Sábado, 22 de Abril de 2017

JOSÉ CARDOSO PIRES: UM ESCRITOR NÃO CHORA

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Faz hoje dez anos que morreu José Cardoso Pires, o escritor cinematográfico que cortou com o neo-realismo vigente.

As homenagens começaram no princípio do mês e continuam domingo fora.

De qualquer maneira, e como se sabe, um escritor não morre enquanto houver gente a lê-lo.

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A pieguice é a assassina, besta devoradora que tenta o escritor. Um escritor mostra, mas não mostra o que sente. Deixa-se aliciar pela torrente sentimental, é como pendurar a forca à volta do pescoço e empurrar o banco debaixo dos pés. O escritor senta-se à mesa e contém o caudal de emoções, inventa-lhes canais, subverte-as e elabora-as para as sugerir de outra maneira. Implícita, jamais explicitamente. O escritor concentra-se e pensa como dizer sem ter de dizer. O leitor que chore se quiser. Mas isso não fica escrito. O escritor controla-se porque um escritor não é sentimental. Quando escreve. Já quando fala, a voz é entidade autónoma. Tenta carregar apressadamente na tecla de “pause” mas já a voz adiantou em inflexões que o atraiçoam e o escritor não tem como dominá-la. A não ser assim: “Estou a ficar comovido, passo a palavra ao Júlio Pomar”. António Lobo Antunes remete-se ao silêncio para fazer o trabalho de contenção. Ainda que, dez anos depois, dê vontade de chorar a absurda ausência de um amigo.

Isto passa-se na casa Fernando Pessoa, em Lisboa, Campo de Ourique, no mesmo dia 2 de Outubro em que Cardoso Pires nasceu, há 83 anos. Morreu dez anos, também no mês de Outubro e, no presente, há apenas uma grande vaga de gente a apinhar a sala para ouvir dois amigos íntimos a falar sobre o escritor. Uma homenagem entre as muitas que este mês acontecem em seu louvor, esta de algum modo especial por não ser apenas uma exposição pelo seu trabalho, mas acabando por ser também a “exposição” de uma amizade. E da nossa avidez de intimidade, nem que seja da dos outros.

Enquanto aqui em baixo (imagem infantil esta de imaginar que os mortos passaram a um plano superior, mas adiante), enquanto aqui em baixo esperamos por revelações, José Cardoso Pires “está a passar no purgatório”. A informação é de Lobo Antunes. “As editoras são máquinas terríveis e horrorosas", diz a propósito de “o Zé não estar agora a vender o que podia estar a vender”. A sala apinhada e o Lobo Antunes a blasfemar contra a rapidez com que, hoje em dia, se faz um escritor: O problema é que ser ou parecer um tipo inteligente não chega. “É o livro que tem de ser inteligente, não o escritor.” E tenta esmiuçar o que está a dizer a partir da escrita do José Cardoso Pires: “Todas as palavras que a gente leu, mas que não estão lá. Isto é muito difícil de fazer!” “É uma prosa seca, não é adjectivada, só aparentemente é simples.”

Como é possível escrever ou descrever sem recorrer a adjectivos, como Cardoso Pires tão trabalhosamente conseguia? Como é que se fica sem adjectivos? Lobo Antunes pergunta e responde: “O Zé era um alpinista que trepava sem corda.” Mas como não há milagres nem grandes escritores instantâneos, o seu processo era o de um infindável riscar e apagar. Inês Pedrosa, directora da Casa Fernando Pessoa e mediadora da conversa, diz, ou melhor, pede confirmação: “A Edite dactilografava-lhe vezes sem conta as inúmeras versões, não era?”, e olha para o público onde a mulher de Cardoso Pires acena afirmativamente.

“O que ele sofria para chegar ali, podia passar uma tarde inteira com uma frase”, diz António Lobo Antunes. E Inês Pedrosa, com um misto de espanto e ternura, acrescenta: “Tinha vergonha de escrever pouco.” Coisa irónica, esta de se medir um escritor pelo amontoado de caracteres que se consegue expelir.

