1. Não custa nada apontar as fraquezas de “Gran Torino”. O que talvez custe é suportar a denúncia de Walt Kowalski, o personagem central de “Gran Torino”. Clint Eastwood realizou um filme esquemático, com figuras-tipo e com enredo previsível, por isso, superficial? Em muitas passagens sentimentalonas, a chegar-se ao melodrama? Fugiu-lhe a mão? Patinou? Já disse quanto tinha a dizer? Ver “Gran Torino” desde esse ângulo significa perder a oportunidade de reconsiderar o nosso quotidiano doente, em vias de apodrecimento (ou já apodrecido?). Clint Eastwood quis que o filme fosse directo, essencial e suficientemente dramático para que abalasse, emocionasse e prendesse os espectadores. Julgo que o conseguiu. Oxalá as lágrimas, que as houve de certeza, não tenham sido de crocodilo.
2. A história de Walt Kowalski é a de um homem ferido. Cresceu numa sociedade desumana e absurda que espezinhou, dentro dele, os sentimentos e o atirou para o egoísmo, a recusa do outro e a solidão. Cresceu na sociedade do mercado, da prepotência, da indiferença e do racismo. Kowalski apercebeu-se do logro e isolou-se. Endureceu. Agora, tenta recusar a vida, a bater-lhe à porta: os vizinhos, uma família de imigrantes asiáticos. Deve considerá-los inferiores e recusar o que lhe confiam: aquilo que foi perdendo: humanidade, amizade. O resto, o leitor há-de sabê-lo, quando for ver “Gran Torino”. Mas acrescento o seguinte: Kowalski reconsidera o que o rodeia: um mundo vazio, assente em nada. Compara-o com o que lhe oferecem e decide aceitar e sacrificar tudo. No sacrifício, recupera o sentido da vida. A escolha devolve-lhe a alma.
Manuel Poppe, O Outro Lado
Jornal de Notícias [22.Março.2009]