Quinta-feira, 29 de Março de 2012

Realizar a loucura infinita...

 

Você sabe quanto é triste viver em Lisboa e não estar vivo – sem as paisagens, sem uma única árvore em frente dos olhos, tão longe do mar e do céu dos Açores? É-se medíocre assim, toda a vida entre prédios altíssimos que nos proíbem de ver e amar a distância. Em Lisboa, o infinito, ao contrário daqui, não é plano nem horizontal: a única possibilidade é torná-lo perpendicular, na vertical daquele céu luminoso e quase sempre azul. Muitas vezes, imaginei que devia vender o apartamento de Lisboa, vender agora a casa dos meus pais e ir realizar lá longe a loucura infinita, onde houvesse campo, duas árvores e qualquer mar em frente. Gostava de aprender de novo os segredos da terra: plantar canas em redor dum muro, escorar pequenos troncos com estacas e ver como cresciam as árvores da minha vida. Se possível, uma figueira. Sabe porquê? Quando era pequeno, existiram sempre essas árvores de folhas ásperas para me abrigarem da chuva. Os figos vertiam leite e rebentavam-me os lábios, quando a gula dos figos proibidos era superior às bostelas da tinha no couro cabeludo. Isso era viver o sentido do tempo. Podia também suspirar por uma criptoméria: árvore porosa e altiva, das que sempre fizeram os dias de festa e o esplendor das bandas de música na Ilha. Vinham procissões de andores, com anjos coroados, multidões de opas vermelhas, o grande pálio dourado sob que se abrigavam padres translúcidos e solenes: era sempre domingo quando isso acontecia, todos estavam vivos e não era preciso sofrer a solidão dos meus futuros domingos de Lisboa.

A casa tem os espaços e os passos perdidos de toda a minha vida. A de Lisboa, ao contrário desta, é um corredor com paisagenzinhas dependuradas das janelas, passos suaves nas alcatifas das salas, o santuário tristonho dum quarto de casal. A minha angústia foi-se povoando aos poucos dos ruídos das portas batidas pelo vento. Disse-o o poeta Ruy Belo, que morreu disso, isto é, só de fazer versos: no meu país não acontece nada; à terra vai-se pela estrada em frente… Para mim, no entanto, nunca houve sequer uma estrada que desse para a Ilha, porque Lisboa cortou-me toda a possibilidade dessa retirada. Fechei-me por dentro da cidade magnífica e mortuária, de tal sorte que nunca soube os nomes daqueles que nasceram depois de mim. Não conheci os rostos nem o tempo dos rostos. E, como o pior do homem é a ausência dessas e de todas as outras memórias sobre os lugares, não sei quem sou aqui, o que faço agora nos Açores – ou por que razão vou herdar a sombra duma casa. Dizem-me, os que aqui viveram, que eu serei talvez o primeiro e único morto da família que ainda não morreu…

 

João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas

publicado por Elisabete às 11:54
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Sábado, 24 de Março de 2012

O Impossível Retorno

 

 

Quando houve luz outra vez, compreendi que passara a Primeira Prova. As sombras levaram os receios da véspera. Ao lavar o peito e a cara num recanto do ribeiro, junto a Rosario que limpava com areia os utensílios do meu pequeno-almoço, pareceu-me que compartilhava neste momento, com os milhares de homens que viviam nas inexploradas cabeceiras dos Grandes Rios, a primordial sensação de beleza, de beleza fisicamente percebida, gozada igualmente pelo corpo e pelo entendimento, que nasce de cada renascer do Sol – beleza cuja consciência, em tais paragens, se transforma para o homem em orgulho de proclamar-se dono do mundo, supremo usufrutuário da criação.

[…]

Hoje tomei a grande decisão de não regressar para além. Tratarei de aprender os simples ofícios que se praticam em Santa Mónica de los Venados e que já se ensinam a quem observe as obras da edificação da sua igreja. Vou subtrair-me ao destino de Sísifo que o mundo de onde venho me impôs, fugindo das profissões insignificantes, do girar do esquilo preso em tambor de arame, do tempo medido e dos ofícios de trevas. As Segundas-feiras deixarão de ser, para mim, Segundas-feiras de cinza, nem haverá motivo para lembrar que a Segunda-feira é Segunda-feira, e a pedra que eu carregava será de quem quiser dobrar-se ao seu peso inútil. Prefiro empunhar a serra e a enxada a continuar a aviltar a música em ofício de pregoeiro. Digo-o a Rosario, que aceita o meu propósito com alegre docilidade, como receberá sempre a vontade de quem aceitar como varão. Tua mulher não compreendeu que esta determinação é, para mim, muito mais grave do que parece, posto que implica uma renúncia a tudo o que é de além. Para ela, nascida nos limites da selva, com irmãs amigadas com mineiros, é normal que um homem prefira a vastidão do remoto ao amontoado das cidades. Além disso, não julgo que, para se habituar a mim, tenha feito tantos ajustes intelectuais como eu. Ela não me vê como um homem muito diferente dos outros que conheceu. Eu, para a amar – pois julgo amá-la profundamente, agora -, tive de estabelecer uma nova escala de valores, ao ponto a que deve apegar-se um homem da minha formação a uma mulher que é toda uma mulher, sem ser mais do que uma mulher. Fico-me, pois, com toda a consciência do que faço. E ao repetir para mim mesmo que fico, que as minhas claridades serão agora as do Sol e as da fogueira, que todas as manhãs mergulharei o corpo na água desta cascata, e que uma fêmea cabal e inteira, sem evasivas, estará sempre ao alcance do meu desejo, invade-me uma imensa alegria. Encostado a um banco de areia, enquanto Rosario, de seios negligentes, lava os seus cabelos na corrente, agarro a velha Odisseia do grego, tropeçando, ao abrir o volume, com um parágrafo que me faz sorrir: aquele em que se fala dos homens que Ulisses manda para o país dos lotófagos, e que, ao provarem a fruta que nascia ali, se esqueciam de regressar à pátria.

