Terça-feira, 30 de Julho de 2013

O Amor faz do outro sagrado

Recebi esta fotografia por e-mail. A informação é escassa e nem sequer sei se é verdadeira. Verdadeiro e belo é o que diz e o que nos faz sentir. É isso que lhe dá toda a importância. Não consegui impedir-me de o registar aqui.

 

 

Esta menina perdeu a mãe na guerra. No pátio do orfanato, desenhou-a com giz e aconchegou-se num colo que já não existe, deixando de fora as sandálias, em sinal de respeito, como manda a cultura oriental quando se entra num lugar santo.

 

O AMOR FAZ DO OUTRO SAGRADO.

 

publicado por Elisabete às 23:30
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Segunda-feira, 29 de Julho de 2013

Porque, ultimamente, não tenho andado bonita

 
 

Dito Mariano amava Dulcineusa? Essa era a minha crença, o particípio sem passado. Recordava-me das conversas entre eles, já velhos que eram. A Avó Dulcineusa sentada na berma da cama:

- Você já não sonha comigo, homem?

- Sonho, sim.

- Mentira, não sonha.

- E como sabe, Dulcineusa?

- Porque, ultimamente, não tenho andado bonita.

No seguido, logo ele se levantava e a abraçava como se a tivesse visto pela primeira vez. E os seus se milagravam. No rosto de Dulcineusa se apagava a ruga. Essa mesma ruga que sublinha agora a sua ansiedade.

- Me diga, meu neto: ele dizia que me amava?

- Quer dizer, falava de modo indirecto.

- Eu preciso que me conte isso, meu neto. Lhe explico: este enviuvar me parece quase um casamento.

- Um casamento?

- É o que eu sinto, sem Mariano. A alegria de só agora casar com ele.

- Isso não é pecado, Avó. Até é bonito…

- Me apetece, pela primeira vez, subir a bainha, baixar o decote, usar pó-de-arroz.

O modo como os dois se encontraram era história na família. Mariano repetia vezes sem conta esse episódio. Mas com variações tantas que nunca se podia empenhar crédito.

- Fosse eu assim, velho, quando lhe encontrei e eu lhe teria amado melhor. Não tanto, mas melhor, muito melhor.

Dulcineusa fingia um desdenho:

- Há tanta vizinha e logo você foi notar em mim.

Mariano já não seria muito moço quando a conheceu. A Avó era operária na fábrica de caju, descascadora dos ácidos frutos. Nessa altura, as mãos delas ainda não tinham sido comidas pelas corrosivas seivas do caju. Dito Mariano possuía um gato, treinado para os indevidos fins. O bichano era lançado em plenas vielas nocturnas e se infiltrava pelos quintais até detectar uma moça solteira, disposta e disponível. Durante consecutivas noites, o gato insistiu em se imiscuir na casa de Dulcineusa. Não havia dúvida: era ela a escolhida. Mariano começou a aparecer no pátio de Dulcineusa com desculpa de comprar castanha de caju. Ela ainda era magrita, bem cabida nos panos, lenço adornando a cabeça, brinco de missangas na orelha.

Dulcineusa sorria, matreiramente, quando o via surgir. Mas ele não se afigurava em fraqueza. Ombros empinados, pescoço hasteado. A frase lustrada, tão bem escolhida quanto o sapato. A Avó, mesmo assim resistia:

- Não sou namorável, Mariano.

- E se eu lhe pedir um beijo?

- Vou demorar a vida inteira para lhe dar esse beijo.

- Eu espero, então.
 
Mia Couto, um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
publicado por Elisabete às 16:16
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Domingo, 21 de Julho de 2013

A crise está a atacar estruturas civilizacionais

 

E se os portugueses, fartos de verem o seu futuro roubado, optassem em referendo pelo fim do país? É desta situação-limite que parte Despaís", o novo romance de Pedro Sena-Lino, situado em 2023. "Espelho negro" do país, e não "uma sátira à conjuntura portuguesa actual", o livro é uma "resposta" do autor a quem conduziu o país à presente situação.

 

Há uns anos este seu romance seria considerado pós-apocalíptico. Hoje, quando muito, é hiper-realista. Só esta transformação diz muito do estado a que chegámos enquanto país?

