Um dia, tudo se revolucionou. Já não se tratava de melhores debuxos, de mais gratas cores, mas de coisa mais profunda – da produção automática. Lá nas nevoentas terras inglesas o padre Cartwright inventara o tear mecânico. A água, fazendo girar grandes rodas, começara a produzir o movimento dado, até aí, pelos pés do homem. Mas continuavam a ser precisos homens junto das novas máquinas.
Os serranos, que, nas solidões da Estrela, ora pastoreavam as suas ovelhas, ora teciam a lã que elas forneciam, tornaram-se cada vez mais raros. A maioria entrara nas fábricas. Eles tinham de regrar, agora, a sua vida por um salário fixo, chegasse ou não chegasse para as exigências de cada dia. Isso, porém, carecia de importância; ninguém pensava em aumentar-lhes os ganhos, pois havia de se ter sempre em conta o preço da mão-de-obra para a concorrência dos tecidos nos mercados.
Os homens passavam dias e noites dentro das fábricas, só saindo aos domingos, para esquecer o cárcere. Já não viam as ovelhas, nem ouviam o melancólico tanger dos seus chocalhos nos pendores da serra, ao crepúsculo; viam apenas a sua lã, lã que eles desensugavam, que eles lavavam, cardavam, penteavam, fiavam e teciam, lã por toda a parte.
A indústria ia crescendo sempre. Agora não eram grandes apenas a casa do deus dos homens e as casas das fábricas; ao lado destas, outras casas grandes tinham surgido – as residências dos industriais. E todo o país falava da prosperidade da Covilhã.
Mais tarde, operou-se nova revolução. As enormes rodas que giravam nas ribeiras detiveram-se: o poder da água fora substituído pelo da electricidade. E fábricas existiam onde já laboravam pais, filhos e netos. Os centos de tecelões que, outrora, viviam nos lugarejos da serra, tinham-se multiplicado e constituíam, agora, milhares. Ladinas personagens, que, de magros dinheiros dispondo, compravam o fio a uns, mandavam-no tecer a outros e a terceiros vendiam os panos, acabaram desaparecendo também, devoradas pelos industriais poderosos. E só ficavam as grandes fábricas, com seus milhares de operários.
A lã do país já não chegava; tinha-se de procurá-la em terras estrangeiras. Da Austrália, da Nova Zelândia, da África do Sul, passaram a vir grandes carregamentos. Rebanhos distantes alimentavam, através dos mares, as fábricas quase escondidas nas ribeiras da Estrela.
A indústria sofria, porém, constantes oscilações. Ora fabricava sem descanso, ora, por escassez de matéria-prima ou parco consumo, diminuía os dias de seu trabalho. Então, homens e mulheres, que à lã haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma miséria mais descarnada ainda do que a normal. Com seu fabrico reduzido, a Covilhã, em vez de exportar panos, passava a exportar raparigas para o meretrício de Lisboa.
A sujeição ao destino comum, criara, todavia, alguns vínculos entre os descendentes dos primeiros tecelões. No século XX, mais do que sons de flautas pastoris descendo do alto da serra para os vales, subiam dos vales para o alto da serra queixumes, protestos, rumores dos homens que, às vezes, se uniam e reivindicavam um pouco mais de pão.
Ferreira de Castro, A Lã e a Neve (Pórtico)