Agora Kalter já não se dava ao trabalho de inspeccionar os armários das provisões e as compras do dia. Tinham acabado as fiscalizações na cozinha! Mas embora isso tornasse as coisas mais fáceis e lhes permitisse comer melhor, a Srª Helianos – domesticada pelas restrições do anterior regime – não apreciava as mudanças.
De manhã, à hora em que saía para o quartel e o casal se apresentava para lhe abrir a porta, perfilando-se depois para receber as habituais instruções, percebia-se que ele já não sabia o que lhes ia dizer. Não havia instruções a dar; nada era como dantes. A Srª Helianos queixava-se disso. Sem os costumeiros reparos do major, ficava sem saber se ele estava ou não satisfeito com o seu trabalho do dia anterior, e se as tarefas que levaria a cabo nesse dia, por iniciativa própria, eram ou não as que ele desejaria ver realizadas.
Mas, independentemente de quais fossem as ordens ou os reparos do major, algumas vez soubera o que Kalter esperaria dela, ou o que eles próprios poderiam esperar dele?, perguntou Helianos num tom impaciente.
Antes, e apesar do seu mau feitio, respondeu ela, uma pessoa pelo menos sabia a que se agarrar; havia alguma hipótese de esperar que, de algum modo, no final, a tarefa que tivesse executado pudesse ser aprovada por ele. Até uma censura era melhor do que o silêncio, sentia ela. Já que ele era o seu tirano, então que tiranizasse!; lentamente, como fazem os tiranos, para que eles soubessem com que contar. Doutro modo, como podia esperar que cumprissem com o seu papel?
Por alguma razão, o major desinteressara-se momentaneamente, mas apenas momentaneamente, disse a Srª Helianos, do seu trabalho doméstico. Não era natural que ele deixasse de querer as coisas à sua maneira, não era natural que ele controlasse o seu mau humor, e aquilo ainda ia acabar mal. O desprendimento, a ineficiência, a delicadeza eram qualidades alheias à natureza do povo alemão, por isso aquilo não poderia durar muito. Em breve, pensava ela, o major voltaria a persegui-la, com desígnios vingativos.
Helianos supôs que a mulher estava tão cansada da lida doméstica que não conseguia ver as coisas de forma razoável. Nas palavras dela, o seu próprio trabalho ia de mal a pior. As refeições que servia não prestavam; a gestão doméstica estava um caos; era escandaloso o modo como roubavam sobras de comida só porque tinham fome; e as crianças, isto é, Alex, começavam a aproveitar o pretenso alheamento do major para se permitirem certas liberdades… Ela albergava sentimentos de culpa em relação a tudo isso, e achava que o responsável era este novo Kalter. Pois era à sua presente indiferença pelo comportamento deles, à sua actual indulgência, que se devia toda aquela acumulação de falhas. Ela já não conseguia estar à altura das suas responsabilidades, e o marido e os filhos muito menos. E um dia ainda haviam de pagar caro por isso.
Helianos impacientava-se quando ela se punha com estes discursos. Mas continuava, pacientemente, a fazê-la notar que estavam agora melhor do que alguma vez haviam estado durante o ano anterior. Recomendava-lhe que tivesse calma e se deixasse de maus pressentimentos… A Srª Helianos nunca contestava nada do que o marido dizia, mas, assim que ele se calava, lá recaía ela na anterior ansiedade, teimando nas suas desconfianças.
Glenway Wescott, Um Apartamento em Atenas
Um terço é para morrer. Não é que tenhamos gosto em matá-los, mas a verdade é que não há alternativa. Se não damos cabo deles, acabam por nos arrastar com eles para o fundo. E de facto não os vamos matar-matar, aquilo que se chama matar, como faziam os nazis. Se quiséssemos matá-los mesmo era por aí um clamor que Deus me livre. Há gente muito piegas, que não percebe que as decisões duras são para tomar, custe o que custar e que, se nos livrarmos de um terço, os outros vão ficar melhor. É por isso que nós não os vamos matar. Eles é que vão morrendo. Basta que a mortalidade aumente um bocadinho mais que nos outros grupos. E as estatísticas já mostram isso. O Mota Soares está a fazer bem o seu trabalho. Sempre com aquela cara de anjo, sem nunca se desmanchar. Não são os tipos da saúde pública que costumam dizer que a pobreza é a coisa que mais mal faz à saúde? Eles lá sabem. Por isso, joga tudo a nosso favor. A tendência já mostra isso e o que é importante é a tendência. Como eles adoecem mais, é só ir dificultando cada vez mais o acesso aos tratamentos. A natureza faz o resto. O Paulo Macedo também faz o que pode. Não é genocídio, é estatística. Um dia lá chegaremos, o que é importante é que estamos no caminho certo. Não há dinheiro para tratar toda a gente e é preciso fazer escolhas. E as escolhas implicam sempre sacrifícios. Só podemos salvar alguns e devemos salvar aqueles que são mais úteis à sociedade, os que geram riqueza. Não pode haver uns tipos que só têm direitos e não contribuem com nada, que não têm deveres.