O público aproveita a intervenção de Inês Pedrosa para se queixar de que não ouve nada. Vozes irritadas: “Viemos aqui ansiosos por ter esta oportunidade única e não se ouve nada!” A responsabilidade parece não ser da acústica da sala mas de Lobo Antunes, que fala baixo e se afasta do microfone. O escritor justifica-se com a dificuldade que o tema lhe causa. Fala baixo porque ainda lhe “custa muito estarem ali os dois (ele e o Júlio Pomar) sem o Zé aparecer”. O que é de facto uma daquelas ilusões causadas pela própria realidade porque o Zé Cardoso Pires está ali todo o tempo e em todas as palavras de Lobo Antunes, que se percebe não ter desistido de dialogar com o amigo.

Enquanto vai tentando violentar-se por empatia a esta homenagem pública ao amigo, risca e apaga antes de dizer aquilo que a memória provavelmente lhe vai trazendo. Cada revelação é pontuada pela dúvida: “Há coisas que talvez o Zé não quisesse que eu estivesse a contar.” Arrisca outra vez: “O Zé escrevia no apartamento da Costa da Caparica em frente ao mar; precisava de uma grande concentração para escrever. Até as badaladas da igreja o perturbavam. Precisava de estar num isolamento completo. E, às vezes, por sentir que outros escritores seus contemporâneos recebiam mais atenções, perguntava-me: O meu trabalho não é assim tão mau, pois não?”

O pintor Júlio Pomar, menos verbal, também frisa em Cardoso Pires o sentido de responsabilidade que punha naquilo que escrevia. “O sentido de gravidade perante o objecto que estava a fazer e a quantidade de versões que escrevia. Havia uma diferença abissal entre o contador de histórias, ao vivo, e o escritor.” E diz que “o Zé era um homem eternamente solitário apesar de estar sempre rodeado de gente”. Lobo Antunes conta que em casa dele havia muito poucos livros e que não havia um único livro seu à vista. “Tinha muito pudor.” Recebia imensos livros, rasgava a página da dedicatória e deitava fora o resto, revela. Tal como não tinha fotografias suas ou da família na sala, mas tinha três do Hemingway.

De repente, Lobo Antunes está a falar da morte, a dizer que Cardoso Pires “achava a morte uma coisa indigna”, e das coisas indignas a que ele próprio assistiu, como a maneira como Cardoso Pires foi tratado no hospital, da segunda vez que esteve doente. “A tratarem-no por tu quando ele estava semiconsciente! Não me apetece falar sobre os últimos tempos, foram de uma grande revolta.”

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Aplica-se o que Cardoso Pires explicou ainda melhor numa entrevista ao “Jornal de Letras”, um ano antes de morrer. A entrevistadora perguntara-lhe “como encara a morte?”. Cardoso Pires responde: “É mais uma puta. É isso. Pena que a definição não seja minha mas do Hemingway”. E disse também, num documento gravado para a RTP, no ano da sua morte: “Eu tenho medo físico, não tenho medo da morte. Tenho medo do sofrimento, da dor e da humilhação. (…) Morrer, a mim, não me faz diferença nenhuma, desde que me tirem as dores, que é obrigação da medicina. (…) Tenho uma grande admiração pela eutanásia, tenho um grande respeito pela morte ajudada e um grande desprezo pelos tais heróis do sacrifício.”

 

No CCB e na estante

Cardoso Pires morreu na madrugada de 26 de Outubro de 1998. Se se apressar, hoje, dez anos volvidos sobre o dia da sua morte, ainda vai a tempo de participar numa homenagem que acontecerá no Centro Cultural de Belém (CCB), com leituras da sua obra por António Mega Ferreira, Inês Pedrosa, Mário de Carvalho, Lídia Jorge ou Eduardo Agualusa; com o visionamento da adaptação a cinema de “O Delfim”, de Fernando Lopes, ou com a conferência “Memória e Autoficção”, de João Lobo Antunes, médico, amigo e autor do prefácio de “De Profundis, Valsa Lenta, onde Cardoso Pires descreve e revisita a experiência do acidente vascular cerebral que sofreu em Janeiro de 1995.

