Terça-feira, 24 de Abril de 2012

Nova Teoria do Mal

Foto: Notícias Magazine

APRESENTAÇÃO

 

Escrito ao longo de um ano lectivo nos comboios da linha de Sintra – entre as negras suadas dos serviços de limpeza dos escritórios de Lisboa e as viúvas e os reformados de Rio de Mouro e Cacém, que, lobrigando-me cheio de livros, me pediam digna e discretamente 5 euros para a compra do remédio para o coração -, desconheço o real valor deste livro.

 

[…]

 

Deste livro, porém, como disse, desconheço a qualidade e as previsíveis consequências. Mas conheço a origem - a revolta moral contra o estado de vida degradado, autenticamente terceiro-mundista, de mais de 2 milhões de habitantes de Portugal.

Não podia encarar grande parte da classe política que governa desde meados da década de 1980 sem encontrar nos seus olhos, na sobranceria das suas atitudes, na prepotência das suas leis (extorquindo dinheiro à população, favorecendo os que mais o têm), no ar enfastiado e enfatuado com que no estrangeiro se referem ao povo português, culpando-o de um atraso cuja responsabilidade só às elites pertence, sem detectar neste conjunto de atitudes uma visível tendência para o mal que iam cometendo lei a lei, carregando-a de impostos governamentais, taxas camarárias, contínuos aumentos de preços de bens essenciais, extorquindo direitos adquiridos, apropriando-se do espaço público, forçando o cidadão a pagar cada pedaço minúsculo do património de todos.

Recentemente, um ministro ofereceu-nos um perfeito exemplo da tese sobre a banalidade do mal de Hannah Arendt. Suportado num documento programático assinado pelo Governo português com instâncias financeiras e políticas internacionais, apresentou um documento legal que, na prática, inibe a possibilidade de um número superior de transplantes nos hospitais públicos, o que significa, segundo uma técnica superior que de imediato se demitiu, que “haja doentes que se podem salvar mas que vão morrer porque o país está em dificuldades económicas” (Público, 3/9/11). Ou seja, o ministro, certamente homem de existência a mais normalizada, sem comportamento desviante, de registo criminal impoluto, porventura frequentador dos concertos Gulbenkian ao fim da tarde, o marido mais amoroso, o pai mais extremoso, o crente mais devoto, o colega mais gentil, o cidadão mais pacífico e cumpridor, sente-se habilitado, como Adolf Eichmann, a cometer os actos mais violentos e bárbaros desde que a sua acção se encontre legitimada por um sistema social e político ou uma teoria filosófica ou religiosa – é a “banalidade do mal”, prosseguida por homens normais, sem aleijões psíquicos, entorses sociais de infância ou traumas psicanalíticos. A acção deste ministro evidencia-se hoje como a face do mal – homens “bons”, no Governo, na direcção de grandes empresas, de grandes instituições, praticam o mal com o à-vontade próprio de quem está praticando o bem. Sabemos como tudo isto vai acabar – todos a pagarem tudo, sustentando um Estado que não retira um por cento aos impostos, pelo contrário, aumenta-os anualmente: pagaremos o Serviço Nacional de Saúde através dos impostos e pagá-lo-emos de novo como “utentes” deste serviço sempre que a ele nos dirigirmos. Dito de outro modo: uma minoria acabará riquíssima, a grande maioria paupérrima, e o Estado, vivendo à custa de ambas, sorvendo dinheiro e mais dinheiro, irá pagando a si próprio os erros de uma ou duas gerações de actuação de políticos medíocres desde meados da década de 1980, todos altamente recompensados pelos seus errados serviços à população que os elegeu. O Estado, assim desgovernado desde há cerca de vinte anos, é hoje ocupado por tais políticos, o maior inimigo dos portugueses. Nada dele há a esperar senão a arte de enganar as expectativas da população. Governo iniciado, logo aumenta impostos pessoais, IVA, transportes, gás e electricidade – como se vê, é, assim, facílimo governar (até eu daria um óptimo político) -, aumentam-se bens essenciais para empresas e população e depois, ingenuamente, com o ar seráfico que os economistas ostentam, pede-se que trabalhemos mais e sejamos mais competitivos. Da classe média, nada se diz porque não existe: padrão específico do Terceiro Mundo, não da Europa.

