Ainda antes de Cristo, na Grécia, Eurípides aconselhou: “Fala se tens palavras mais fortes do que o silêncio, ou então guarda silêncio”. Numa sociedade cada vez mais calada e indiferente, impera perguntar o que foi feito destas palavras fortes como as muralhas, que deixavam quem as ouvia a pensar. Em emoção, em fúria, apaixonados, em desacordo ou em acordo. Mas a pensar.
O mundo calou-se e não foi para meditar. O mundo silenciou a voz porque o que é importante custa dizer. Calar-se é sempre mais fácil. Afinal, já criticava Cervantes, esse amante das palavras: “Contra quem cala não castigo nem resposta.
Falar é uma questão de coragem. E essa, já se sabe, vai escasseando. Os Que Falam, falam sempre dos mesmos perigos: a crise do petróleo, a crise sistémica global, a “especial” crise na banca internacional. Ninguém fala da generalizada crise da coragem. A coragem humana e a coragem cívica, declaradamente em risco de extinção.
A ausência das palavras “desculpa”, “obrigada”, “parabéns pelo teu trabalho” ou “amo-te” não parece preocupar ninguém. E quando Os Que Falam se reúnem, ninguém manda parar as armas. Ninguém manda matar a fome e não os homens. Ninguém assume que o mundo se está a suicidar em morte lenta e que esse é o legado que vamos deixar.
Os discursos do Governo são ora ocos, ora incoerentes. Num dia mandam-nos marcar mais golos e ser competitivos, que a vida moderna a isso obriga; no dia seguinte mandam os pais acompanharem os filhos, para não delegarem nos professores um papel que só à família pertence. Mandam-nos acelerar e mandam-nos manter um estilo de vida saudável. Porque o país precisa de nós. E quando se cansam de tanta incoerência, simplesmente não comentam ou voltam às “velhas” crises, essas de que se pode falar porque falar delas é quase o mesmo que não dizer nada.
A importância destas crises é, evidentemente, indiscutível. Mas a gravidade que o silêncio está a assumir numa sociedade em que ninguém fala com os vizinhos com os quais partilham o mesmo prédio há anos, e só uma minoria dos clientes responde ao “bom dia” dos comerciantes (e vice-versa) é igualmente assustadora.
Quando penso nisto lembro-me sempre das descrições que os vizinhos fazem do serial killer, depois de descobertos os crimes. Ele parece sempre, aos que estão habituados a vê-lo, ao longe, boa pessoa, pacato, respeitável. “Quase não metia conversa com ninguém”, descrevem muitas vezes. O problema é esse mesmo. É que, como dizia Heinrich Heine, o poeta alemão, “não há nada mais silencioso do que um canhão carregado”.
Martha Mendes [estudante da Universidade de Coimbra]
Jornal de Notícias [7.Set.2008]
Este texto, escrito pela jovem Martha, mereceu a atenção de Manuel Poppe que lhe dedicou a sua crónica de domingo e que reproduzo a seguir. As suas palavras, mais do que dizem, sugerem o mal-estar latente na sociedade actual. Uma sociedade em que as pessoas se refugiam no silêncio interior dos muros que erguem em redor de si, por medo, por hipocrisia, por comodismo, por interesses vários. Daí a necessidade de palavras fortes, corajosas, também elas como muralhas, que os derrubem, dando passagem à fraternidade e ao amor.
Obrigada, Martha! Enquanto houver jovens críticos e comprometidos, haverá esperança.
O silêncio e a morte
1. Não podia deixar passar em claro o notável, reconfortante, oportuno texto de Martha Mendes, aluna da Universidade de Coimbra, que li, neste jornal, há oito dias, na excelente secção “Universidade Pública”, onde têm aparecido páginas muito boas. Desde logo, arriscando oratória barata, direi que Martha Mendes honra a escola cujas tradições humanísticas e culturais contam séculos; e honra, também, a sua geração, porque não nasceu sozinha, entalada no tempo da mentira e do cinismo, jovem descontente e, ainda, indignada (apesar do sorriso perverso dos “adultos” arregimentados, eternos vendilhões do templo e mercadores da própria alma). “Numa sociedade cada vez mais calada e indiferente, impera perguntar o que foi feito dessas palavras fortes como as muralhas, deixavam quem as ouvia pensar”, escreve Martha. A resposta dá-a de seguida: “Falar é uma questão de coragem”. É isso que falta? Com certeza; mas como encontrá-la numa sociedade que vem transformando o homem em objecto castrado, anulado - silenciado?
2. Quando os escritores falavam (queriam ir além do confusionismo, do malabarismo formal e do piroso suave), José Marmelo e Silva deu-nos duas novelas excepcionais: “Adolescente Agrilhoado” e “Anquilose”; antes, Régio lançara, na revista “presença” (disponível em fac-símile, editora Contexto), “A lição inútil ou carta a um juvenil individualista”. Há muitos anos? Os suficientes para que avançasse e se consolidasse o processo de desumanização em curso: a agonia e morte do Homem. A crise está aí (o cancro neoliberalista); e está aí o apaixonado grito de Martha Mendes, que é uma lição. E nenhuma lição é inútil.
Manuel Poppe, in O Outro Lado
Jornal de Notícias [14.Set.2008]
PORQUE PENSAR É PRECISO…