Todas as homenagens para que depois possa regressar a casa e reencontrar José Cardoso Pires entre as páginas de “O Anjo Ancorado, de “O Delfim” ou de “Alexandra Alfa”, e redescobrir a inigualável companhia deste homem e deste escritor, improvável e danadamente vivo

 

Não me beije

Há cinquenta anos, podia “coçar-se o sexo” sem problemas e até violar em grupo uma vadia porque “ou bem que uma mulher pertence só a um homem ou então, catrapus, arroz fingido” (“Ritual dos Pequenos Vampiros” in “Histórias de Amor”). Podia sugerir-se as coisas só não se podia verbalizá-las. Do que a censura não gostava era de palavrões, coisas tipo “comeu-a”, “galdéria” ou “camandro” e, evidentemente, de ninguém que aparecesse nu ou aos beijos num livro. Cardoso Pires escreve: “Não me beije”, a censura corta. Ele escreve: “Com a coberta enrodilhada aos pés, o jovem fitava-a. Estava nu e fitava-a”. A censura corta.

Nelson de Matos, que foi seu editor durante vinte anos, primeiro na Moraes Editores e, depois, na Dom Quixote (onde está editada grande parte da obra de Cardoso Pires), volta agora a sê-lo em nome próprio (Edições Nelson de Matos), com a recente edição do inédito “Lavagante” e do livro de contos “Histórias de Amor”, que não sendo inédito porque foi publicado, e logo apreendido, no Verão de 1952, é original por tudo o que reúne no mesmo volume. E é de leitura deliciosa como curiosidade histórica. Aos contos de José Cardoso Pires, escritor que na altura ainda não completara trinta anos de idade, mas que já deixa inscritas as marcas da obra ímpar que viria a criar, juntam-se todos os cortes que a censura tentou impor-lhe (assinalados a cinzento no texto), bem como a carta que dirige à censura e com que tenta contra-argumentar, mais as críticas ao livro que então foram publicadas, da autoria de Mário Dionísio, Luís de Sousa Rebelo e Óscar Lopes.

A censura regista o livro como “imoral”, sublinhando o retrato que o escritor faz das “misérias sociais” onde “o aspecto social se revela indecorosamente”. “De proibir”, classifica. A crítica enaltece e glorifica o escritor mas aproveita para lhe apontar uns pecados a corrigir e para lhe dar uns pequenos conselhos paternalistas. Felizmente, Cardoso Pires nunca desistiu do pecado que a crítica lhe aponta em uníssimo, corre o ano de 1952. Nas palavras de Mário Dionísio, “grandes escritores americanos continuam a ser presença excessiva nos contos do autor de “Caminheiros” (primeiro livros de contos de 1949). (…) Faulkner, Caldwell, Hemingway, estão demasiado presentes nestas histórias que desejam ser portuguesas”. E mais adiante o conselho de que “o contacto mais estreito com os europeus lhe será utilíssimo na desamericanização dos seus processos e até da sua construção linguística”.

Mas o estilo de Cardoso Pires perdurará, como diz Inês Pedrosa na fotobiografia que escreveu e organizou sobre o autor. José Cardoso Pires “sempre se guiou pela lei anglo-saxónica que manda agarrar o leitor pela gola do casaco e empurrá-lo para dentro do livro – mas educadamente, como convém a um cavalheiro de cartilha. Sempre se deu ao trabalho de neutralizar a resistência à leitura através da técnica da surpresa”.

Imagens retiradas de José Cardoso Pires,

 Fotobiografia, de Inês Pedrosa. Dom Quixote, 1999

Notícias magazine

26 Outubro 2008

Texto: Cláudia Moura

 

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Segunda-feira, 10 de Abril de 2017

PELA VIA FRANCÍGENA, NO TRILHO DOS PEREGRINOS

(Uma estrada cujas origens remontam ao Império de Júlio César volta a conquistar caminhantes. Vamos à descoberta das suas formações geológicas únicas e de vinhos, queijos e enchidos sem igual. [Revista ULYSSE-Paris]

Ponte de Saint-Martin sobre o rio Lys, no vale de

Ponte de Saint-Martin sobre o rio Lys, no Vale do Aosta [Foto: Nicholas Thibaut]

“Todos os caminhos vão dar a Roma”, diz o provérbio. É esse precisamente o destino da Via Francígena, a estrada dos Francos ou Franceses que, na Idade Média ligava o Norte da Europa à Cidade Eterna. Era usada pelos peregrinos que se dirigiam ao túmulo de São Pedro.

Caída no esquecimento, esta estrada histórica conheceu novo alento desde que foi nomeada “Grande Itinerário Cultural”, pelo Conselho da Europa, em 2004. A designação pretende proporcionar aos europeus a descoberta do seu património cultural comum, numa viagem pelo espaço e, ao mesmo tempo, pela História. Divulgado pelos organismos de turismo e por numerosas associações de entusiastas beneméritos, este regresso às origens europeias tem conhecido um grande desenvolvimento em Itália. É o caso do troço que atravessa a região da Canavese, no Piemonte, entre Turim e o vale de Aosta.

