deus é uma cobiça que temos dentro de nós. é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante. deus é uma inveja pelo que imaginamos. como se não fosse suficiente tanto como se nos põe diante durante a vida. queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe nem vai existir. e também inventamos deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. é tão mais fácil gerir os vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. é tão mais fácil se esta ideia for vendida a cada pessoa com a agravante de se lhe dizer que, um dia, quando morrer, esse mesmo sinistro ser virá ao seu encontro para o punir ou premiar pelo comportamento que houver tido em todo o tempo que gastou. e a comunidade respira mais de alívio por saber que assim estamos todos policiados da melhor maneira, temos um polícia dentro de nós, um que sendo só nosso também é dos outros e, a cada passo, pode debitar-nos ou acusar-nos e terminar o nosso percurso com facilidade. eu sei que a humanidade inventa deus porque não acredita nos homens e é fácil entender porquê. os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros. e quanto mais assim for, quanto menos acreditarmos uns nos outros, mas solicitamos o policiamento, e se o policiamento divino entra em crise, porque as mentes se libertam e o jugo glutão da igreja já não funciona, é preciso que se solicite do estado esse policiamento. que medo o de voltarmos ao tempo de uma polícia para costumes e convicções. Que medo se voltamos a temer os vizinhos e os vizinhos nos puderem entregar por ideias contrárias. que medo se nos entra outro filho-da-puta no poder, a censurar tudo quanto se diga e a mandar que pensemos como pensa e que façamos como diz que faz. que medo de tudo se em tudo quanto os homens fazem vai a vontade torpe de ultrapassar o outro, poder mais do que o outro, convencer o outro de que fica bem no andar de baixo e depois subir, subir o mais sozinho possível, porque ganhar acompanhado não satisfaz ninguém. estamos a fazer tudo errado agora, sem valores, sem medo da igreja, sem um fascismo que nos regule o voluntarismo. estamos como que sozinhos da maneira errada. mais sozinhos do que nunca, a ver a coisa passar sem sabermos muito bem em quem confiar. e nisto, é verdade, pressupomos que todos são bons homens, mas a cabeça de alguns, senão a de todos, tem de estar a cozinhar muito do esquisito que para aí acontece e se sente. muito do esquisito que nos impede, mais e mais, de acreditar nos homens.
e a lei, essa coisa sensível que gosta de nós e se preocupa com o estarmos felizes e confortáveis, comove-me. põe-se à espreita dos gestos todos e salta-nos em cima com entusiasmo se lhe parece que nos arrogamos mais espaço do que o esperado, ou se simplesmente queremos tomar uma decisão sozinhos, tragando o que é nosso, sem ter de dar conta aos outros do que é nosso, do que toda a vida foi nosso e, agora, é sempre por percentagem do estado também. […]
Valter Hugo Mãe, a máquina de fazer espanhóis
Encontro JMC sentado num banco de jardim. Está recatado, em solene solidão, como se só ali, em assento público, encontrasse devida privacidade. Ou como se aquele fosse seu recinto de toda a vida morar. Em volta, o tempo intacto, só com horas certas.
Nunca soube o seu nome por extenso. Creio que ninguém sabe, nem mesmo ele. As pessoas chamam-no assim, soletrando as iniciais: jota eme cê.
Saúdo-o, em inclinação respeitosa. Ele ergue os olhos com se a luz fosse excessiva. Um sutil agitar de dedos: ele quer que eu me sente e o salve da solidão.
- Lembra que sentamos neste mesmo lugar há uns anos atrás?
- Recordo, sim senhor. Parece que foi ontem.
- O ontem é muito longe para mim. Minha lembrança só chega às coisas antigas.
- Ora, o senhor ainda é novo.
- Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando velhices.
E deixamo-nos, calados. Vou lembrando os tempos em que este homem magro e alto desembocava neste mesmo jardim. Acontecia todo o final de tarde. Recordo as suas confidências. Que ele, sendo devidamente casado, se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres. Não há dedos para as contar, todinhas, dizia.
- A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas...
Sempre que fazia amor com uma delas não regressava diretamente a casa. Ia, sim, para casa de sua velha mãe. A ela lhe contava as intimidades de cada novo caso, as diferentes doçuras de cada uma das amantes. De olhos fechados, a velha escutava e fingia até adormecer no cansado sofá de sua sala. No final, tomava nas suas as mãos do filho e ordenava que ele tomasse banho ali mesmo.
- Não vá a sua mulher cheirar a presença de uma outra - dizia.
E JMC se enfiava na banheira enquanto a velha mãe o esfregava com uma esponja cheirosa. Acabado o banho, ela o enxugava, devagarosa como se o tempo passasse por suas mãos e ela o retivesse nas dobras da toalha.
