Domingo, 3 de Fevereiro de 2008

O que vale a pena ler...

 

 

 

A Insuportável Solidão

 

1.Bridgend é uma pequena cidade de 40.000 habitantes, no sul do País de Gales. Um burgo isolado e pacato, aconselhável aos turistas (fonte de divisas), com o problema de muitos outros burgos: o desemprego. E, recente e inesperadamente, saltou para a primeira página dos jornais. Nesse mundo esquecido e apagado, aconteceu a tragédia: o suicídio de sete jovens, o mais velho de 20 anos e o mais novo (uma rapariga) de 17. Estudantes sem mácula, vidas aparentemente equilibradas e arregimentadas. Nem álcool, nem droga. Portanto, nenhuma razão. Um gesto absurdo. Mas haveria uma razão? Enraizaria o gesto na chateza da corrente dos dias? No ritual cinzento, em que as pessoas se perdem umas das outras e de si próprias?

***

2.Os sete jovens tinham coisas em comum viviam condições semelhantes, trocavam mensagens num sítio da internet e, pormenor macabro, suicidaram-se da mesma maneira: enforcaram-se. Talvez, ainda, um outro elo os unisse: a vontade de se tornarem públicos, de saírem do anonimato e de se afirmarem. Talvez fosse o alvo que o grito deles procurou atingir: a tona de água. O protesto -obviamente um protesto- quis arrancar, ao silêncio circundante, reconhecimento e admiração jamais tidos. Quem nos vê acompanha-nos e reconhece-nos? Não é certo. Albert Camus escreveu "O Estrangeiro": a solidão absurda do homem; Malcolm Lowry, na obra-prima "Debaixo do Vulcão", denunciou: "O que é a vida mais do que uma guerra e a passagem pela terra de um estrangeiro?" Em Bridgend, a meio de tantos sinais de beleza -paisagem, arquitectura, praias- sete fantasmas vivos (nunca se terão visto e trocavam mensagens dentro de garrafas que se confiam ao mar) descobriram que as suas almas estiolavam e pensaram o mesmo que o Cônsul de Lowry: "o pior de todas as coisas é sentir morrer a própria alma".

***

3.Não eram únicos, a não ser no gesto excêntrico, esquisito. Fora disso, habitavam o centro do quotidiano. Vivemos entre homens e mulheres, que se desconhecem e desconhecemos. Entre vítimas da indiferença e do egoísmo, do falso progresso, que tudo reduz a números. Sofremos, em época retrógrada, desumana, insalubre, assassina. Tempo de peste. Milhões de homens esbracejam, pulam, mascaram-se, na esperança de que atentem neles. Não atentam. A máquina não se condói nem pára, tritura e afoga, desliga-nos do mundo, pobres títeres, extraterrestres cada vez mais cadáveres adiados. Malcolm Lowry alertava "Le gusta este jardin que es suyo? Evite que sus hijos lo destruyan!"

Manuel Poppe, in Jornal de Notícias [O Outro Lado]

3.Fevereiro.2008

N.B. Não acho necessário acrescentar mais nada. Um óptimo texto para... reflectir.

publicado por Elisabete às 23:57
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De livros2amao a 9 de Março de 2008 às 16:02
Realmente, palavras para quê?!
Vim cá parar por acaso, através de Camus e "O Estrangeiro", livro que acabei de ler ontem e ainda estou a interiorizar e por isso andava a pesquisar outras opiniões. E, deparei-me com este belo incentivo à reflexão... :)
De Elisabete a 15 de Março de 2008 às 19:17
O Manuel Poppe é um crítico literário extraordinário e fala sempre das melhores obras e autores nacionais e estrangeiros.
Terá sempre referências importantes nos textos que escreve. Alguns deles estão publicados neste blogue.
Apareça sempre!
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