Mais do que pós-apocalíptico ou hiper-realista, tentei criar um romance seguindo os princípios da história virtual: alterando apenas alguns factores. Comecei a escrevê-lo há quase três anos, com uma enorme pausa pelo meio. Talvez isso explique a “transformação” de que fala. Para mim, foi um exercício quase matemático: como a manutenção de algumas variáveis e a alteração de outras podia gerar essa situação. Hoje fala-se no “segundo resgate”, no romance já vamos no quinto. Mas o que me importa mais é perguntar se de facto o conceito de país, assente no princípio de estado-nação, ainda faz sentido. E sobretudo, se serve aos cidadãos. Veja: a crise está a atacar as estruturas civilizacionais: cada um está preocupado consigo, e a União Europeia consigo própria. Mas quem estão a ser atacados são os Estados fracos e periféricos. Eles estão a servir-nos como representantes do bem comum, como “agregação” de cidadãos, como explicava Rousseau? Criámos o Estado e defendemo-lo durante gerações porque assegurava o bem comum e o progresso de cada um e de um todo. Será o caso hoje? Essa é a pergunta de biliões de euros.

 

Com a deterioração crescente das condições económicas sociais e políticas de Portugal, admite que o cenário de dissolução do país descrito no livro possa ter lugar muito antes de 2023?

Sou um escritor, não sou vidente (como parece que o são muitos comentadores políticos). Aliás, essa caricatura dos comentadores é uma das linhas de força da ironia que constrói o romance: nem terminam uma frase! Numa sociedade cultivada, os comentadores contribuem com o seu conhecimento e a sua análise para alargar a consciência da opinião pública; não para confundir e acirrar, para manipular segundo programas pessoais, como parece ser o caso em Portugal. É um espelho da falta de qualidade da nossa auto-reflexão. Todavia, o romance quer ser uma espécie de espelho negro: o que podemos fazer, o que podemos alterar, para que isto não seja possível? A uma crise que nos roubou o futuro e nos prendeu a um presente imediato de sobrevivência, estamos a responder a ela com as mesmas armas. A questão deve ser, parece-me: já não somos soberanos praticamente em nada; o estado-nação português, associação de todos os portugueses, está a ser destruído pelo financeirismo, “é um nome vazio que responde pela dívida”, como diz uma das personagens do livro. Não poderemos fazer voltar esta crise de identidade e soberania a nosso favor? Estive há anos num congresso no meio dos Estados Unidos, e muitas pessoas me diziam: «Ah, a União Europeia, um Parlamento, uma moeda comum; isto para nós é um milagre, como é que vocês venceram milénios de guerras e se uniram!». Não vemos isto. A Europa unida é uma potência poderosíssima, sobretudo porque o seu poder assenta num conjunto de valores civilizacionais e culturais. É isto que estão a tentar atacar, e é contra isto que creio, como criador europeu que sou, que deveremos criar uma solução. Que já não nasce dos políticos, mas que deve nascer, entre outros aspectos, da mais velha aliança da Europa: a do povo com a arte.

 

O projecto de “Despaís” nasceu, antes de mais, da sua insatisfação enquanto cidadão pelo rumo que o país tem seguido?

Como criador (e como cristão) pergunto-me todos os dias sobre o que posso fazer pelo meu tempo. Os criadores mantêm o enorme espaço entre a realidade e a ideia, entre o quotidiano e a memória, entre a ficção e o real. É nesse tremendo espaço que se transcende o presente limitado, e se constrói o futuro. Quero deixar claro que o objectivo deste romance não é uma provocação. Mas que se insere numa linha bem mais clara do meu programa de trabalho enquanto romancista. O que pretendo fazer com o romance, com este e os que se lhe seguirem, é questionar o significado de objectos civilizacionais que consideramos inquestionáveis: em 333, o que é um livro e as redes que estabelece, e como essas redes e esse poder simbólico se mantêm para além do desaparecimento do próprio livro. Em Despaís, com o próprio objecto que é um país assente no conceito de Estado-nação. Num próximo romance, o conceito de estadista, de cabeça e representante do Estado, como produto autofágico do próprio Estado.

