Chamo-me José, tenho trinta e um anos, sou livreiro em Lisboa. Estou doente dos pulmões e quero mudar o mundo.
Durante muito tempo pensei ser o santo representado na abside da igreja do Salvador, na aldeia que me viu nascer. Corria no meu cavalo branco e espetava a lança nas fauces do dragão. Eram fauces escancaradas ao lado do altar-mor e pertenciam a um grande lagarto com crista que nos sermões de domingo representava o mal. A fé era o bem, o lagarto, o mal. E eu, São Jorge no cavalo branco. Agora quero contar aquele sonho.
A minha livraria é a mais antiga da cidade, “desde 1727 ao serviço da cultura”. De dia atendo os clientes, estou sentado à secretária ou vou ao armazém da Rua da Figueira. A noite é para a política.
Na livraria amiúde aparece Eça de Queiroz, o companheiro Eça. Ficámos amigos e leio sempre os seus folhetins. Quando sai a Gazeta vou comprá-la a correr, recorto o artigo. Até tenho, aqui mesmo na secretária, uma frase dele de que gosto: “Todo o pé quer sua asa.”
Do meu posto de trabalho vejo os transeuntes da Rua do Chiado, cada um fechado no seu silêncio. Nalgumas tardes, quando até o realejo do cego da esquina se cala e a livraria está deserta, penso: o mundo é melancolia. O pé quer ser asa, mas não consegue. Fica no chão, enquanto uma cinza se deposita nas coisas. Especialmente no Outono, na Primavera, as estações de transição. No mês de Maio, quando as flores são as ilusões que Outubro acabará por levar consigo.
Por que é que decidi ter um diário e escrever a minha história? Não sei, pergunto-o a mim próprio. Talvez porque, nos meus pulmões, a mancha húmida se alastra e está a mudar também a minha mente. A doença traz consigo perguntas e memórias. Gostaria de perceber algo da minha vida. Por exemplo, o que é que me levou a deixar os outros entrarem dentro de mim. Não estou a falar de livros, mas sim de pessoas, operários, mulheres das fábricas. Os livros fazem companhia, os homens ferem. Mas o que é que vale mais do que o homem?
Talvez tenha sido a ofensa que me levou a decidir. A ofensa pelo mal na Terra. Quem quer que passe na rua reflecte-se no meu espelho secreto. Não posso fingir que não se passa nada. Eu sou como ele. Eu sou ele.
Quero escrever para tentar deter o tempo, que para mim apressou o passo. Escrever.Talvez queira entrar em competição com todos os escritores que me olham das estantes. Uma nova lucidez leva-me a dilatar a vida transacta, alonga os meus dias para trás. E as coisas da terra onde nascemos brilham, na memória, como a lâmina da foice na mão do ceifeiro.
Perguntei a Eça se a literatura pode melhorar o homem e ele respondeu com um sorriso. É preciso fazer a revolução, para o homem. O pé tem de se tornar asa: na próxima semana, talvez… Pois há vento novo em Lisboa: as conferências do Casino.
Ontem à noite, a primeira conferência: Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos. Antero de Quental parecia São Francisco, com a sua candura deu cabo dos burgueses.
Estavam lá os que costumam aparecer na livraria, os políticos, os jornalistas. Mas também estava Miguel, o encadernador, que olhava em redor, acabrunhado por entre os janotas. Estava Nobre França, um irmão para mim. Estava o tipógrafo com quem sujei as mãos, antes de vir para aqui lidar com livros. Alguns operários da nossa secção ficavam lá ao fundo da sala a olhar para os tectos decorados. Sentiam-se como cães numa igreja. Mas vamos mudá-los.
O que disse Antero? Em poucas palavras: os povos peninsulares começaram a decair quando ficaram sob o jugo do despotismo religioso organizado pelo Concílio de Trento. Palavras importantes. E enquanto mandava vir com os Jesuítas que querem o povo calado, obediente e imbecil, enquanto acusava os conquistadores que nos trouxeram ouro, especiarias e pau-santo, mas destruíram dois impérios e dez milhões de homens, na sala ouviam-se gemer os escapulários. Havia quem se agitasse como se tivesse o fogo-de-santo-antão.
Esta noite estava a pensar: no fundo de nós há uma sombra que impede a alegria de crescer. A flor não desabrocha. Vejo-a, às vezes, aquela sombra, também nos olhos de Antero, apesar de tão combativo. Mas durante a conferência, ontem, tinha luz nos olhos e chamas no cabelo. Tinha luz, enquanto falava de religião. O cristianismo foi a revolução do mundo antigo e a revolução é o cristianismo do mundo moderno, disse. Então, levantei-me para aplaudir. Entretanto os quatro operários ao fundo da sala estavam de olhos esbugalhados. “Eis o quarto estado”, pensava, “vamos marchar com eles contra o obscurantismo.”
Tema e variações. Os peninsulares são naturalmente religiosos, amam as procissões, os santos, o incenso e os cantos litúrgicos, mas ignoram a teologia. “O cristianismo é um sentimento, enquanto o catolicismo é uma instituição.” Tudo mudou com os dogmas: como é possível pensar que Cristo está deveras presente no pão do padeiro e no vinho do vinhateiro? E por que é que a alma não pode comunicar directamente com Deus, mas tem de prestar contas, na confissão, a um intruso intitulado guia espiritual?
Disse mesmo assim: intruso. Um burburinho percorreu a sala.