Estas tretas da democracia e da educação e da saúde para todos foram inventadas quando a sociedade precisava de milhões e milhões de pobres para espalhar estrume e coisas assim. Agora já não precisamos e há cretinos que ainda não perceberam que, para nós vivermos bem, é preciso podar estes sub-humanos.
Que há um terço que tem de ir à vida não tem dúvida nenhuma. Tem é de ser o terço certo, os que gastam os nossos recursos todos e que não contribuem. Tem de haver equidade. Se gastam e não contribuem, tenho muita pena... os recursos são escassos. Ainda no outro dia os jornais diziam que estamos com um milhão de analfabetos. O que é que os analfabetos podem contribuir para a sociedade do conhecimento? Só vão engrossar a massa dos parasitas, a viver à conta. Portanto, são: os analfabetos, os desempregados de longa duração, os doentes crónicos, os pensionistas pobres (não vamos meter os velhos todos porque nós não somos animais e temos os nossos pais e os nossos avós), os sem-abrigo, os pedintes e os ciganos, claro. E os deficientes. Não são todos. Mas se não tiverem uma família que possa suportar o custo da assistência não se pode atirar esse fardo para cima da sociedade. Não era justo. E temos de promover a justiça social.
O outro terço temos de os pôr com dono. É chato ainda precisarmos de alguns operários e assim, mas esta pouca-vergonha de pensarem que mandam no país só porque votam tem de acabar. Para começar, o país não é competitivo com as pessoas a viverem todas decentemente. Não digo voltar à escravatura - é outro papão de que não se pode falar -, mas a verdade é que as sociedades evoluíram muito graças à escravatura. Libertam-se recursos para fazer investimentos e inovação para garantir o progresso e permite-se o ócio das classes abastadas, que também precisam. A chatice de não podermos eliminar os operários como aos sub-humanos é que precisamos destes gajos para fazerem algumas coisas chatas e, para mais (por enquanto), votam - ainda que a maioria deles ou não vote ou vote em nós. O que é preciso é acabar com esses direitos garantidos que fazem com que eles trabalhem o mínimo e vivam à sombra da bananeira. Eles têm de ser aquilo que os comunistas dizem que eles são: proletários. Acabar com os direitos laborais, a estabilidade do emprego, reduzir-lhes o nível de vida de maneira que percebam quem manda. Estes têm de andar sempre borrados de medo: medo de ficar sem trabalho e passar a ser sub-humanos, de morrer de fome no meio da rua. E enchê-los de futebol e telenovelas e reality shows para os anestesiar e para pensarem que os filhos deles vão ser estrelas de hip-hop e assim.
O outro terço são profissionais e técnicos, que produzem serviços essenciais, médicos e engenheiros, mas estes estão no papo. Já os convencemos de que combater a desigualdade não é sustentável (tenho de mandar uma caixa de charutos ao Lobo Xavier), que para eles poderem viver com conforto não há outra alternativa que não seja liquidar os ciganos e os desempregados e acabar com o RSI e que para pagar a saúde deles não podemos pagar a saúde dos pobres.
Com um terço da população exterminada, um terço anestesiado e um terço comprado, o país pode voltar a ser estável e viável. A verdade é que a pegada ecológica da sociedade actual não é sustentável. E se não fosse assim não poderíamos garantir o nível de luxo crescente da classe dirigente, onde eu espero estar um dia. Não vou ficar em Massamá a vida toda. O Ângelo diz que, se continuarmos a portar-nos bem, um dia nós também vamos poder pertencer à elite.
José Vítor Malheiros, in Público [11 de Setembro de 2012]
Agora, o desespero apoderava-se dos homens. Mesmo os guerreiros do deserto, os homens azuis invisíveis de Ma el Ainine, estavam cansados e havia vergonha no seu olhar, como no dos homens que deixavam de crer.