 

Não teme ser acusado de catastrofista? Afinal, ao longo de quase um milhar de anos foram muitas as crises por que o país já passou, algumas das quais provocaram mesmo perdas de independência...

Portugal tem inscrito na sua história um movimento duplo, estaticidade e expansão: de resignação, de deixar andar, e outro de saída de crise. Portugal resolveu sempre isso concebendo a expansão como territorial, com uma dinâmica imperial. Não é o caso agora, essas estruturas acabaram, mas continuam fantasmaticamente activas. Trata-se de saber utilizar esta crise para recriar totalmente o país. Muito que se passa hoje é bem maior do que uma crise financeira da qual temos culpas muito limitadas: é uma crise de identidade nacional. Portugal não resolveu os seus complexos imperiais, tal como a Grécia, a Espanha e Itália: são estes países, no furacão da crise, que têm de repensar-se. Máquinas estatais pesadas, alimentadas por complexos de superioridade esmigalhados e que produzem fantasmas extremamente poderosos. Ainda mais fatalmente, no caso português, são os países de que foi potência colonial que agora compram o país. Todo o imperialismo é um boomerang – os Estados Unidos ainda não compreenderam isso, e não terão estrutura para viver essa situação quando lhes chegar. Grande parte da situação actual revela que Portugal não superou o seu complexo imperialista: ou arrumam-se oito séculos de conquista, na Península Ibérica e depois pelo Oceano fora, em trinta anos de uma revolução pacífica e cordata, nem marxista nem social-cristã? Ou nesta social-democracia sul-europeia, um fantasma assassino e híbrido, que não funcionou nem em Espanha, nem em Itália, muito menos em Portugal. O Estado, diz Engels, é um produto de uma sociedade num certo estádio de desenvolvimento. Gerámos esta III República nos escombros do Estado Novo e da Descolonização, com teorias vagas e improvisadas de Democracia e Desenvolvimento. Não trabalhámos o fim do império. Passámos do complexo de superioridade colonial que o Estado Novo aumentou, para um complexo de inferioridade europeu que alimentou uma sociedade sempre ansiosa de ter ilusões de riqueza para compensar os seus complexos. Eduardo Lourenço estudou-o n’ O Labirinto da Saudade. Agora estamos a vivê-lo. O país foi-nos devolvido na sua dimensão de condado portucalense ingerível, dependente de um poder maior – a União Europeia – e da vigilância de outras entidades. Somos um protectorado. Outro aspecto. Veja os grandes momentos da história da Europa: há sempre obras de arte que impulsionaram esta mudança. Espero que este livro possa ser um grão de areia na engrenagem.

 

O livro não possui um protagonista, pelo menos no sentido que habitualmente lhe conferimos, mas sim vários. Portugal acaba por ser, nesse sentido, o verdadeiro protagonista deste romance?

Portugal, sim, mas enquanto estado-nação. Repare que no romance, quando é proposto o referendo, este não assenta sobre o fim da “República Portuguesa”, ou sobre o sistema parlamentar, mas assim mesmo num sentido genérico: o fim de Portugal. Quis com isto ironizar com a distância que os Portugueses têm hoje do sistema político. De tal forma vivemos uma crise de representação, de tal forma disruptiva, que as fronteiras entre o país e o modelo de Estado que temos estão esbatidas. A personagem principal, por isso, é Portugal como Estado-nação, asfixiado por uma crise e também pelo seu excessivo sistema de mitos.

 

Há acusações bastante certeiras e severas à classe política. A provocação com que o livro vem rotulado advém também daí?

Impreparação, servilismo, incapacidade de servir a causa pública: foram estes os traços de identidade dos políticos que desenhei no romance. Qualquer semelhança com a realidade é uma wake-up call. Mas também pergunto: o que acontece a um cidadão que rouba outro? Que rouba um banco? É julgado e preso. O que acontece a um servidor do Estado que rouba o Estado, ou seja, o conjunto de todos os cidadãos? Vai para uma empresa pública repetir o feito. Qual é o crime pior? E a punição? Como veículos do poder do Estado, a pena deveria ser bem superior.

