRADA

* Não há vacina para a memó...

* Um pobre e precioso segre...

*arquivos

* Dezembro 2018

* Junho 2018

* Maio 2017

* Abril 2017

* Março 2017

* Fevereiro 2017

* Janeiro 2017

* Setembro 2016

* Junho 2016

* Abril 2016

* Novembro 2015

* Setembro 2015

* Agosto 2015

* Julho 2015

* Junho 2015

* Maio 2015

* Março 2015

* Fevereiro 2015

* Janeiro 2015

* Dezembro 2014

* Fevereiro 2014

* Janeiro 2014

* Dezembro 2013

* Novembro 2013

* Setembro 2013

* Agosto 2013

* Julho 2013

* Junho 2013

* Maio 2013

* Abril 2013

* Março 2013

* Fevereiro 2013

* Janeiro 2013

* Dezembro 2012

* Novembro 2012

* Outubro 2012

* Setembro 2012

* Agosto 2012

* Julho 2012

* Maio 2012

* Abril 2012

* Março 2012

* Janeiro 2012

* Dezembro 2011

* Novembro 2011

* Outubro 2011

* Setembro 2011

* Julho 2011

* Maio 2011

* Abril 2011

* Março 2011

* Fevereiro 2011

* Janeiro 2011

* Dezembro 2010

* Novembro 2010

* Outubro 2010

* Agosto 2010

* Julho 2010

* Junho 2010

* Maio 2010

* Abril 2010

* Março 2010

* Fevereiro 2010

* Janeiro 2010

* Dezembro 2009

* Novembro 2009

* Outubro 2009

* Setembro 2009

* Julho 2009

* Junho 2009

* Maio 2009

* Abril 2009

* Março 2009

* Fevereiro 2009

* Janeiro 2009

* Dezembro 2008

* Novembro 2008

* Outubro 2008

* Setembro 2008

* Agosto 2008

* Julho 2008

* Junho 2008

* Maio 2008

* Abril 2008

* Março 2008

* Fevereiro 2008

* Janeiro 2008

* Dezembro 2007

* Novembro 2007

* Outubro 2007

* Setembro 2007

* Agosto 2007

* Julho 2007

* Junho 2007

* Maio 2007

* Abril 2007

* Março 2007

* Fevereiro 2007

*pesquisar