Eles ficavam sentados formando pequenos grupos, com as espingardas encostadas aos braços, sem falar. Quando Nour ia ver o pai e a mãe para lhes pedir água, era o silêncio deles o que mais o assustava. Era como se a ameaça da morte tivesse atingido os homens e eles já não tivessem força para se amar.
A maior parte das pessoas da caravana, as mulheres, as crianças, estavam prostradas na terra, esperando que o Sol se extinguisse no horizonte. Já nem tinham forças para dizer a oração, apesar do apelo dos religiosos de Ma el Ainine que soava no planalto. Nour estendia-se no chão, com a cabeça pousada no seu fardo quase vazio, e contemplava o céu sem fundo que mudava de cor, escutando a voz do velho que cantarolava.
Por vezes tinha a impressão de que tudo aquilo era um sonho, um terrível, um interminável sonho que ele sonhava de olhos abertos e que o arrastava ao longo das rotas das estrelas, na terra lisa e dura como uma pedra polida. Então o sofrimento era uma lança cravada e ele avançava sem compreender o que o dilacerava. Era como se saísse de si mesmo, abandonando o seu corpo na terra calcinada, o seu corpo imóvel no deserto de pedras e de areia, semelhante a uma mancha, a um monte de trapos velhos atirados para o solo, no meio de outros montes de trapos abandonados, e a sua alma aventurava-se no céu gelado, pelo meio das estrelas, percorrendo num abrir e fechar de olhos todo o espaço que nem toda a sua vida seria suficiente para reconhecer. Via então, como que surgindo de miragens, as cidades extraordinárias com palácios de pedra branca, as torres, as cúpulas, os grandes jardins inundados de água pura, as árvores carregadas de frutos, os canteiros de flores, as fontes onde se reuniam as raparigas soltando risos ligeiros. Ele via aquilo distintamente, deslizava na água fresca, bebia nas cascatas, provava cada fruto, respirava cada cheiro. Mas o que era mais extraordinário, era a música que escutava quando saía do seu corpo. Nunca tinha ouvido nada semelhante. Era uma voz de rapariga que cantava na língua chleuh, uma doce canção que tremulava no ar e que repetia sempre as mesmas palavras, assim:
- Um dia, oh, um dia, o corvo ficará branco, o mar há-de secar, alguém descobrirá o mel na flor do cacto, alguém fará uma cama com os ramos da acácia, oh, um dia, já não haverá veneno na boca da serpente, e as balas das espingardas já não produzirão a morte, pois será o dia em que deixarei o meu amor…
De onde vinha aquela voz, tão clara, tão doce? Nour sentia o seu espírito deslizar ainda para mais longe, para lá desta terra, para lá deste céu, para o país onde há nuvens negras carregadas de chuva, rios profundos e largos onde a água nunca pára de correr.
- Um dia, oh, um dia, o vento não soprará sobre a terra, os grãos de areia serão doces como o açúcar, debaixo de cada pedra do caminho haverá uma nascente à minha espera, um dia, oh, um dia, as abelhas cantarão para mim, pois será o dia em que deixarei o meu amor…
É lá que ribombam os ruídos misteriosos da tempestade, é lá que reina o frio, a morte.
- Um dia, oh, um dia, haverá o Sol da noite, a água da Lua deixará as suas poças na terra, o céu dará o ouro das estrelas, um dia, oh, um dia, verei a minha sombra dançar para mim, pois será o dia em que deixarei o meu amor…
É de lá que vem a nova ordem, aquela que expulsa os homens azuis do deserto, que faz irromper o medo em todo o lado.
- Um dia, oh, um dia, o Sol será negro, a terra há-de abrir-se até ao centro, o mar cobrirá a areia, um dia, oh, um dia, os meus olhos já não verão a luz, a minha boca já não poderá dizer o teu nome, o meu coração deixará de bater, pois será o dia em que deixarei o meu amor…
A voz desconhecida afastava-se a murmurar e Nour ouvia de novo a canção lenta e triste do guerreiro cego que falava sozinho, com o rosto voltado para o céu que não conseguia ver.
J.M.G. Le Clézio, Deserto
É preciso fazer qualquer coisa de extraordinário. É preciso tomar as ruas e as praças das cidades e os nossos campos. Juntar as vozes, as mãos. Este silêncio mata-nos. O ruído do sistema mediático dominante ecoa no silêncio, reproduz o silêncio, tece redes de mentiras que nos adormecem e aniquilam o desejo. É preciso fazer qualquer coisa contra a submissão e a resignação, contra o afunilamento das ideias, contra a morte da vontade colectiva. É preciso convocar de novo as vozes, os braços e as pernas de todas e todos os que sabem que nas ruas se decide o presente e o futuro. É preciso vencer o medo que habilmente foi disseminado e, de uma vez por todas, perceber que já quase nada temos a perder e que o dia chegará de já tudo termos perdido porque nos calámos e, sós, desistimos.
