Onde ainda é possível hoje um pouco de silêncio, longe da contínua sucessão de notícias nas TV, rádios, jornais; da gritaria da publicidade; da música aos berros das discotecas, bares, corredores do Metro, ruas, praias; da chamada (raio de nome!) “música ambiente” dos centros comerciais, consultórios médicos, bancos, restaurantes, cafés, comboios, até das casas de banho e dos elevadores; do ruído estridente dos telemóveis; das conversas em voz alta; dos automóveis circulando de vidros abertos e leitor de CD no volume máximo; da chiadeira dos
travões; dos escapes; dos festejos de vitória nos dias de futebol; das celebrações gregárias que, por tudo e coisa nenhuma, enchem as ruas de todo o
género de turbas ululantes?
Porque tememos tanto o silêncio? Não é fácil, por exemplo, perceber se a música ensurdecedora nos bares se destina a poupar aos clientes, na maioria jovem – que, provavelmente, passaram a adolescência de headphones -, o embaraço de não terem que dizer ou se eles pouco falam entre si por ser impossível ouvirem-se; de qualquer modo, a situação parece convir à clientela e os bares enchem-se de grupos e de casais (alguém sozinho num desses bares é uma raridade) de copo na mão, mal trocando uma palavra, ou fazendo-o apenas de quando em vez, aos gritos, encostando a boca ao ouvido do, chamemos-lhe assim, interlocutor.
Onde será ainda possível um pouco de silêncio e, se não for pedir muito, um pouco de solidão também, quando até nos hospitais os televisores (em quartos, enfermarias, salas de espera) permanecem hoje ligados durante todo o dia?
Fui, não há muito tempo, operado num hospital público e pior e mais penoso do que a cirurgia foi ter estado uma semana inteira enfiado numa enfermaria (aliás nova e funcional) com o televisor ligado de manhã à noite: de manhã Goucha ou Praça da Alegria, à tarde telenovelas e Júlia Pinheiro, depois o Preço Certo, depois mais telenovelas, Ídolos, concursos, sei lá o quê, e tudo sem anestesia.
Quando finalmente consegui mudar para um quarto, não havia enfermeiro ou auxiliar que, entrando para me dar a medicação, para fazer a cama ou trazer a refeição e deparando com o televisor desligado, não se dirigisse mecanicamente a ele para o ligar, só se detendo quando eu gritava: “Não!” (Até o capelão, com quem mantive umas conversas sobre fé e sobre futebol, me perguntou um dia à saída, prestável: “Não quer que lhe ligue a televisão?”)
O horror ao silêncio (e a essa forma do silêncio que é a solidão), o fluxo tumultuoso da informação e da mera bisbilhotice, a prevalência da imediaticidade, da superficialidade, a vacuidade fotogénica, o voyeurismo e o exibicionismo, características da TV enquanto – como em Fahrenheit 451 – fantasia neurótica da “grande família”, são uma espécie de clone das nossas sociedades urbanas, histericamente gregárias e dominadas pela ansiedade de participação e de pertença, onde a reivindicação da solidão ou do silêncio são tanto mais afrontosas quanto mais são “associais”.
Não que nas nossas sociedades não haja gente solitária, mas não é dessa solidão que se trata; uma multidão de pessoas solitárias continua a ser uma multidão; basta ver os magotes de velhos nos lares, todo o dia diante da TV, mais sós do que ninguém. Nem da solidão essencial de Frei Luís de Leon:
“Vivir quiero conmigo,
gozar quiero del bien que debo al Cielo,
a solas, sin testigo, libré de amor, de celo,
de ódio, de esperanzas, de recelo.”
É coisa mais simples. Só um pouco de espaço para a identidade e para o pensamento; e talvez para o sofrimento, mas sem necessidade de ir contar tudo à TVI.
Manuel
António Pina, in a terra vista da lua
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