O acontecimento na boca de toda a gente era a proclamação de Napoleão como imperador de França no dia dezoito de Maio. A tensão política na Europa fazia Portugal navegar por um mar de apreensão em relação à sua independência futura, pois era claro para todos que o Imperador tinha planos para o nosso pequeno e pitoresco posto fronteiriço na beira da Europa, especialmente pelo nosso parceiro comercial mais importante ser a Inglaterra, a sua grande inimiga. Não havia cidade na Ibéria cujo destino estivesse mais ligado à Grã-Bretanha do que o Porto, uma vez que noventa por cento das nossas exportações – incluindo mil barris de vinho, do tamanho de um homem, por semana – seguiam directamente para Londres.
Por esta razão, muitos, incluindo o meu pai, estavam convencidos de que Napoleão não levaria muito a lançar um ataque à nossa cidade. Faltando-lhe, inclusivamente, armazéns para o pão, que chegava ao Porto todas as terças, quintas e sábados, das terras vizinhas, um bloqueio e um cerco franceses fariam com que tivéssemos de enfrentar a fome ao fim de poucos dias.
Eu e Meia-Noite estávamos em casa das irmãs Oliveira quando começaram os problemas. Passava pouco das três horas no relógio em cima da prateleira da lareira, quando ouvimos o barulho de uma multidão a descer a nossa rua. Subitamente, um grito agudo cortou o ar:
- Não penseis que venho para trazer a paz na terra. Não venho para trazer a paz, mas uma espada. Todos os estrangeiros devem ser removidos da nação portuguesa. Se queremos ter uma Cidade de Deus, então as cabeças dos protestantes, dos pagãos e dos judeus têm de rolar pelas nossas ruas!
Reconheci a voz do orador e corri para a janela.
- Não! – gritou-me Graça.
Mas era demasiado tarde, pois eu já tinha afastado a cortina e espreitava lá para baixo.
O necromante que me ameaçara anos atrás, Lourenço Reis, estava parado à porta da loja do Senhor Benjamim, que ficava apenas a trinta passos de distância. Felizmente, não me via.
Com toda a certeza ele tinha escolhido o dia de hoje para regressar ao Porto, pois a véspera de S. João era, no fundo, uma celebração pagã do solstício de Verão.
- Se juntásseis todos os judeus em Portugal, o que teríeis? – perguntou aos seus seguidores.
Um homem gritou: “dez mil bestas”; outro, “uma vara de porcos”.
- John, sai daí ou dou-te uma palmada! – ordenou Luna.
Estava tão fascinado, que recusei mexer-me.
- Se juntássemos todos os judeus – continuou o necromante -, teríeis madeira suficiente para uma fogueira que chegaria até Deus!
Meia-Noite tocou-me no ombro:
- O que é que ele está a dizer? – perguntou-me.
- John, sua peste! Sai já daí! – suplicou Luna.
Ela e a irmã estavam a olhar para mim, furiosas. Deixei cair a cortina, mas continuei à janela.
- Ele ameaçou-me uma vez – murmurei para Meia-Noite. – Não gosta de estrangeiros, especialmente de…
Eu estava prestes a dizer “Judeus”, mas o necromante soltou um gemido como se tivesse sido apunhalado na barriga.
- Chamo Benjamim Seixas…
Voltei a puxar a cortina para o lado. Ele tinha levantado as mãos para invocar Deus.
O BÁLSAMO DA DESILUSÃO. A desilusão é considerada um mal. Que preconceito irreflectido. Através do quê, senão através da desilusão, poderíamos descobrir o que esperámos e o que desejámos? E onde encontrar um momento de autoconhecimento, senão precisamente nessa descoberta? E se as coisas se processam assim, então como é que poderíamos adquirir clareza sobre nós próprios sem a desilusão?
