1968, o ano em que foi possível sentir que alguma coisa terminava. Não tinha um nome para essa coisa. O Ed dizia que era o fim da esperança, e muitas pessoas também o diziam, para onde quer que se fosse. O senhor Eugenides dizia que era a morte da esperança. O senhor Pelowski do cinema também o dizia.
Para a senhora Wolohan era uma outra grande montanha de sofrimento a escalar, de modo e espetar a sua bandeira de coragem no cimo.
Em relação ao Ed, o seu silêncio viu-se completado.
No fim de contas, ele conhecera algumas daquelas pobres pessoas assassinadas, que tinham estado à mesa da senhora Wolohan. Ele falara com elas, elas tinham falado com ele. Ele podia não passar do filho da cozinheira, mas, na América, o filho da cozinheira podia fazer qualquer coisa, e o Ed brilhava como um nascer do Sol em Junho.
Não creio que ele acreditasse que tinha de abrir a balas o caminho de fuga à sua angústia do Vietname. Na verdade, sei que não pensava assim. Fazia parte do corpo de engenharia e especializara-se mais tarde em minas terrestres. Usava um daqueles paus de vedor para as descobrir, madeira de freixo, como se fossem poços. Era um talento que tinha. Montes de camaradas foram implodidos enquanto faziam esse trabalho. Mas o Ed era habilidoso. Almejava pôr em prática essa habilidade, colocar uma coisinha que fosse nos anais da História, muito embora pequenina, a única que possuía. Permaneceu naquele país, do qual apenas me chegavam estranhos vislumbres na televisão pouco nítida a preto-e-branco. Imagino que ele assistia a tudo ao vivo e a cores.
O Ed já não falava muito, agora. Tornara-se um livro fechado na juventude. Eu própria tinha de adivinhar as coisas.
Se entrou em mutismo, foi um mutismo que acabou, mas somente no que toca à condição geral de adolescente desprovido de palavras. Aos dez anos, irradiava uma intimidade bela. Aos catorze, começou uma longa caminhada de volta ao silêncio. Em criança, era comparável à biblioteca de Alexandria, repleta de histórias e curiosidades raras. Depois, parece que a vida consumiu quase todas essas coisas, página a página. Nunca soube, e ainda hoje não sei, se poderia ter feito alguma coisa quanto a isso. Se calhar era só o facto de estar a crescer. De ainda viajar sem bagagem como homem. Mas eu não deixava de sentir que alguma coisa estava a ser objecto de troca, palavra a palavra, até não haver mais palavras, ou somente um punhado delas, em qualquer dos casos.
Retesou-se. Os músculos endureceram e vestiram os ossos. Vivia na sua própria mente, mas eu não sabia, mas eu não sabia o que lá estava guardado, porque a porta estava aferrolhada. Não fiz barulho, não bati com força pedindo para entrar. Achava que sabia o que era aquilo a que eles chamavam uma fase. Haveria de a atravessar e, no fim, voltar a abrir-se, como uma porta, e sair ao encontro da luz, banhar-se nela. Tinha a certeza absoluta. A razão era por ele ser uma pessoa tão digna de amor. A sua beleza, já desde criança, transformara-se noutro género de beleza. O senhor Dillinger, que gostava de tirar fotografias, tirou uma do Bill que eu tenho cá dentro, ao lado da cama. Foi no dia em que ia apanhar o autocarro do exército para Bridgehampton, para fazer a recruta na Georgia, como o pai, antes dele. Havia cerca de uma dúzia de rapazes do distrito naquele autocarro, tal como antes, mas uma nova geração. O senhor Dillinger apareceu com a sua máquina toda aparatosa. Nem sequer fez o Bill posar para a fotografia, limitou-se a disparar, enquanto o Bill estava de uniforme a beber café, junto ao escorredor do lava-loiça. A luz de Bridgehampton ficou-lhe no rosto, a luz estranha e salgada dos campos da batata de Bridgehampton. A casa do Bill, a sua terra natal. Um americano na América. Uma criança no meu coração. Está simplesmente a levantar a caneca azul na direcção do rosto, vai a meio caminho, para sempre. Está prestes a beber dela, sem pensar. Uma mera caneca de café. Não sabe nada do deserto para onde vai lutar pelo seu país. Acabou de usar exactamente esta frase há uns segundos, transportando-me de volta à velha sala de estar do meu pai, no castelo de Dublin, onde o Willie fez a mesma declaração fatídica. É assim que começa, e lá está, na fotografia. Não há fotografia de como acaba.
Sebastian Barry, Do Lado de Canaã
* Outros BLOGUES onde estou...
* MEMÓRIAS
* RECANTOS
* BLOGUES COM "EDUCAÇÃO"
* Ecos
* Movimento dos Professores Revoltados
* Movimento Mobilização e Unidade dos Professores
* Não calarei a minha voz... até que o teclado se rompa
* Paideia:reflectir sobre Educação
* Sem Rede
* IMPRENSA
* Expresso
* Público
* Visão
* OUTROS BLOGUES
* Murcon
* SÍTIOS
* Arquivo Maria de Lourdes Pintasilgo
* G.A.I.A.
* ANTERO – ONTEM, HOJE E AM...
* POMPEIA: A vida petrifica...
* JOSÉ CARDOSO PIRES: UM ES...
* PELA VIA FRANCÍGENA, NO T...
* CHILE: O mundo dos índios...
* NUNCA MAIS LHE CHAMEM DRÁ...
* ARTUR SEMEDO: Actor, galã...
* COMO SE PÔDE DERRUBAR O I...
* CRISE TRAZ CUNHALISMO DE ...
* O CÓDIGO SECRETO DA CAPEL...
* O VOO MELANCÓLICO DO MELR...
* Explicação do "Impeachmen...
* OS PALACETES TORNAM-SE ÚT...
* Tudo o que queria era um ...
* 1974 - DIVÓRCIO JÁ! Exigi...
* Continuará a Terra a gira...
* SETEMBRO
* Por entre os pingos da ch...
* Não há vacina para a memó...
* Um pobre e precioso segre...