 

O exercício de encontrar equivalentes na política portuguesa actual dos personagens do livro faz sentido? Dito de outro modo: qualquer semelhança não é mera coincidência?

Um romance é uma obra de arte, como a Torre de Belém, uma canção de David Bowie, ou a Gioconda. Encontrar num quadro de Da Vinci ou nos Concertos Brandenburgueses de Bach os senhores Sidónio Pais ou Helmut Köhl fará sentido?

 

Das várias medidas de austeridade que têm vindo a ser adoptadas, quais as que, como cidadão, lhe pareceram mais chocantes?

Não posso responder a essa questão. Deve perguntar aos economistas, responsáveis pela verdadeira ciência oculta assente em previsões e modelos que falhou redondamente nas últimas dezenas de anos. Já reparou que neste momento vivemos num sistema económico financeirista onde não sabemos quais são os limites da ficção e da realidade? Onde acaba a economia real e onde começa a economia virtual? Pergunto-me também o que é a economia real: é a bolsa de valores, são os mercados informáticos, irreais, da dívida, ou o resultado do trabalho de um cidadão integrado num grupo? O que devemos fazer é retraçar o caminho que nos levou até aqui. Fomos escravizados com um modelo de crescimento falso, que levou a um consumismo que agora nos mata. As pessoas pensavam gerar a sua segurança, e agora é uma prisão, como acontece com o mercado imobiliário. Isso levou a um predomínio do ter pelo ser, do parecer pelo ser, que se liga de uma forma particularmente agressiva em Portugal pelo complexo imperial que está longe de ser resolvido. Porém, uma nota apenas: o ataque aos pensionistas é inqualificável. Repare: o Estado guardou uma parte do trabalho mensal dos trabalhadores durante anos, como guardião do bem comum. E agora retira esse valor para pagar os seus excessos. Diga-me se isto faz sentido. Quando, ainda para mais, são as reformas dos pensionistas que estão a segurar a economia: quantos pais pagam as rendas dos filhos, quantos avós as escolas dos netos? Quantas famílias almoçam e jantam à mesa dos avós?

 

 

 

Vive na Alemanha, país que, aos olhos da opinião pública, surge como um dos responsáveis pela aplicação da austeridade aos países do Sul. Impera a ideia entre os alemães de que estes povos são pouco trabalhadores e que a situação actual é consequência de excessos vários cometidos ao longo de muitos anos?

A Alemanha é uma realidade sócio-política complexa. O muro ainda impera de formas permanentes, duráveis e inimagináveis. Quero dizer com isto que não podemos fazer generalizações de um país sobre outro, porque não há uma voz única, e no caso alemão, isto é ainda mais uma dinâmica irresolvida. Temos a ideia de que a reunificação foi automática, quando é um processo lento; como temos a ideia de que Portugal viver apenas com o seu território europeu é uma coisa simples, quando viveu alastrado pelo oceano fora quase o triplo do tempo do que viveu apenas no seu território europeu. É certo que a Alemanha foi a responsável pela 2ª guerra mundial, com excessos inqualificáveis. Mas também é certo que fizemos pagar à Alemanha uma conta de dezenas de anos. O alemão comum é rigoroso no seu trabalho, nas suas contas, no respeito pelo próximo: numa economia de moeda comum, é demasiado pedir isso aos outros vizinhos? É igualmente importante separar povo e Estado. Nunca me senti, mas nunca, discriminado por ser Europeu do Sul. Em Berlim, todas as diferenças são operativas, constrói-se a partir delas. Acho, porém, bem mais relevante pensarmos que há outro tipo de diferenças culturais; que são factores que contribuem para esta crise, como a herança do catolicismo e do protestantismo, como concepções diferentes do que é o Estado. Uma União enfrenta estas diferenças.

 

Tudo o que temos vindo a assistir nos chamados países sob assistência financeira vem provar que não só a solidariedade entre os países da UE é uma miragem, como o próprio conceito de construção europeia não passa de uma utopia?