Não devíamos suportar a desilusão com suspiros de desânimo, como algo sem o qual a nossa vida seria melhor. Devíamos procurá-la, persegui-la, coleccioná-la. Por que é que me sinto desiludido ao constatar que os admirados actores da minha juventude apresentam hoje, todos eles, sinais da velhice e da decrepitude? O que é que a desilusão me ensina sobre a perenidade e o pouco valor que o sucesso tem? Há pessoas que precisam de uma vida inteira para admitirem o desapontamento que sentem em relação aos seus pais. Mas no fundo o que é que esperámos deles? Pessoas obrigadas a viverem a sua vida sob o jugo inclemente das dores sentem-se frequentemente desiludidas com o comportamento dos outros, mesmo daqueles que persistem junto deles e lhes ministram os medicamentos. É sempre demasiado pouco aquilo que fazem e dizem, e também demasiado pouco aquilo que sentem. O que esperam então, pergunto. Eles não o sabem dizer e ficam siderados com a expectativa que carregaram consigo durante anos a fio, expectativa essa que pode ser frustrada sem que eles a conheçam verdadeiramente.
Alguém apostado em conhecer-se verdadeiramente teria de ser um colecionador obcecado e fanático de desilusões, e a procura de experiências decepcionantes deveria ser para ele como um vício, na verdade como o vício dominante da sua vida, pois então ele compreenderia, com grande clareza, que a desilusão não é afinal o veneno ardente e destruidor por que é tomada, mas um bálsamo fresco e tranquilizante que nos abre os olhos para os verdadeiros contornos do nosso eu mais íntimo.
E no fundo ele não deveria procurar apenas as desilusões relacionadas com os outros ou com as circunstâncias exteriores. Quando descobrimos e assumimos a desilusão como um método para nos aproximarmos de nós próprios, tornamo-nos desejosos por experimentar até que ponto estamos desiludidos connosco próprios: desiludidos com a falta de coragem e de honestidade intelectual, por exemplo, ou com os limites terrivelmente estreitos impostos ao próprio sentir, agir e falar. O que é que esperámos e desejámos então de e para nós próprios? Que não admitíssemos limites, ou que, pelo menos, fôssemos completamente diferentes daquilo que somos?
Poder-se-ia alimentar a esperança de que, através de uma redução das expectativas, nos tornássemos mais reais, no sentido de nos reduzirmos a um núcleo duro e fiável, de modo a ficarmos imunes contra a dor da desilusão. No entanto, como é que seria viver uma vida destituída de qualquer esperança verdadeiramente ousada e exigente, uma vida em que apenas haveria expectativas banais, como a espera da chegada do autocarro?
Pascal Mercier, “Nocturno para Lisboa”
Agora Kalter já não se dava ao trabalho de inspeccionar os armários das provisões e as compras do dia. Tinham acabado as fiscalizações na cozinha! Mas embora isso tornasse as coisas mais fáceis e lhes permitisse comer melhor, a Srª Helianos – domesticada pelas restrições do anterior regime – não apreciava as mudanças.
De manhã, à hora em que saía para o quartel e o casal se apresentava para lhe abrir a porta, perfilando-se depois para receber as habituais instruções, percebia-se que ele já não sabia o que lhes ia dizer. Não havia instruções a dar; nada era como dantes. A Srª Helianos queixava-se disso. Sem os costumeiros reparos do major, ficava sem saber se ele estava ou não satisfeito com o seu trabalho do dia anterior, e se as tarefas que levaria a cabo nesse dia, por iniciativa própria, eram ou não as que ele desejaria ver realizadas.
Mas, independentemente de quais fossem as ordens ou os reparos do major, algumas vez soubera o que Kalter esperaria dela, ou o que eles próprios poderiam esperar dele?, perguntou Helianos num tom impaciente.
Antes, e apesar do seu mau feitio, respondeu ela, uma pessoa pelo menos sabia a que se agarrar; havia alguma hipótese de esperar que, de algum modo, no final, a tarefa que tivesse executado pudesse ser aprovada por ele. Até uma censura era melhor do que o silêncio, sentia ela. Já que ele era o seu tirano, então que tiranizasse!; lentamente, como fazem os tiranos, para que eles soubessem com que contar. Doutro modo, como podia esperar que cumprissem com o seu papel?
Por alguma razão, o major desinteressara-se momentaneamente, mas apenas momentaneamente, disse a Srª Helianos, do seu trabalho doméstico. Não era natural que ele deixasse de querer as coisas à sua maneira, não era natural que ele controlasse o seu mau humor, e aquilo ainda ia acabar mal. O desprendimento, a ineficiência, a delicadeza eram qualidades alheias à natureza do povo alemão, por isso aquilo não poderia durar muito. Em breve, pensava ela, o major voltaria a persegui-la, com desígnios vingativos.