O saque (empréstimo, ajuda, resgate, nomes que lhe vão dando consoante a mentira que nos querem contar) chegou e com ele a aplicação de medidas políticas devastadoras que implicam o aumento exponencial do desemprego, da precariedade, da pobreza e das desigualdades sociais, a venda da maioria dos activos do Estado, os cortes compulsivos na segurança social, na educação, na saúde (que se pretende privatizar acabando com o SNS), na cultura e em todos os serviços públicos que servem as populações, para que todo o dinheiro seja canalizado para pagar e enriquecer quem especula sobre as dívidas soberanas. Depois de mais um ano de austeridade sob intervenção externa, as nossas perspectivas, as perspectivas da maioria das pessoas que vivem em Portugal, são cada vez piores.
A austeridade que nos impõem e que nos destrói a dignidade e a vida não funciona e destrói a democracia. Quem se resigna a governar sob o memorando da Troika entrega os instrumentos fundamentais para a gestão do país nas mãos dos especuladores e dos tecnocratas, aplicando um modelo económico que se baseia na lei da selva, do mais forte, desprezando os nossos interesses enquanto sociedade, as nossas condições de vida, a nossa dignidade.
Grécia, Espanha, Itália, Irlanda, Portugal, países reféns da Troika e da especulação financeira, perdem a soberania e empobrecem, assim como todos os países a quem se impõe este regime de austeridade.
Contra a inevitabilidade desta morte imposta e anunciada é preciso fazer qualquer coisa de extraordinário
É necessário construir alternativas, passo a passo, que partam da mobilização das populações destes países e que cidadãs e cidadãos gregos, espanhóis, italianos, irlandeses, portugueses e todas as pessoas se juntem, concertando acções, lutando pelas suas vidas e unindo as suas vozes.
Se nos querem vergar e forçar a aceitar o desemprego, a precariedade e a desigualdade como modo de vida, responderemos com a força da democracia, da liberdade, da mobilização e da luta. Queremos tomar nas nossas mãos as decisões do presente para construir um futuro.
Este é um apelo de um grupo de cidadãos e cidadãs de várias áreas de intervenção e quadrantes políticos. Dirigimo-nos a todas as pessoas, colectivos, movimentos, associações, organizações não-governamentais, sindicatos, organizações políticas e partidárias que concordem com as bases deste apelo para que se juntem na rua no dia 15 de Setembro.
Dividiram-nos para nos oprimir. Juntemo-nos para nos libertarmos!
Ana Carla Gonçalves, Ana Nicolau, António Costa Santos, António Pinho Vargas, Belandina Vaz, Bruno Neto, Chullage, Diana Póvoas, Fabíola Cardoso, Frederico Aleixo, Helena Pato, Joana Manuel, João Camargo, Luís Bernardo, Magda Alves, Magdala Gusmão, Marco Marques, Margarida Vale Gato, Mariana Avelãs, Myriam Zaluar, Nuno Ramos de Almeida, Paula Marques, Paulo Raposo, Ricardo Morte, Rita Veloso, Rui Franco, Sandra Monteiro, São José Lapa, Tiago Rodrigues.
O que me aconteceu que não me apetece fazer amor com o meu marido? As minhas amigas garantem que ao fim de cinco anos de casada é inevitável, a ideia vai deixando de exaltar-nos, até se continua a ter prazer mas não é a mesma coisa, se em vez do meu marido fosse outro qualquer era igual, o tempo mata o entusiasmo e o desejo mas, em compensação, aparecem outras alegrias, sobretudo o facto de ter uma família, uma certa paz, uma rotina no fim de contas agradável, um sentimento de estar protegida, de segurança, de estabilidade embora com os homens nunca se saiba, tão infantis, tão à mercê de entusiasmos, caprichos, qualquer par de pernas os transtorna, as raparigas mais novas põem-nos a ferver mas a segurança e a estabilidade, ainda que precárias às vezes, existem de facto, claro que há separações, divórcios, etc., porém a estabilidade e a segurança, uma certa estabilidade e uma certa segurança existem de facto e depois, uma vez a meio da semana e outra ao fim de semana, lá vem a mãozinha, a perna, o corpo todo, é agradável sem ser muito bom, aquela paz do depois sossega a gente e, para além do sossego, o alívio de saber que por uns dias teremos descanso, jantares com amigos, a televisão, o jornal, a vida é isto, quanto ao fazer amor umas ocasiões é agradável, outras nem tanto, a partir de um certo tempo em comum as coisas tendem a passar-se mais ou menos da mesma maneira, não há grandes variações, não há acrobacias, acabam e levantam-se logo com a desculpa do chichi, do copo de água, das crianças que podem ouvir
(ouvir o quê se acabou?)
