Quem salva uma vida, salva todo o Universo.
Talmude
Aristides Sousa Mendes
[19 de Julho de 1885-3 de Abril de 1954]
Quem está a seguir, que história vem a seguir, que vida clama por salvação? As narrativas diferiam, mais ou menos, umas das outras, tal como os rostos, mas existia um ponto comum em todas: ressaltava o mesmo cansaço e sofrimento, assim como a mesma esperança. Tinham feito vários quilómetros desde casa e sido alvo pelo caminho das metralhadoras dos aeroplanos germânicos. Sobreviveram-lhes mas não sem o pesar de verem familiares seus sucumbirem a essas razias. Passaram fome e frio, para confluírem ali, na sua frente. Queriam um visto, por acaso para Portugal, mas era para a liberdade. E ele não os podia dar. Enfim, muitas vezes dava-os sem poder, mas não podia fazer isso com toda a gente.
- Vou enviar o seu pedido para Lisboa. Temos de esperar pela autorização… - Balbuciava Aristides ao casal na sua frente, sem convicção mas sem outra justificação para dar.
A mulher estava grávida, era espantoso como conseguira chegar até ali… para nada.
- Queres um café? – Perguntou Angelina acabando de entrar e salvando-o das suas inquietudes.
- Sim, por favor.
Ela irrompeu pelo escritório segurando a bandeja do café.
- Oh, coitada! – Deixou escapar Angelina mal pousou os olhos na mulher. – Está tão pálida. Sente-se bem? – A mulher apenas encolheu os ombros em resposta. – Não come há quantos dias? – De novo nenhuma palavra, apenas um sorriso tímido. – Venha comigo. – Angelina pousou a bandeja do café na secretária e pegou na jovem pelo braço, levando-a consigo para a residência consular.
- Vá com elas. – Disse Aristides para o marido que olhava perplexo para os acontecimentos. – A seguir?
A seguir chegava mais um comboio. Dia e noite comboios apinhados de refugiados chegavam à estação de Saint-Jean. Bordéus era, literalmente, o fim da linha para eles. Um carimbo no seu passaporte era o que lhes permitiria continuar. Aliás, vários. Para se sair de França seria necessário um visto de saída francês, mas este só se conseguiria com um visto de trânsito espanhol que por seu lado só era emitido se o requerente já tivesse o seu passaporte carimbado com um visto de trânsito português. É que uma passagem para o paraíso sempre se “vendeu” cara. Portugal, mais concretamente Lisboa, tinha-se tornado se não o último paraíso na terra, então o último paraíso na Europa, não por si, mas pela porta de saída que representava para outros continentes.
[…]
- Tenho de comunicar ao meu governo o pedido de visto.
Não tinha mais nada para lhes dar e de Portugal vinha sempre a mesma resposta: Cumpra a Circular nº 14. Cumpra, cumpra, cumpra, repicava na cabeça de Aristides como o badalar do sino da igreja em dia de Pentecostes. Já fora advertido que mais uma falta e sofreria um processo disciplinar. Além disso, sabia que as ordens eram para ser obedecidas. Mas tinham de ser todas? Até as absurdas? Até as desumanas?
[…]
Não havia forma de coadunar as instruções recebidas com as circunstâncias que se viviam em Bordéus. Não sabiam em Lisboa disso? Como podiam? Se ele que vivia o dia-a-dia em Bordéus ainda tentava encontrar essa solução, mas percebia agora que passava mais pelo milagre do que pela lógica. Como o demonstrava a atitude dos refugiados que, atulhando os acessos ao consulado, esperavam pela resposta ao pedido que Aristides enviara por telegrama para Lisboa. Desde antes das nove da manhã até à uma ou duas da madrugada, o cônsul e eles esperavam por um milagre. E enquanto esse milagre tardava, os nazis aproximavam-se.
À medida que os dias encaminhavam o mês de Maio para o fim, o avanço das tropas alemãs colocavam os franceses ao caminho, em direcção ao sudoeste da França, engrossando as intermináveis fileiras de refugiados luxemburgueses, belgas, austríacos, holandeses, russos, enfim, de quase toda a Europa. Partia-se porque se tinha medo e porque se via o vizinho partir. Ninguém queria ficar sozinho à espera do inimigo. Além do medo e da ansiedade, a anarquia também seguia os trilhos do êxodo. E todos eles pareciam desaguar em Bordéus, mais precisamente em frente ao nº 14 do Quai Louis XVIII.
De Lisboa poder-se-ia seguir praticamente para todo o lado. Aristides, obviamente, não o ignorava. Sabia que Lisboa não era, para aquelas pessoas que esperavam nas ruas por uma assinatura sua, um ponto de chegada, mas antes um ponto de partida. Porém, ele estava de mãos atadas.
[…]
Os passeios atulhados de gente, veículos estacionados e alguns até abandonados um pouco por toda a parte, revelavam a Aristides toda a dimensão do caos que grassava em Bordéus. Demorou-se mais do que o necessário para chegar à estação dos correios. O espectáculo das ruas prendia-lhe a atenção, e a convicção crescente de que não podia ser um simples espectador lhe tolhia os passos.
[…]
De novo na rua […]. As pessoas amontoavam-se nas praças, assim como os veículos. Aqueles que ainda tinham combustível para continuar, ou então eram movidos a tracção animal, emprestavam à cidade um movimento automobilístico como ele nunca vira. […]
Parou defronte do Le Régent. Espreitou a vitrina do café na intenção de se distrair, por momentos, da visão triste que o circundava. Mas a tabuleta afixada no vidro do estabelecimento teve a função contrária, desmascarando os detalhes sórdidos que ele ainda não percebera do espectáculo a que assistia. Em caracteres negros de imprensa, num fundo amarelado, informava-se: “Interdit aux chiens et aux Juifs”.
[…]
Aristides apôs os vistos nos passaportes, assinou e carimbou-os maquinalmente. A imagem da cidade virada do avesso não lhe saía da cabeça. A ideia de que ninguém fazia nada por aquelas pessoas também.
Sónia Louro, O Cônsul Desobediente
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