A conferência no Casino levantou celeuma. Os da Nação reagiram: “Aqueles cabrões que querem refazer o mundo! Sabichões! Escribas e fariseus!”, dizem, de Antero, que arrasta o balandrau pelo chão “como um miserável judeu, um herdeiro dos que mataram Cristo”.
Quando chove fico sentado à secretária. Se levanto os olhos, vejo as lombadas dos livros a olhar para mim, a prevenir-me, a piscar-me o olho. Dom Quixote guia-me com o seu rocinante rumo aos moinhos de vento.
Olho atrás das montras e os pingos da chuva parecem escorrer no espelho que tenho dentro de mim. Eu sou um pingo: nós também escorremos como água. A água da chuva que lava as ruas. O Tejo. Vejo-o brilhar da janela da minha casa na Rua do Monte Olivete. Os pingos de água que alargam a mancha dos meus pulmões.
Estava preocupado com a conferência de Eça de Queiroz: todo o pé quer ser asa…
Vi Eça algumas vezes na Casa de Batalha Reis, na Travessa do Guarda-Mor, lá em cima no Bairro Alto, à noite, depois do encerramento da livraria. É um ponto de encontro para nós. Lá, vi-o à luz de um candeeiro de petróleo. Uma alma comprida e magra. Lembrei-me da minha alcunha de rapaz: era muito magro e no meu dialecto chamavam-me gambadazelar, pé de aipo. Todos nós, que queremos mudar o mundo, somos pés de aipo. Mas Eça tem, a mais, a elegância, as mãos de marfim, o monóculo de intelectual, uma bengala delgada de fazer inveja a um negreiro. Fuma um cigarro atrás do outro e não se cansa de escrever.
Também o vi na biblioteca do Grémio Literário. Eu estava a ler Proudhon, ele, Gérard de Nerval. Um dia em que, juntos, comemos bacalhau numa tasca de Alfama, recitou para mim um poema de Gérard de Nerval. Lembro-me do primeiro verso: “Je suis le ténébreux, le veuf, l’inconsolé…”
Havia interesse na sala do Casino. Aparentemente Eça é da mesma massa dos ouvintes, mas dentro de si tem um músculo que os outros não têm. Impressionou todos com a sua distinção, o bigode e o cabelo preto, madeixa na testa, gesticular das mãos.
Trouxe à baila as teorias de Proudhon. A nova arte democrática: Courbet. O artista tem de saber observar e não excluir nada do seu olhar. Para quê pintar musas e fantasmagorias? Basta descrever a praça da nossa aldeia, a nossa ruela.
- Vós, que pretendeis representar Carlos Magno, César e Jesus Cristo em pessoa, seríeis capazes de fazer o retrato do vosso pai? – perguntou um dia Courbet, dirigindo-se aos académicos.
Eça citou Proudhon e a sua descrição de um quadro de Courbet: uns curas da província, bêbados, no regresso de uma conferência seguida de pândega. O quadro provocou escândalo e foi excluído de uma exposição prevista em Paris.
Depois, mergulhou no elogio a Gustave Flaubert e à sua Madame de Bovary.
Tenho pensado muito na conferência. Eu não sou um artista, mas acredito que a arte contribui para o conhecimento dos homens e do mundo. O homem novo, o produto da nossa revolução, saberá emocionar-se diante de um quadro. Mesmo diante dos britadores de camisa esfarrapada de Courbet. Sobretudo diante deles.
A conferência de Eça fez-me voltar com a mente aos meus dezassete anos. E, ao remexer nos meus papéis, encontrei o recorte de jornal que guardara, quando era rapaz no Jura. Vou partir daqui, para as minhas memórias. De um velho recorte de jornal, já passaram quase vinte anos. Mas ainda me lembro perfeitamente. A lembrança é imortal. A lembrança é um pássaro que voa pelo tempo e que bate nos vidros.
Alberto Nessi, Na Próxima Semana, Talvez
[Nascido em Mendrisio (Suíça)
em 19 de Novembro de 1940]
Do blogue O Palrador
"A fim de melhorar a competitividade dos custos da mão-de-obra, os salários do sector privado deverão seguir o exemplo do sector público e aplicar reduções sustentadas", escrevem os senhores (nunca a palavra "senhores" foi tão apropriada) do FMI, BCE e CE no comunicado em que apresentam os resultados da recente vistoria à sua quinta à beira-mar plantada e avalizam as contas prestadas pelos feitores. E como os seus desejos são ordens, não tardará muito até que os ministros Álvaro e Vítor Gaspar apareçam nas TVs a anunciar outra "inevitabilidade": a redução de salários também no sector privado.
Parece, contudo, haver um problema: é que, diz a CIP, os patrões portugueses preferem, em vez de pagar menos aos trabalhadores, aumentar-lhes o horário de trabalho (a coisa vai dar ao mesmo mas afigurar-se-á aos patrões que trabalhar mais não dói tanto como receber menos; só resta saber se o Governo decretará que os dias passem a ter 30, 40 ou 48 horas).
Adivinha-se assim uma situação típica da "commedia dell'arte" (embora, no caso, se deva falar antes de "tragedia dell'arte"), com Arlequim a correr desalmadamente de uma mesa para outra para tentar servir ao mesmo tempo o almoço aos seus dois amos.
Na peça de Goldoni, tudo acaba em bem. Na de Passos Coelho, patronato e "funcionários de 5ª, 6ª, 7ª ou 8ª linha" (presidente do BPI "dixit") dos "mercados" só uma coisa é, para já, certa: quem pagará o espectáculo.
Manuel António Pina, Por Outras Palavras
Jornal de Notícias [18Novembro2011]
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