parecem aborrecidos connosco, parecem fartos, não respondem, resmungam, não conversam, ficam calados no sofá ou telefonam a um colega do emprego para combinar um jantar a quatro, há quantos meses não jantamos sozinhos, há quantos meses não me beija sem segundas intenções, só por beijar, não me diz nada terno, não me pega na mão, na semana passada perguntei-lhe
- Gostas de mim?
Respondeu
- Estou aqui não estou?
parecia que admirado com a pergunta, se ponho um vestido novo anima-se um bocado porque me tornei outra e é a outra que lhe interessa, não eu, a mesma reacção com brincos grandes, mais maquilhagem, saltos altos, a quem é que apetece fazer amor afinal, a mim, a ele, é evidente que não me interessam outros, nem olho, o actor de uma série de televisão mas isso um entusiasmo vago, um
- Como seria se
que conforme aparece se esfuma, quando vamos no carro já me aconteceu pensar no actor, uma espécie de pergunta, porque não chega a pergunta
- Como se seria se
e passa, o meu marido não gosta de conversar enquanto conduz ele que ao princípio conversava imenso
- Não me desconcentres que só temos seguro contra terceiros pergunto-me se o actor me daria atenção ou ao cabo de cinco anos o mesmo, suponho que o mesmo ou antes tenho a certeza que o mesmo, pelo que oiço não há-de haver muitas diferenças entre eles, porque razão nós as mulheres não somos felizes, quer dizer até podemos ser felizes mas não somos felizes felizes e muito menos felizes felizes felizes, também não somos infelizes, é um estado de alma assim assim que o facto de termos uma família vai compondo, uma família, a casa paga, os electrodomésticos pagos, tudo pago, chegarmos juntos para comer nos meus pais que nem sonham que não me apetece fazer amor com o meu marido, até continuo a ter prazer mas não é a mesma coisa, nem pensam nisso em relação a mim, detestam pensar nisso em relação a mim porque continuo a ser menina para eles, se a minha mãe
- Está tudo bem entre vocês? respondo logo que está tudo bem, não se preocupe, nunca esteve tão bem e depois os miúdos graças a Deus são óptimos, tive imensa sorte, sabia, não trocava o que tenho nem por uma mina de ouro, a minha mãe, desconfiada
(aquele instinto das mulheres que ela, apesar dos setenta e três anos, ainda não perdeu)
- Palavra de honra?
enquanto o meu pai e o meu marido jogam às damas e nós na cozinha, em voz baixa, vejo-os daqui debruçados para o tabuleiro, no caso de perguntar à minha mãe e não pergunto, é evidente
- Está tudo bem entre vocês?
ela de súbito quieta, da minha idade e quieta, idêntica a mim
- Está tudo bem, não te preocupes
e não está tudo bem pois não, diga lá, nunca esteve tudo bem e agora é tarde para recomeçar a vida, filha, repara no meu corpo, no meu cabelo, nas minhas pernas, na minha cara, na minha pele, repara como envelheci, nem acredito quando me vejo ao espelho, ao nasceres pensei
- Acabou-se
e desisti, percebes, desisti, mas aparte ter desistido tudo bem, viste o actor daquela série da televisão, filha, talvez não acredites mas já me aconteceu que, não ligues, era uma conversa parva, o que é que me deu hoje, há alturas em que me torno uma adolescente tonta, que ridículo, uma adolescente de setenta e tal anos, que palermice, há alturas, lá ia eu continuar com a conversa, o que me preocupa é que tu estejas bem, a única coisa na vida que me preocupa é que tu estejas bem, o resto não tem importância, que tu estejas bem por mim que não espero seja o que for, passou muito tempo, entendes, demasiado tempo e não há tempo para mim hoje em dia, chega acontecer, vê só a estupidez, chega a acontecer imaginar-me morta e não é inteiramente desagradável, calcula, porque, pensando um bocadinho nisso, desde que me tornei mulher quando é que foi bom viver?
António Lobo Antunes, VISÃO [23 de Agosto de 2012]
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