Cinquenta e cinco quilómetros de caminhos de terra e pedra -cujo pavimento, em alguns pontos, remonta à época romana ou medieval- serpenteiam por uma das regiões mais verdes da Europa. O itinerário começa em Pont-Saint-Martin, uma pequena comuna no vale de Aosta, cuja ponte, construída em 25 a.C. para permitir o acesso das legiões romanas à Gália, marca a entrada no território piemontês; passa, em seguida, por meia dúzia de comunas medievais e pitorescas, entre elas a sedutora cidade de Ivrea, e termina em Cavaglia, na direcção de Vercelli. Na verdade, este traçado é apenas uma pequena parcela da Via Francígena, que se estende por cerca de 1600 km.

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 No ano 58 a.C., Júlio César inaugurou a “Estrada de Roma”, que depressa se transformou na espinha dorsal do sistema rodoviário da Europa Ocidental.

Em consequência do domínio árabe sobre Jerusalém (no ano 640), Roma passou a ser o principal destino das peregrinações cristãs, assim se mantendo até ao início do culto de Santiago, em Compostela (Galiza), no século X. Em Itália, na Alta Idade Média, o percurso seguiu itinerários lombardos baseados nas vias romanas.

A Via recebeu a designação de “Iter Francorum” em 725, passando a ser conhecida como Via Francígena em 876. Com a proclamação dos Anos Santos a partir de 1300 [através dos quais o Papa concedia pleno perdão aos pecadores que iniciavam a peregrinação a Roma], o fluxo chegava a ser, frequentemente, de dezenas de milhares por ano. A peregrinação a Roma pela Via Francígena caiu em desuso por volta do século XVII.

 

Uma estrada que mudou muito

Segundo Adelaide Trezzini, presidente da Associação Internacional da Via Francígena (CAIVF), em 1985, Giovanni Caselli, especialista em arqueologia rodoviária, registou, nos mapas e no terreno, o itinerário do arcebispo Sigéric de Cantuária, que foi a Roma, em 990, para receber o pálio das mãos do papa João XV.

No caminho de regresso à Grã-Bretanha, o arcebispo saxónico manteve um diário onde anotou meticulosamente as 79 etapas da sua viagem. São estas as etapas que constituem a Via Francígena tal como a conhecemos hoje.

No entanto, esta conheceu numerosas variantes ao longo dos séculos. Em vez de ser uma via com traçado definitivo, assemelhava-se a um encadeado de trajectos e caminhos que ligavam igrejas, mosteiros e outros locais de devoção, onde os peregrinos podiam reunir-se, como a Sacra di San Michele, no vale de Susa, a poucos quilómetros de Turim.

Se o peregrino moderno pode continuar a pernoitar nos inúmeros edifícios religiosos que cruzam o caminho, deve-o à natureza luxuriante envolvente que lhe inspira o sentimento de aproximação ao divino e à riqueza infinita da criação. Paisagens ostentando a paleta completa do verde e lagos de águas calmas aguardam a caminhante ao longo dos caminhos.

Este não deixará, sem dúvida, de se maravilhar perante a majestade imponente do “circo glaciar” de Ivrea. Esta formação geológica, um vasto anfiteatro que se estende por 530 quilómetros quadrados, surgiu durante o Pleistoceno e resulta de sucessivas fases de expansão e retracção do glaciar Baltoro, que veio do vale de Aosta depois de ter passado pelas vertentes meridionais do Monte Branco.

Cordilheiras e depósitos glaciares, blocos erráticos, turfeiras, bacias lacustres… são alguns dos elementos geomorfológicos que fazem do “circo glaciar” de Ivrea um dos locais de origem glaciar mais notáveis e melhor conservados do planeta. É também nos arredores de Montalto Dora que passa a “linea insubrica”, a maior falha tectónica da cadeia dos Alpes.