[…]

 

Dou-me conta agora de que depois de ter saído vencedor da prova dos terrores nocturnos, da prova da tempestade, fui submetido à prova decisiva: a tentação de regressar.”

[…]

Digo para mim mesmo que a marcha por caminhos excepcionais se empreende inconscientemente, sem se ter a sensação do maravilhoso no momento em que este é vivido: chega-se tão longe, para lá do trilhado, que o homem, envaidecido pelos privilégios do descoberto, sente-se capaz de repetir a façanha quando quiser – dono do caminho negado aos demais. Um dia comete o irreparável erro de desandar o andado, acreditando que o excepcional possa sê-lo duas vezes e, ao regressar, encontra as paisagens alteradas, os pontos de referência desapareceram…

 

Alejo Carpentier (Havana, 26.Dez.1904-Paris, 2.Abril.1980), “Os Passos Perdidos”

publicado por Elisabete às 11:06
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Sexta-feira, 16 de Março de 2012

Goa ou o Guardião da Aurora

 

 

[…]

- Ouça, senhor Zarco, por que não escreve umas memórias? – sugeriu-me ele quando se despediu de mim, sentindo que me incomodara. – Pelo menos assim pode contar tudo da maneira que quiser.

Parecia-me uma ideia absurda, mas, alguns dias depois de ele ter partido, peguei no cálamo e na tinta. Trabalhar dessa maneira produziu em mim uma estranha sensação de estar a fazer o que era correcto. Mais tarde, percebi que estivera à espera de dar voz à minha história desde que o Grande Inquisidor me dissera pela primeira vez a sua charada sobre um livro poder continuar a falar aos leitores muito depois de o terem terminado. Afinal, reduzir a minha história a escrito era a única maneira que tinha de, a partir do meu túmulo, falar de tudo o que acontecera. E era alguma coisa – talvez a única coisa – que podia dar de volta ao mundo em troca de todo o mal que fizera.

O Geral da Inquisição de Goa nunca poderia ter adivinhado que daquela maneira me estava a ajudar. E também isso parecia acertado.

Nestes últimos meses, sentado à secretária a escrever sobre Sofia, Wadi, Tejal, o meu pai e Phanishwar, tenho sido capaz de, para além de mim próprio, espreitar para os calabouços de Goa, de Lisboa e de uma centena de outras cidades na Ásia, na Europa e na América. Vi os homens e mulheres a apodrecer neles em nome de Cristo, Maomé e Krishna. Desejaria poder dar-lhes mais do que isto, mas isto é tudo o que tenho.

Em breve o leitor há-de fechar a capa deste manuscrito, selar-me lá dentro, e seguir o seu caminho, como lhe compete, mas talvez pense nesses prisioneiros – e em mim – de tempos a tempos. Agora que pego no último desenho da minha irmã e olho para ele à luz de uma única vela, talvez o leitor possa sentir até a morna brisa que entra pela minha janela em Bijapur, arrastando consigo o odor das flores de tamarindo. Consegue ver-me a pôr a mão sobre o contorno dos dedos que Sofia desenhou há tanto tempo? Vou rezar por que possa, e por muitas outras coisas:

Que Ana, Gonçalo, o meu pai, Sofia, Wadi, e todos os mortos descansem em paz.

Que Phanishwar tenha tido uma boa reencarnação.

Que Nupi tenha perdoado ao afilhado.

Que o meu filho nunca tenha sabido de mim e que Tejal tenha sido feliz.

A seguir, vou pegar na minha cruz de prata e sair para o meu alpendre para observar o pôr do Sol. Tentarei congregar alguma da coragem do meu pai, mas, por favor, não pense muito mal de mim se me vir tremer. Afinal, já sabe que não sou um homem muito corajoso, e, de qualquer forma, não é coisa fácil terminar uma história, mesmo uma história em que desempenhámos o papel do vilão.

 

TIAGO ZARCO

Bijapur, 14 de Maio de 1616

 

Richard Zimler, Goa ou o Guardião da Aurora

 

publicado por Elisabete às 11:06
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