Portugal é hoje um país sonâmbulo: 600 000 desempregados, 2 milhões de pobres, outros tantos m risco de o ficarem se os apoios do Estado se esvaírem; 4 milhões de analfabetos funcionais; 85% de pequenas empresas instáveis com menos de dez trabalhadores; uma escala etária em acelerado processo de inversão e uma taxa demográfica de regeneração a rasar o nulo; uma oligarquia político-económica constituída por 50 000 burocratas impiedosos que se apoderaram ferreamente da totalidade das estruturas administrativas do Poder, cujo nível cultural sobre a história de Portugal e comoção sentimental face à pobreza são praticamente inexistentes; um sector imobiliário envelhecido de casas apertadíssimas de duas assoalhadas; uma política administrativa que se apoderou de todos os espaços públicos patrimoniais, exigindo subidos pagamentos para a sua frequência; esperas de 4 horas em serviços médicos de urgência e de meses e por vezes anos para uma simples operação, 3 a 4 meses para uma operação de urgência a um cancro, 19 meses de espera para uma consulta de obesidade nos hospitais públicos (Público, 5/10/11); subúrbios miseráveis próprios do Terceiro Mundo; um relativismo ético entre os cidadãos que imita a corrupção nos negócios do Estado e a total falta de ética presente na vida de políticos conhecidos, cujo exemplo (i)moral reside no oportunismo partidário e na ocupação desenfreada e terrorista de funções públicas, sacando do Estado o máximo possível em honorários – elite altamente incompetente: uma autêntica mancha podre que infecta a totalidade da vida nacional e corrói a dignidade de qualquer cidadão eticamente nobre. Guiado por esta elite, que se assenhoreou dos postos governativos e dos lugares do Parlamento, meras cabeças de rebanho, totalmente desprovida de cultura e de sentido ético, Portugal não tem outro destino senão seguir as soluções formatadas que fizeram da França, da Itália e da Inglaterra países hoje historicamente decadentes, dos quais nada há a esperar de promissor no futuro.

 

 […]

   
 

A progressiva e aceleradíssima informatização electrónica da sociedade por via de uma ideologia sem rosto nem personalidade, assente exclusivamente no controle e na segurança, e a funda queda demográfica anunciada para meados deste século por via das políticas sociais relativas à família provam a profundíssima descristianização de Portugal, de efeitos absolutamente imprevisíveis na criação de uma sociedade futura desprovida de éticas espirituais assentes em valores humanistas, porventura obediente a um totalitarismo tecnocrático e informático, pelo qual os portugueses vindouros abdicarão da liberdade em nome da segurança e da abastança. Desde a década de 1990, o aparelho de Estado, privilegiando exclusivamente um sector da sociedade –a economia-, desprezando fundo os valores morais e espirituais próprios da cultura portuguesa, tem gerado na mente dos portugueses uma representação parcial de si próprios  que, incapaz de se elevar à unidade de uma ideologia estruturada e consolidada, se caracteriza pela passividade cívica, compensada por uma hipervalorização do individualismo, assente na fórmula amoral do “salve-se quem puder”. Mistura de complexo pombalino com um arreigado individualismo americano, o projecto político português caracteriza-se hoje, no princípio do século XXI, pela exaltação unidimensional do homem técnico, o homem-eficiente, o homem contabilista, o homem robótico, desprovido de consciência histórica global, funcionando exclusivamente segundo o duplo horizonte de raciocínios técnicos quantitativos e consequentes objectivos. A classe política recente, posterior à dos fundadores da nossa actual democracia, encarna em alto grau de excelência este tipo de homem. Não são políticos os nossos governantes de hoje, mas economistas (os falsos profetas do século XXI), técnicos, robots substituíveis uns pelos outros, possuindo o mesmo vocabulário, aplicando invariavelmente o mesmo argumentário  da eficiência de custos e proveitos, totalmente desacompanhados de uma dimensão cultural e espiritual para a sociedade.

 

[…]

 

Como não sou político, nem vocação para tal tenho, não escrevi sobre o Estado e a política, mas sobre o fundamento filosófico que confere prazer interior à acção pela qual um homem, situado em centro de poder, humilha outro, extorquindo-lhe direitos – o mal.

 

[…]

 

Hoje, sempre que vos apareça no ecrã da televisão um economista com funções governamentais – não duvideis: eis a face explícita do mal, aquele que levou a Europa à decadência e se prepara para, alegremente, destruir o planeta.

 

[…]

 

Lamento que o leitor não possa sentir o cheiro das camisas suadas das negras minhas vizinhas de comboio, que, como escravas, nos lavam as retretes e aspiram e enceram os nossos corredores, e não possa contemplar o olhar aguado de tristeza, resignação e frustração dos milhares de velhos de Mem Martins e do Cacém que, após uma vida de 40 a 50 anos de trabalho, recebem da comunidade umas parcas 30 moedas de Judas para que não caiam mortos de fome a cada esquina. Lamento. Se eu tivesse tido esse talento, o leitor não precisaria de ler este livro: sentiria e contemplaria sem intermediação a face do mal.

 

Miguel Real, Nova Teoria do Mal

publicado por Elisabete às 15:55
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