Pelo contrário: este é o momento para uma construção europeia alargada. Se a Comissão organizasse um grande referendo europeu a perguntar pelo reforço de poder das instituições europeias eleitas democraticamente, não duvide de uma esmagadora resposta positiva. Em Berlim, convivo com muitos expatriados: sou mais próximo de um alemão da antiga RDA do que de um americano; de um polaco do que de um brasileiro, de um finlandês do que de um mexicano. A maioria dos cidadãos europeus de 35-40 anos para baixo considera-se, sem problemas, mais “europeia” do que “alemã”, “francesa” ou “portuguesa”. Por outro lado, assistiremos a um cenário assustador nas próximas eleições europeias, em que os partidos contra a UE correm o risco de terem uma representação enorme no Parlamento Europeu. Mas, claramente, isto não é uma votação contra a UE, mas contra o que os nossos políticos entendem da UE, e dela fizeram. A haver uma revolução europeia, é pela integração, não pela desagregação.

 

Politicamente sempre foi muito activo ou os acontecimentos dos últimos anos fizeram despertar essa atenção?

Não sou politicamente activo. Intervenho como artista, com a consciência de que tenho de servir o meu tempo e os meus semelhantes com o meu trabalho.

 

Aos que dizem que não há alternativa à austeridade o que responde?

Uma história: o médico disse ao meu sobrinho de 13 anos que tinha de perder peso para poder crescer. Mas também não lhe disse para arrancar o estômago. Estamos a ser demasiado maniqueístas nesta crise: ou austeridade ou investimento. Não é essa a questão, mas sim: planificação. Estamos num mercado comum. O que é que Portugal pode fazer bem e que a Europa não tem? Veja como o Marquês de Pombal percebeu isso no século XVIII.

 

Em termos formais, “Despaís” é um romance substancialmente diferente do anterior, “333”. Era a especificidade deste livro em concreto que exigia o tom que acabou por adoptar (menos experimental e mais directo) ou é consequência de uma mudança natural enquanto autor?

Tenho, como já referi, um objectivo programático como romancista. Porém, quando crio cada livro, espero que seja o livro a determinar o tom que pretende. O livro deve ensinar-me como posso eu servi-lo melhor. Os livros não nos pertencem nunca: sou mais um maestro do que um compositor, a seguir a pauta de uma ideia complexa que surgiu da minha experiência e do tempo em que vivo. Lembro-me sempre do célebre maestro Leopold Stokowski (o único maestro que falou com o Mickey Mouse, em Fantasia de Walt Disney), que dizia que não dirigia a orquestra, mas a seguia. Posso porém confidenciar que este livro correspondeu a uma série de equilíbrios difíceis que tentei articular. A ironia é um meio, não é um fim em si. Isso aprendi com os experimentalistas portugueses, como Ana Hatherly e Alberto Pimenta.

 

Vários escritores, como Miguel Real têm defendido que os intelectuais estão alheios dos problemas sociais, “dormitando narcisisticamente na sua concha”. O seu livro é um contributo no sentido de provar que há quem esteja alerta?

Miguel Real tem produzido uma obra não apenas ensaística que é de uma importância fulcral para a consciencialização de algumas ideias que andam arredadas da produção artística nacional. Essa sua chamada de atenção, como outras, parece-me de uma pertinência fulgurante. Porém, como notou Pierre Bourdieu, a “ilha sagrada da arte” está em muitos aspectos refém da sociedade capitalista, de uma Economia que deixou de ser “uma coisa em si” para tornar-se “uma coisa por si”. A crise actual pede também uma reformulação do que é o conceito de artista, como o próprio Bourdieu estudou relativamente à mudança que nesse campo se operou do século XIX para o Modernismo. O que quero dizer é que, se termos como “arte realista” deixaram de fazer sentido, a missão social do escritor também. Estes últimos 40-50 anos foram de pura apropriação da arte pelo mercado, que se estendeu ao papel dos escritores. Chegou o momento em que os produtores artísticos produzam não só obras, mas uma nova identidade para o artista. Ainda não sei o quê nem como, mas é para mim certo que neste momento de descivilização, em que perdemos a cada dia séculos de conquistas pelo bem comum, o artista deve desmontar os próprios princípios da civilização. Mas tudo está ainda por inventar, e é essa a grande força da Europa: reinventar-se do nada depois de cada devastação.