Helianos supôs que a mulher estava tão cansada da lida doméstica que não conseguia ver as coisas de forma razoável. Nas palavras dela, o seu próprio trabalho ia de mal a pior. As refeições que servia não prestavam; a gestão doméstica estava um caos; era escandaloso o modo como roubavam sobras de comida só porque tinham fome; e as crianças, isto é, Alex, começavam a aproveitar o pretenso alheamento do major para se permitirem certas liberdades… Ela albergava sentimentos de culpa em relação a tudo isso, e achava que o responsável era este novo Kalter. Pois era à sua presente indiferença pelo comportamento deles, à sua actual indulgência, que se devia toda aquela acumulação de falhas. Ela já não conseguia estar à altura das suas responsabilidades, e o marido e os filhos muito menos. E um dia ainda haviam de pagar caro por isso.
Helianos impacientava-se quando ela se punha com estes discursos. Mas continuava, pacientemente, a fazê-la notar que estavam agora melhor do que alguma vez haviam estado durante o ano anterior. Recomendava-lhe que tivesse calma e se deixasse de maus pressentimentos… A Srª Helianos nunca contestava nada do que o marido dizia, mas, assim que ele se calava, lá recaía ela na anterior ansiedade, teimando nas suas desconfianças.
Glenway Wescott, Um Apartamento em Atenas
Eis um fait-divers. Seguramente nada banal. Mesmo incrível, mas autêntico. Aconteceu no mês de Novembro de 1980 em Casablanca. A história de Slimane constitui um paradoxo.
Naquela noite, ao frio e na confusão, várias pessoas esperavam um táxi. Ela também esperava. Confiante, com as mãos juntas sobre o ventre. Não se empurra uma mulher grávida. Respeitamo-la e ajudamo-la. Acabara de chegar, mas o próximo táxi seria para ela.
Slimane é um homem calmo. Detesta a violência e evita a confusão. Uma vez quase fora linchado por uma multidão impaciente e encolerizada. O seu “pequeno táxi”[i], um Simca 1000 de cor vermelha, ficara todo amolgado depois da zaragata. Desde então tornara-se desconfiado. Já não parava nas praças, preferindo apanhar clientes ao acaso.
Nessa noite, de regresso a casa, passou sem parar na praça. Vislumbrou a mulher grávida, efectuou então marcha-atrás e parou precisamente ao seu lado. Ninguém ousou protestar. A mulher era ainda jovem. Aparentemente, não era desta cidade. Tinha um ar algo perdido. Slimane perguntou-lhe se “o feliz acontecimento” era “para breve”.
- Para o mês que vem -, respondeu-lhe ela. – De qualquer modo não tenha receio, não vou dar à luz no seu carro!
Ele sorriu sem dizer mais nada. Uma vez chegados a Derb Ghellef, junto ao número 24 A, parou e desceu para lhe abrir a porta. A jovem pediu-lhe para esperar um pouco, o tempo de ir buscar o dinheiro da corrida à casa da irmã. Slimane esperou fumando um cigarro. Cinco minutos depois, a jovem regressou banhada em lágrimas:
- Oh meu Deus! O que será de mim? Não há ninguém em casa da minha irmã; deve ter ido de viagem, nem os vizinhos cá estão… Como é que lhe hei-de pagar, e para onde irei com o meu filho, oh meu Deus!... Sou como uma estrangeira… Não conheço aqui ninguém…
Slimane ficara perturbado. Queria lá saber do preço da viagem. Não podia deixar esta pobre mulher sozinha, em semelhante estado de desespero.
- Minha senhora, não a vou abandonar nessa situação. Nós, muçulmanos, devemos ajudar-nos uns aos outros. Esta noite, convido-a a ficar em minha casa enquanto espera o regresso da sua irmã. A minha mulher ficará encantada e até as três crianças ficarão contentes… por termos visitas. A nossa casa é pequena, mas há sempre lugar para as pessoas de bem…
- Não, meu caro senhor, é muito bondoso da sua parte. Não quero incomodar de maneira nenhuma, e além do mais a sua esposa podia não compreender…
- A minha mulher é maravilhosa. Deu-me três belas crianças, uma menina e dois rapazes, e muita felicidade… A minha mulher é muito boa.