- Continue, meu filho, vá distribuindo esse coração seu que é tão grande. Nunca pare de visitar as mulheres. Nunca pare de as amar...
- E o pai, o pai sempre lhe foi fiel?
- Seu pai, mesmo leal, nunca poderia ser fiel.
- E por quê?
- Seu pai nunca soube amar ninguém...
Agora, tantos anos passados, quase não reconheço o mulherengo homem alto e magro.
- Desculpe perguntar, JMC. Mas o senhor ainda continua visitando mulheres?
Ele não responde. Está absorvido, confrontando unhas com os respectivos dedos. Ter-me-á ouvido? Por recato, não repito a pergunta. Após um tempo, confessa num murmúrio:
- Nunca mais. Nunca mais visitei nenhuma mulher.
Uma tristeza lhe escava a voz. Me confessava, afinal, uma espécie de viuvez. Foi ele quem quebrou a pausa:
- É que sabe? Minha mãe morreu...
Meu coração sapateia, desentendido. Pudesse haver silêncio feito da gente estar calada. Mas esse silêncio não há. E nesse vazio permanecemos ambos até que, por entre o cinzentear da tarde, surge Dona Graciosa, esposa de JMC. Está irreconhecível, parece deslocada de um baile de máscaras. Vem de brilhos e flores, mais decote que blusa, mais perna que vestido. Me soergo para lhe dar o lugar no banco. Mas ela se dirige ao marido, suave e doce:
- Me acompanha, JMC?
- E você quem é, minha flor?
- O meu nome você me há-de chamar, mas só depois.
- Depois? Depois de quê?
- Ora, só depois...
De braços dados, os dois se afastam. A noite me envolve, com seu abraço de cacimbo. E não dou conta de que estou só.
Mia Couto, O Fio das Missangas
A ILHA
“Finalmente sozinho!”, pensou e espreguiçou-se. A sensação de assombro, causada pela solidão, foi substituída pelo sentimento de segurança até então desconhecido. Tudo lhe parecia familiar; olhou à volta como um proprietário que, depois de uma longa viagem, regressa à sua terra, donde não pode ser expulso porque é ele o autor das regras e ordens preestabelecidas. Começou a movimentar-se timidamente neste novo lar, entre o céu e o mar. “Tão familiar!”
[…]
“O mar não é capaz de sofrer”, pensou enquanto observava o mar com os braços cruzados. “Mas então com que finalidade foi criado?” Aquele mundo vazio, há muito privado de sentido e de finalidade, estendia-se indiferente à sua volta. “Só a razão é capaz de doer.” A dor fervilhava na costa, piscava os olhos luminosos, pestanejava através dos bastiões maciços, mas ali, entre o mar e o céu, era ele que representava o último nervo que ainda se movia e sentia. À sua volta tudo era apático e penumbroso. Tossiu, tapou a boca com a mão, porque naquele silêncio estranho o som criou um eco múltiplo. Cada movimento, os seus passos, o ruído das pedras por baixo dos pés pareciam estridentes como se um amplificador de som transformasse cada suspiro em trovão e o espalhasse pelo mundo. Askenasi mexeu-se com cuidado, evitando fazer barulho, e depois sentou-se em cima da rocha quadrada a escutar o mar. “Um texto estranho”, pensou, “escrito numa língua monótona, que se calhar não conhece a conjugação verbal. É apenas ritmo.” Como alguém que começa a entender certas palavras de uma língua estrangeira, inclinou-se para a frente com expectativa inquieta e escutou aquele ritmo esmagador. “Diz algo, sem dúvida, mas, se calhar, não são os ouvidos ou a razão que nos ajudam a percebê-lo.” Conteve a respiração e continuou a escutar. “Talvez existam textos que não se podem traduzir para francês ou latim.” Um dia deveria também livrar-se do vocabulário limitado da razão, daqueles milhares de conceitos que guardam cuidadosamente um segredo, incapazes de interiorizá-lo ou expressá-lo completamente. “Mas o que é que quero ainda alcançar com a razão?”, perguntou assombrado. “A razão só se pode usar no outro lado, na costa, ainda serve para alguma coisa, pode orientar-se com ela, como com as unidades de medida ou com os regulamentos. Mas aqui de pouco me serve… O que aconteceria se alguém viajasse até Marte com um despertador ou com uma apólice de seguros no bolso? Se calhar em Marte não há tempo para medir.”
SÁNDOR MÁRAI, A Ilha
(Sándor Károly Henrik Grosschmid) nasceu em Košice
(Hungria, hoje no território da Eslováquia), em 11 de Abril de 1900,
e morreu em San Diego (E.U.A), em 22 de Fevereiro de 1989
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