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Toscânia.Troço da Vila Francigena

Os da montanha

Os apaixonados pelas grandes caminhadas e os amantes dos prazeres terrenos podem ficar tranquilos. O troço de Canavese reserva-lhes boas surpresas. Em Carema, a primeira vila depois de Pont-Saint-Martin, encontrar-se-ão face-a-face com um exército de “pilun”, pilares de pedra de forma característica que suportam as pérgulas das vinhas plantadas em socalcos. De noite, libertam o calor acumulado durante o dia e permitem uma maior resistência das plantas ao frio das montanhas.

É nestas terras altas que se produz o “carema”, um vinho tinto cor de rubi e de gosto aveludado, que beneficia da designação de origem controlada.

Algumas etapas mais à frente, antes de chegar a Borgofranco d’Ivrea, os amantes de Baco não deixarão de apreciar as "balmetti". Incrustadas nas montanhas, estas adegas naturais, escavadas na rocha, permitem manter a humidade e a temperatura a níveis constantes. Correntes de ar, chamadas “ore”, causadas por um fenómeno natural no interior do maciço de Mombarone, são captadas por uma rede de pequenos orifícios e permitem conservar vinhos, queijos e enchidos ao longo de todo o ano. Estas “balmetti”, que remontam a meados do século XVIII, são transmitidas de geração para geração e constituem o orgulho dos seus proprietários.

Ao longo do tempo, tornaram-se locais de convívio entre amigos em volta dum copo de vinho e um petisco. Como prova disso, a rua onde se situa a maioria tem o nome de Via del Buonumore (rua do bom humor).

Todos os anos, no terceiro domingo de Junho, as portas abrem-se para uma jornada de festa popular, baptizada de “Andona ai Balmit”, em que todos podem apreciar as delícias desta tradição local, baseada na cordialidade e na hospitalidade.

A redescoberta da Via Francígena não teria sido possível sem o esforço de associações como a de Trezzini que, gratuitamente, sinalizam os caminhos, organizam excursões, fornecem mapas e listas de alojamentos, trocam testemunhos na sua página na Internet, etc. Com resultados excelentes, pois o número de peregrinos tem aumentado regularmente desde 2001.

[…]

Piemonte italiano.Quinta no Vale de Susa, na Sacra

Quinta no Vale de Susa, na Sacra di San Michele, no Piemonte italiano [Foto Yvan Travert]

 

Anichada no cimo do monte Pirchiriano (962m) como uma sentinela silenciosa, a Sacra di San Michele vigia a entrada do Piemonte. Não foi por acaso que este imponente monumento religioso, de formato singular, foi escolhido como símbolo da região. Construída no século X, a abadia foi uma etapa obrigatória da Via Francígena, além de se situar a meio caminho dum percurso que une os três grandes locais de devoção ao arcanjo, desde o Monte Saint-Michel, na Baixa Normandia, até ao santuário do Monte Gargano, na Apúlia (Itália). Por vezes, esta rota chega a ser conhecida como Via Francígena do Sul.

Depois de chegarem a Roma, os peregrinos fazem uma última paragem no santuário de Gargano, na ponta da península, antes de continuarem a sua peregrinação e embarcarem para Jerusalém.

Peregrinos diplomados

São já 1850, os peregrinos que percorrem a Via Francígena desde 2001, e obtiveram o respectivo “testimonium”, um pergaminho de edição limitada, emitido pela Associação Internacional Via Francígena e entregue na Basílica de São Pedro aos caminhantes que tenham percorrido, pelo menos, o caminho entre Acquapendente e Roma (150 km), ou feito o percurso em bicicleta desde Lucques (400 km). Apenas 35% dos caminhantes efectuam a peregrinação por motivos religiosos.

 A marca F

Encontramos a marca do peregrino, por vezes denominada por um F, ao longo de todo o trajecto da Via Francígena que atravessa a região de Canavese, entre Turim e o Vale de Aosta.

 

publicado por Elisabete às 18:35
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Segunda-feira, 3 de Abril de 2017

CHILE: O mundo dos índios Mapuche

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Fotógrafo ambulante: Temuco [Chile, 1972]

Os mapuches -Gente da Terra-, são depositários duma civilização antiga que persistiu até aos nossos dias. Povo orgulhoso da sua história de luta pela sobrevivência da sua cultura, vivia nos vales férteis do sul do Chile, ao tempo da chegada dos espanhóis. O conflito entre eles durou cerca de 300 anos, tendo ficado conhecido por Guerra de Arauco, nome por que era designada, pelos espanhóis, a terra que habitavam.