 

Entrevista de Sérgio Almeida (Jornal de Notícias)

publicado por Elisabete às 23:07
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Sábado, 13 de Julho de 2013

Os alemães não percebiam nada do mundo

Os negros não entendiam o que lhes estava a acontecer. Ninguém os tinha avisado das conclusões da Conferência de Berlim e que a África fora dividida entre seis nações europeias. De repente, viram chegar soldados brancos com mulas, carroças e armas, que mandavam carregar cunhetes; de seguida, obrigaram-nos a abrir estradas e a cravar no chão linhas de caminho-de-ferro ao longo de infinitas distâncias, que atravessavam os seus reinos e, para seu espanto, também os dos seus inimigos. Vieram feiticeiros de barbas e cobertos da cabeça aos pés destruir os seus deuses e obrigarem-nos a adorar outros, ensinarem-lhe novas línguas. Exigiram-lhes trabalho, expulsaram-nos das terras, substituíram as pequenas vacas por outras gordas e enormes. Viram-se varridos e enxotados como as folhas do terreiro das aldeias quando chega o vento forte. Quiseram resistir e os brancos foram pacificá-los, isto é, obrigá-los, pela força de zarabatanas que disparavam relâmpagos mortíferos, a obedecerem a chefes desconhecidos.

As opiniões do capitão Vaz sobre a presença europeia em África podiam soar a sacrilégio na terra da sede do Seminário das Missões, onde eram preparados os jovens que iriam deixar crescer as barbas negras, vestir uma sotaina branca para a tripla missão de cristianizar, civilizar e aportuguesar os selvagens e donde regressariam para professores, depois de dezenas de anos nos trópicos, com as barbas brancas, para retomarem a sotaina negra metropolitana. Eram, no entanto, curiosamente, partilhadas pelo padre Nunes, o velho missionário reformado, que tinha vindo almoçar nesse dia e se deixara para a sesta, para a conversa e para o lanche. O capitão e o padre difundiam impressões sobre África como se atirassem respingos de água benta do hissope. A coerência interessava-lhes pouco. Estavam de acordo em que o melhor para todos seria cada um viver a sua vida. Se os europeus não queriam fazer em África aquilo que tinham feito na América: instalarem-se lá, reproduzirem-se e reduzirem os indígenas ao mínimo, deviam então evitar distribuir armas de fogo aos negros. Daí a nada estariam a virar-se contra quem os armou.

Atribuíam aos alemães e à sua incompreensão dos outros povos a culpa do que viria a ser o colonialismo e do futuro atribulado para as relações entre os europeus e os africanos. Concordavam que “os alemães não percebiam nada do mundo, nunca tinham saído por mar da sua terra. Julgavam África uma mina, um filão de minério!”

Carlos Vale Ferraz, A Mulher do Legionário



publicado por Elisabete às 13:06
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Sexta-feira, 12 de Julho de 2013

A década ruminante

 

 

A anorexia que se tornou sinónimo de sucesso atinge agora a política e todas as outras áreas da criação humana – porque a política, quando existia, era principalmente uma actividade criativa, exigindo a capacidade de análise do real, a imaginação e o risco necessários, por exemplo, a um projecto de arquitectura.

A austeridade alimentar é apenas uma das consequências dessa pavorosa doença juvenil: a causa prende-se com uma obsessão pela perfeição que apaga tudo quanto existe no mundo, e a própria humanidade.

O anoréctico começa por sentir um êxtase de prazer no controle absoluto sobre o seu corpo; o sofrimento da privação transforma-se em celebração do poder absoluto.

O esboroamento do Bloco de Leste amoleceu a política, bem como a dificuldade em lidar com a nova ameaça dos fundamentalismos religiosos, imunes a qualquer negociação racional e apostados numa via de extermínio do inimigo.

E isso moldou uma geração de governantes tecnocratas, que se agarram aos números como se neles estivesse a verdade e a luz. Ironicamente, os números explodiram, demonstrando que a bomba do capitalismo selvagem é ainda mais mortífera que as da Al Qaeda.

Pensar-se-ia que a guerra iniciada pela especulação financeira internacional há alguns anos faria ressuscitar a política, mas não foi isso que aconteceu: o mundo vergou-se ao império dos banqueiros.