Slimane voltou a insistir. A jovem aceitou. Em casa correu tudo muito bem. As crianças estavam excitadas. Emprestaram-lhe o seu quarto. A esposa de Slimane era muito simpática e deu inúmeros conselhos à futura mamã. Ambas pensaram em nomes para o bebé e tagarelaram pela noite dentro.
Slimane estava manifestamente orgulhoso da sua boa acção e da sua esposa. Ergueu-se de manhã cedo. A mulher grávida já estava levantada. Repousada, descontraída, estava à-vontade, como se fizesse parte da família. Slimane deu-lhe os bons dias e ofereceu-se para a levar à casa da irmã. Ela parecia não ter compreendido bem o que ele lhe estava a dizer. Então este repetiu a sua oferta:
- Se quiser, posso deixá-la em casa da sua irmã. Ela talvez esteja preocupada…
- Em casa da minha irmã? Mas que irmã? Não tenho irmã, sabes bem disso… E depois estás a esquecer-te que é aqui a minha casa e que esta criança que trago no ventre é tua!...
Slimane deu um grito de estupefacção e chamou a esposa.
- Nós somos demasiado bons! Sempre te disse! Demasiado bons! É inacreditável. Esta mulherzinha quer enganar-nos. Diz que está em sua casa e que eu sou o pai da criança… É doida… De qualquer modo, eu não discuto com ela. Tenho confiança na justiça do meu país. Vou chamar a polícia.
A esposa encorajou-o a fazê-lo. A convidada ria às gargalhadas e já tratava a esposa de Slimane como uma criada: - Traz-me o pequeno-almoço. Chega aqui, vou fazer-te umas confidências. Slimane, o homem discreto e pacato, o homem que não falha uma oração, esse homem é um grande sedutor! Estás a ver esta pulseira de ouro, é um presente do mês passado, e este colar de coral, foi no dia em que aceitei entregar-me a ele… É curioso, temos os mesmos lenços de pôr na cabeça! Que indelicadeza da sua parte!...
- Cala-te! Não quero falar contigo.
O caso adquiriu rapidamente proporções graves e foi levado a tribunal. Antes de analisar o problema em pormenor, o juiz decidiu constituir um ficheiro clínico para cada um dos queixosos. Foram feitas análises: às urinas, ao sangue e também ao esperma de Slimane. Não iriam provar nada de especial. Era apenas uma formalidade. O que se descobriu iria, no entanto, abalar esta história. Os médicos eram categóricos: Slimane não podia ser o pai da criança que estava para nascer. Ele era estéril e sempre o tinha sido.
Este golpe teatral fustigou Slimane. Começou a beber. Passou a viver e a dormir no seu táxi. A esposa fez greve de fome e revelou ao juiz o nome do pai das crianças. Era o senhorio da casa onde moravam. Ela procurou explicar, a quem a quis ouvir, que nunca enganara o marido e que fora por amor a este que lhe tinham feito as crianças. Segundo as suas palavras: “Um homem nunca é estéril. A culpa é sempre da mulher!”
Tahar Ben Jelloun (هر بن جلون), O Primeiro Amor é Sempre o Último
[i] Em Marrocos existe o denominado “petit taxi”, veículo pequeno de diferentes marcas que circula no interior das localidades. Para efectuar a ligação entre povoações, o utente utiliza o “grand taxi” de marca Mercedes e cor creme.
Quando houve luz outra vez, compreendi que passara a Primeira Prova. As sombras levaram os receios da véspera. Ao lavar o peito e a cara num recanto do ribeiro, junto a Rosario que limpava com areia os utensílios do meu pequeno-almoço, pareceu-me que compartilhava neste momento, com os milhares de homens que viviam nas inexploradas cabeceiras dos Grandes Rios, a primordial sensação de beleza, de beleza fisicamente percebida, gozada igualmente pelo corpo e pelo entendimento, que nasce de cada renascer do Sol – beleza cuja consciência, em tais paragens, se transforma para o homem em orgulho de proclamar-se dono do mundo, supremo usufrutuário da criação.