Separados de outras civilizações da América do Sul, os mapuches viviam da caça e das colheitas, organizados em clãs, tendo esta dispersão em pequenos grupos separados tornado mais difícil a conquista espanhola e o seu total domínio nos territórios a Sul do rio Biobío.

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Mercado indígena [Temuco, 1973]

Conquistada a independência do Chile, os mapuches foram sobrevivendo como cultura, constituindo actualmente 4% da população chilena. Vivem, sobretudo, na região de Temuco, no Sul do Chile, se bem que, na procura de uma melhor situação económica, alguns se tenham integrado nas grandes cidades.

As imagens incluídas neste portefólio – seleccionado de uma exposição que esteve patente na Fundação Mário Soares, em Lisboa, e no Fórum Romeu Correia, em Almada – referem-se ao início dos Anos 70, ao tempo do Governo da Unidade Popular, tempo em que o orgulho dum povo foi encorajado e respeitado, e processo no qual o autor destas linhas e destas imagens entusiasticamente participou. Nestas fotografias, agora recuperadas, presenciámos reuniões e celebrações próprias deste povo. Encontros de homens sábios que debatem o seu destino, preparação de rituais das “machi” e simples gestos do quotidiano.

As suas “machi” – curandeiras espirituais de uma comunidade – são portadoras duma sabedoria antiga, que através das gerações foi passando de velhas a novas o conhecimento das ervas medicinais, mas não se limitam à cura de doenças físicas, sabem afastar o mal, prever o tempo e até interpretar os sonhos.

Os rituais de cura e outros cerimoniais mágicos estão vedados a estranhos. Possível foi apenas fotografar momentos de convívio com a “machi” e a sua família e os vários objectos sagrados: entre estes, máscaras, o “rehue” – escadas de sete degraus de onde a “machi” executava os seus rituais, os “metahue”, cântaros também sagrados. Entre o mero convívio nos campos e a ida aos mercados, onde tentavam vender os seus produtos, olhámos o rosto de um povo e o que nele habitava de antigo e perdurara através do tempo.

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 Rehue de sete degraus onde os “mochi” (curandeiras) executavam os rituais sagrados [Nueva Imperial, Temuco, 1972]

1970-1973

A minha visão do Chile

Foram pouco mais de três anos em que tanta coisa mudou, mas, ao mesmo tempo, foi tudo tão rápido! Em Setembro de 1970, Salvador Allende e a Unidade Popular venciam as eleições chilenas com um programa político – as 40 medidas que incluíam desde a nacionalização do cobre, principal riqueza e fonte de divisas, até ao fornecimento gratuito de leite a todas as crianças. O programa da Unidade Popular expressava as aspirações da maioria do país e reunia as suas energias mais profundas para o cumprimento dos objectivos revolucionários. A coluna central dessa marcha histórica era a classe operária; ao seu redor, camponeses pobres e médios, pequenos e médios empresários, largos sectores dos funcionários públicos e dos intelectuais.

o mundos dos índios mapuche4.jpg Machi (curandeira) na sua botica [Nueva Imperial, Temuco, 1971]

A plataforma política abrangia marxistas e cristãos, maçons e agnósticos, reformistas e revolucionários, organizados em sete partidos e movimentos.

Na crista dessa vasta movimentação, o Presidente Allende, médico, político e revolucionário, ídolo dos trabalhadores que se recordavam do juramento que fizera, ainda muito jovem, de dedicar a vida às lutas sociais.

Em 1970, o Chile começa a procurar a sua identidade, e nessa procura tudo aquilo que estava no fundo, escondido ou sufocado, vem à superfície, gera tensão: o número de desempregados que já não é escondido, manipulado; saber se há desnutrição, que há falta de leite para as crianças nas escolas e nos hospitais. Que nos campos reinam os caciques latifundiários e que, com a exploração do cobre por estrangeiros, se vai a riqueza do país. De repente, a nação dá-se conta do que existe para além “barrio alto”, de belas vivendas e ruas ajardinadas, e descobre o outro lado da face. Até os índios Mapuche, conhecidos como “Gente da Terra”, que resistiram e sobreviveram aos conquistadores espanhóis, saem dos campos do Sul para entrarem na cidade contemporânea, sob o espanto dos “caballeros” da retórica que só os conheciam de fotografias, moldura de uma chilenidade que escondia as costas partidas dos índios nas sementeiras. E a roupagem nacional estoura com a chegada dessas súbitas multidões, cujos passos ressoam no país dos terramotos.