A Europa desmorona-se porque, em vez de enfrentar a guerra aberta pela especulação financeira, submete-se aos seus ditames e abdica dos seus princípios, abandonando os seus cidadãos e a própria noção de cidadania que a criou.

Os governantes que vingam são os que falam grosso às populações e gaguejam, deslumbrados, perante os senhores do dinheiro.

O desemprego endémico e o extermínio do Estado Social não são caminhos para o bem-estar nem para a tranquilidade das nações.

Isto já foi amplamente provado pela História e é lembrado agora por variados economistas – e, no entanto, a Europa persiste na receita da anorexia global. Acresce que a anorexia vai esvaziando a imaginação e desfazendo as conexões com o real: não produz mais do que uma interminável ruminação sobre o vazio.

No cinema como nas outras artes, sucedem-se as cópias de cópias: a enésima versão das histórias de há 50 anos, ou a sequela da sequela da sequela do grande sucesso da década de 80.

O documentário e o espectáculo da barbárie em espaço fechado substituem, nas televisões, a ficção e o pensamento. Nas editoras, substituem os directores literários por gestores de marcas. E a política substitui as ideias pela subserviência aos mercados.

Dizemos: «Já não há líderes como antigamente». Então o que se passou? Morreram todos, ou foram afastados – da política, dos jornais, das televisões?

No mundo da anorexia, os não-anorécticos são excrescências inestéticas.

A esquerda e a direita não importam, porque nada importa para além do mando e do controle.

O que resta da esquerda embarca no discurso anoréctico, tido como o único ‘sério’ e ‘responsável’, para provar que não se perdeu na tolerância extrema face ao fundamentalismo islâmico, que de facto a perdeu. O que resta da direita tenta remendar os buracos da sofreguidão neo-liberal com a cola-tudo da caridade e das boas intenções. Mas a anorexia é uma doença mortal.

 

Inês Pedrosa, in SOL, 12 Julho 2013

 

 

publicado por Elisabete às 15:52
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Domingo, 7 de Julho de 2013

Esse estranho jogo humano

 

Lembrava-se de quando tinha vindo do Sandžak, um rapazito de catorze anos, faminto, com umas alpergatas todas gastas. Fizera então um acordo com o velho Petar, para servi-lo em troca de comida, um fato e dois pares de alpergatas por ano. E olhava pelas crianças, ajudava na loja, acarretava água e tratava dos cavalos. Dormia por baixo da escada, num cubículo estreito, sem luz e sem janela, onde nem sequer podia estender-se. Aguentou aquela vida dura e, quando chegou aos 18 anos, passou a trabalhar só na loja, como “assalariado”, e o lugar que deixou vago passou a ser ocupado por um outro rapazinho do Sandžak. Foi então que ele veio a conhecer e a compreender bem o sentido de poupar e a sentir a impetuosa e encantadora paixão pelo enorme poder que a poupança dava. Durante cinco anos dormiu num pequeno quarto, nas traseiras da loja. Durante esses cinco anos nunca acendeu o lume nem se deitou com uma vela acesa à cabeceira. Tinha 23 anos quando o patrão lhe arranjou casamento com uma boa e abastada rapariga de Čajniče. Como ela era filha de um comerciante, eram agora dois a poupar. Veio então o tempo da ocupação austríaca e, com ele, uma maior actividade comercial e uma maior possibilidade de lucros, mas também mais coisas em que gastar. Ele aproveitou o mais possível os lucros e evitou as despesas. E assim arranjou meios para montar uma loja e começar a ganhar. Naquele tempo ganhar não era uma coisa difícil. Muita gente havia que ganhava dinheiro facilmente e que o perdia ainda com maior facilidade. O difícil era conservá-lo. Mas ele juntava o seu e cada vez amealhava mais. Quando vieram estes últimos tempos e, com eles, a insegurança e a “política”, Pavle, embora já com uma certa idade, procurou compreendê-los, aguentar-se no balanço e adaptar-se a eles, para os poder atravessar sem prejuízo e sem se envergonhar. Foi vice-presidente da Câmara Municipal, presidente da comunidade religiosa e do Coro Sérvio “Concórdia”, principal accionista do Banco Sérvio e membro do conselho de administração do banco local. Fez quanto pôde para, sem trair o código de conduta da terra, se manter com prudência e integridade entre os opostos que cada dia se tornavam maiores e mais prementes, sem alguma vez deixar que os seus interesses fossem prejudicados, sem entrar em conflito com as autoridades e sem se envergonhar aos olhos do povo. Na opinião da gente de Višegrad, passava por um exemplo inimitável de homem trabalhador, capaz e de bom senso.