[…]
Hoje tomei a grande decisão de não regressar para além. Tratarei de aprender os simples ofícios que se praticam em Santa Mónica de los Venados e que já se ensinam a quem observe as obras da edificação da sua igreja. Vou subtrair-me ao destino de Sísifo que o mundo de onde venho me impôs, fugindo das profissões insignificantes, do girar do esquilo preso em tambor de arame, do tempo medido e dos ofícios de trevas. As Segundas-feiras deixarão de ser, para mim, Segundas-feiras de cinza, nem haverá motivo para lembrar que a Segunda-feira é Segunda-feira, e a pedra que eu carregava será de quem quiser dobrar-se ao seu peso inútil. Prefiro empunhar a serra e a enxada a continuar a aviltar a música em ofício de pregoeiro. Digo-o a Rosario, que aceita o meu propósito com alegre docilidade, como receberá sempre a vontade de quem aceitar como varão. Tua mulher não compreendeu que esta determinação é, para mim, muito mais grave do que parece, posto que implica uma renúncia a tudo o que é de além. Para ela, nascida nos limites da selva, com irmãs amigadas com mineiros, é normal que um homem prefira a vastidão do remoto ao amontoado das cidades. Além disso, não julgo que, para se habituar a mim, tenha feito tantos ajustes intelectuais como eu. Ela não me vê como um homem muito diferente dos outros que conheceu. Eu, para a amar – pois julgo amá-la profundamente, agora -, tive de estabelecer uma nova escala de valores, ao ponto a que deve apegar-se um homem da minha formação a uma mulher que é toda uma mulher, sem ser mais do que uma mulher. Fico-me, pois, com toda a consciência do que faço. E ao repetir para mim mesmo que fico, que as minhas claridades serão agora as do Sol e as da fogueira, que todas as manhãs mergulharei o corpo na água desta cascata, e que uma fêmea cabal e inteira, sem evasivas, estará sempre ao alcance do meu desejo, invade-me uma imensa alegria. Encostado a um banco de areia, enquanto Rosario, de seios negligentes, lava os seus cabelos na corrente, agarro a velha Odisseia do grego, tropeçando, ao abrir o volume, com um parágrafo que me faz sorrir: aquele em que se fala dos homens que Ulisses manda para o país dos lotófagos, e que, ao provarem a fruta que nascia ali, se esqueciam de regressar à pátria.
[…]
Dou-me conta agora de que depois de ter saído vencedor da prova dos terrores nocturnos, da prova da tempestade, fui submetido à prova decisiva: a tentação de regressar.”
[…]
Digo para mim mesmo que a marcha por caminhos excepcionais se empreende inconscientemente, sem se ter a sensação do maravilhoso no momento em que este é vivido: chega-se tão longe, para lá do trilhado, que o homem, envaidecido pelos privilégios do descoberto, sente-se capaz de repetir a façanha quando quiser – dono do caminho negado aos demais. Um dia comete o irreparável erro de desandar o andado, acreditando que o excepcional possa sê-lo duas vezes e, ao regressar, encontra as paisagens alteradas, os pontos de referência desapareceram…
Alejo Carpentier (Havana, 26.Dez.1904-Paris, 2.Abril.1980), “Os Passos Perdidos”
[…]
- Ouça, senhor Zarco, por que não escreve umas memórias? – sugeriu-me ele quando se despediu de mim, sentindo que me incomodara. – Pelo menos assim pode contar tudo da maneira que quiser.
Parecia-me uma ideia absurda, mas, alguns dias depois de ele ter partido, peguei no cálamo e na tinta. Trabalhar dessa maneira produziu em mim uma estranha sensação de estar a fazer o que era correcto. Mais tarde, percebi que estivera à espera de dar voz à minha história desde que o Grande Inquisidor me dissera pela primeira vez a sua charada sobre um livro poder continuar a falar aos leitores muito depois de o terem terminado. Afinal, reduzir a minha história a escrito era a única maneira que tinha de, a partir do meu túmulo, falar de tudo o que acontecera. E era alguma coisa – talvez a única coisa – que podia dar de volta ao mundo em troca de todo o mal que fizera.
O Geral da Inquisição de Goa nunca poderia ter adivinhado que daquela maneira me estava a ajudar. E também isso parecia acertado.
Nestes últimos meses, sentado à secretária a escrever sobre Sofia, Wadi, Tejal, o meu pai e Phanishwar, tenho sido capaz de, para além de mim próprio, espreitar para os calabouços de Goa, de Lisboa e de uma centena de outras cidades na Ásia, na Europa e na América. Vi os homens e mulheres a apodrecer neles em nome de Cristo, Maomé e Krishna. Desejaria poder dar-lhes mais do que isto, mas isto é tudo o que tenho.