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Mapuches reunidos numa escola [Nueva Imperial, Temuco, 1972] 

De agora em diante, mudará a linguagem, os gestos, as aspirações, a rua será tumulto e a palavra “señor” dará lugar a “compañero”. O primeiro ano foi uma festa e descobrimento. Descobrir que há um motor, uma pulsação desconhecida, um sonho, dentro de mim, de ti, e descobrimo-nos juntos nesta alameda, cantando canções de Violeta Parra. 

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 Família Mapuche [Nueva Imperial, Temuco, 1972]

Para que o Chile deixe de ser o “centro da injustiça” e para que as aspirações dos vales, da Patagónia, dos salitreiros, cristalizem uma nova identidade nacional. O programa da UP passa a ser cumprido desde o primeiro dia: nacionalização do cobre, da Banca, dos grandes monopólios privados e a reforma agrária.

Mas a burguesia, perplexa num primeiro momento, começa a reagir, fortificada no outro Chile, cujas fronteiras começam na Praça de Itália e terminam no sopé da cordilheira. Ela utilizará todos os processos para juntar ódio e medo. Cobrará indevidamente os seus dólares e não se deterá até que o projecto de transformação social seja letra-morta, queimado pelas bombas.

o mundos dos índios mapuche 8 001.jpgIndígenas a cavalo [Temuco, 1972]

Três anos pouco dizem do Chile popular: foi tudo muito intenso, profundo, um outro sentimento do tempo, dias condensando anos, décadas.

Nas avenidas, multidões indescritíveis davam apoio ao Companheiro Presidente: tempo em que as lutas de classe podiam ser fotografadas quotidianamente nas esquinas da cidade.

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 Índios reunidos para tratar de assuntos da terra, à qual lhes voltara a ser reconhecido direito [[Nueva Imperial, Temuco, 1972]

Mas os ricos, os mais abastados de sempre, não podem aceitar a ofensa dos “rotos”, dos chilenos de segunda e, dispondo de maioria no Parlamento, dos Tribunais de Justiça e de Contas, dos dólares da CIA e das multinacionais, mobilizam a maioria das camadas médias, cujo padrão de vida era comparável ao dos países industrializados, para assaltar o Governo com o ódio mais espantoso. Nesse cerco tudo foi permitido: bombas, assassinatos, açambarcamentos, greves, manipulação da informação; “juntem raiva, chilenos” era o lema da burguesia sublevada que, acusando o Governo de violar a Constituição, instigava os militares ao golpe.

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 À fogueira [Aldeia de Osorno, 1973]

A 11 de Setembro de 1973, por fim, uma junta militar toma o poder, culminando a sedição iniciada logo após o anúncio da vitória eleitoral de Allende, três anos antes. O objectivo era derrubar o Governo e vencer a Unidade Popular, reinstalando um regime de fachada democrática, mas autoritário por dentro, favorável aos monopólios privados, nacionais e estrangeiros.

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Jovem com máscara tradicional [Colon, Nueva Imperial, 1972]

Contudo, o que desmoronou sob os foguetes da aviação não foram apenas as paredes do palácio – com a morte de Allende e dos defensores que lá estavam – nem a Unidade Popular; com os escombros ruíram as instituições democráticas levantadas ao longo de século e meio de vida republicana.

E, no lugar de La Moneda, surge – para o espanto de muitos do “barrio alto” – um imenso campo de concentração por onde irão passar milhares de chilenos.

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 Colares em prata para rituais [Nueva Imperial, Temuco, 1972]

Estas fotografias devolvem-nos, aqui e agora, o Chile daqueles anos que, tão profundamente vividos, não deixarão de existir. A História faz uma pausa.

 

ARMINDO CARDOSO (autor de fotos e textos) trabalhou,

no Governo de Unidade Popular de Salvador Allende,

entre 1970 e o golpe militar de Pinochet de 11 de Setembro de 1973.

Perseguido pelos golpistas, saiu do Chile sob protecção da

Embaixada Francesa e conseguiu salvar muito do seu espólio fotográfico.

 

Publicado no COURRIER INTERNACIONAL, Dezembro 2013

 

 

 

publicado por Elisabete às 11:08
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