Assim, durante mais de metade de uma vida humana normal, ele trabalhara, poupara, preocupava-se e acumulara fortuna, nunca fizera mal a uma mosca, fora delicado para toda a gente, olhando sempre em frente, seguindo, sempre silencioso e empenhado, o seu caminho. E eis onde esse caminho o levara: a estar sentado entre dois soldados, guardado por eles como o pior dos bandidos, à espera que alguma granada ou mina danificasse a ponte para lhe darem um tiro ou o degolarem. Começou a pensar (e isso fazia-o sofrer mais do que tudo) que trabalhara como um mouro, se preocupara e se gastara em vão e que afinal escolhera um caminho errado e que eram os seus filhos e a outra rapaziada que tinham razão, porque os tempos não estavam para medidas e cálculos, ou, quando muito, traziam outras medidas e outros cálculos diferentes; de qualquer maneira, os cálculos dele estavam errados e enganara-se nas medidas.

- É mesmo assim! – dizia Pavle aos seus botões. – Tudo te ensina e obriga a trabalhar e a poupar: a Igreja, as autoridades e até o teu próprio senso comum. E tu obedeces, vives a vida com cuidado e honestidade, ou, melhor, nem vives: é só trabalho, poupança, preocupações, e assim se vai passando uma vida inteira! Mas de repente, tudo se vira de pernas para o ar e chega um tempo em que o mundo faz pouco da razão, em que a Igreja se fecha e se cala, em que a autoridade se torna mera força bruta, em que aqueles que ganharam o seu dinheiro honestamente e com o suor do seu rosto perdem o tempo e o dinheiro, enquanto os mandriões e os selvagens triunfam. Ninguém reconhece os esforços que fizeste e ninguém te ajuda ou te ensina a conservar aquilo que ganhaste e poupaste. Será isso possível? – Mas será realmente possível? – o senhor Pavle fazia constantemente esta pergunta a si mesmo e, não achando resposta, voltava ao ponto de partida, àquilo que estava na origem de todos aqueles pensamentos: a perda de tudo o que possuía.

Por mais que se esforçasse por pensar noutra coisa, não era capaz. Todos os seus pensamentos voltavam sempre ao mesmo. O tempo arrastava-se com uma lentidão mortal. Tinha a sensação de que aquela ponte, que atravessara milhares de vezes sem sequer olhar para ela, agora repousava nos seus ombros com todo o seu peso, como um segredo fatal e inexplicável, como um pesadelo num sono de que não se desperta.

Por tudo isto, Pavle continuava ali amargurado, naquela cadeira, cabisbaixo e de costas curvadas. Sentia o suor brotar de todos os poros por baixo da sua camisa dura, engomada, por baixo do colarinho, dos punhos. O suor jorrava debaixo do fez e corria-lhe pela cara. Mas ele, em vez de o limpar, deixava-o correr e cair em grandes gotas no chão, e parecia-lhe que, com essas gotas, toda a sua vida estava a derreter e a abandoná-lo.

[…]

Mas não era apenas o senhor Pavle que suava assim um suor de sangue e se perdia naquele sono sem despertar. Naqueles dias de Verão, nessa pequena língua de terra que ficava entre o Drina e a fronteira, na cidade, nas aldeias, nas estradas e nas florestas, por toda a parte os homens suavam na procura da morte, a sua ou a dos outros, e ao mesmo tempo fugiam dela, defendendo-se por todos os meios e com toda a força. Esse estranho jogo humano a que se chama guerra tornava-se cada vez mais intenso e tomava conta das criaturas vivas e das coisas inanimadas.

 

Ivo Andrić, A Ponte sobre o Drina

 

publicado por Elisabete às 19:04
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