Em breve o leitor há-de fechar a capa deste manuscrito, selar-me lá dentro, e seguir o seu caminho, como lhe compete, mas talvez pense nesses prisioneiros – e em mim – de tempos a tempos. Agora que pego no último desenho da minha irmã e olho para ele à luz de uma única vela, talvez o leitor possa sentir até a morna brisa que entra pela minha janela em Bijapur, arrastando consigo o odor das flores de tamarindo. Consegue ver-me a pôr a mão sobre o contorno dos dedos que Sofia desenhou há tanto tempo? Vou rezar por que possa, e por muitas outras coisas:
Que Ana, Gonçalo, o meu pai, Sofia, Wadi, e todos os mortos descansem em paz.
Que Phanishwar tenha tido uma boa reencarnação.
Que Nupi tenha perdoado ao afilhado.
Que o meu filho nunca tenha sabido de mim e que Tejal tenha sido feliz.
A seguir, vou pegar na minha cruz de prata e sair para o meu alpendre para observar o pôr do Sol. Tentarei congregar alguma da coragem do meu pai, mas, por favor, não pense muito mal de mim se me vir tremer. Afinal, já sabe que não sou um homem muito corajoso, e, de qualquer forma, não é coisa fácil terminar uma história, mesmo uma história em que desempenhámos o papel do vilão.
TIAGO ZARCO
Bijapur, 14 de Maio de 1616
Richard Zimler, Goa ou o Guardião da Aurora
Cada árvore é um ser para ser em nós
Cada árvore é um ser para ser em nós
Para ver uma árvore não basta vê-la
a árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdida
e encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas
e de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a da árvore
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses
António Ramos Rosa
VII
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos
Sobre um poema
*****
Jornal de Notícias [11.Jan.2009]
Aproveito o aniversário da concessão do Foral para homenagear o Teatro Municipal da Guarda (TMG), pelo trabalho que desenvolve, na cidade, e de que aqui deixo um feliz exemplo: a edição de PARA SEMPRE... talvez não. Escrito por seis jovens [Ana Rita Costa, Filipa Almeida, Joana Romano, Lara Monteiro, Maria João Lopes e Rita Dinis] que, assumindo-se como personagens, nos dão conta das suas dúvidas, amores, angústias, erros, desilusões e esperanças no futuro.
Já falei desta publicação há tempos e parece-me que seria interessante a implementação, nas nossas Escolas Secundárias, de projectos deste género. Motivariam, sem dúvida, os alunos para a leitura e, porque não?, para a escrita.
________________________
Contactos do Teatro Municipal da Guarda
Rua Batalha Reis, nº 12
6300-668 GUARDA / PORTUGAL
Tel. 271 205 240 / Fax 271 205 248
O escritor açoriano Daniel de Sá foi agraciado com o grau de Oficial da Ordem Infante D. Henrique, a 10 de Junho, em Angra do Heroísmo. As cerimónias de entrega das condecorações realizaram-se, pela primeira vez em separado nas Regiões Autónomas, num sinal de "reconhecimento e respeito por estas terras e por estas gentes", como explicou o Representante da República, José António Mesquita.
Congratulando-me com este merecido reconhecimento da obra de Daniel de Sá, por parte da República Portuguesa, deixo aqui um dos seus belíssimos textos e um abraço de parabéns.
* Outros BLOGUES onde estou...
* MEMÓRIAS
* RECANTOS
* BLOGUES COM "EDUCAÇÃO"
* Ecos
* Movimento dos Professores Revoltados
* Movimento Mobilização e Unidade dos Professores
* Não calarei a minha voz... até que o teclado se rompa
* Paideia:reflectir sobre Educação
* Sem Rede
* IMPRENSA
* Expresso
* Público
* Visão
* OUTROS BLOGUES
* Murcon
* SÍTIOS
* Arquivo Maria de Lourdes Pintasilgo
* G.A.I.A.
* Meia-Noite ou o Princípio...
* Goa ou o Guardião da Auro...
* VER
* A propósito de religiões....
* Porque o presente é herde...
* DANIEL DE SÁ condecorado ...