Terça-feira, 28 de Julho de 2015

A ESPIRAL REPRESSIVA

Camilo LUAR DE Janeiro.JPG

Tão inevitável como a morte?

 

A concentração do capital, facilita, estimula e permite, comprar a concentração do poder político.

O poder político, (também o pseudo-democrático) adquirido pelos donos do capital, é usado como arma suprema contra quem vive do seu trabalho.

Os donos do capital, para defender os seus interesses, passaram a preferir as armas “democráticas.” Aquelas que sem prender formalmente as pessoas por delitos de opinião, até lhes permite eleger os seus representantes, desde que os escolhidos sejam quem eles querem e em quem confiam.

As vias democráticas para impor os interesses do capital e sujeitar quem trabalha às suas leis, começam a ser demasiado óbvias e perceptíveis aos olhos das vítimas e, por isso, mais uma vez, os capitalistas pressentem o perigo e cerram fileiras em defesa dos seus privilégios, daí a propalada ostentação de firmeza e cega irredutibilidade na decisão de querer arrebanhar, custe o que custar, o dinheiro que semearam nas grandes sementeiras da especulação, feitas em “terras de reduzida fertilidade”.

Nervosos, perante as ténues ameaças que o futuro desenha, “reagem à capitalista”e não resistirão à tentação de recorrer à força das armas e da repressão generalizada, para tentar “controlar à nascença” as tempestades sociais que as suas humilhações provocaram.

Ilusão!

Aos Homens, Aos Países, às Comunidades Humanas, às Sociedades Nacionais ou supra-nacionais, nada as empurra mais irracionalmente para a voracidade incontrolável da Guerra do que a Humilhação. Pelos vistos, para lá caminhamos de novo!

E a partir do momento em que a Espiral Repressiva do Capitalismo sinta de novo a necessidade de abandonar a capa sacrossanta da camuflagem democrática, privando-nos também das liberdades formais… aí, (demasiado tarde?) contra a violência despida de cinismos, toda a violência revolucionária será de novo legítima, desta vês à escala da Europa, tem der ser. Aí, disso não tenho dúvidas, o Povo português, a sua juventude, estarão de novo dispostos a sacrificar as vidas, para chegar de novo à Av. da LIBERDADE.

É imperioso obrigar os capitalistas (os lobos) a despirem os seus disfarces de cordeiros.

 Desengane-se quem avilta a dignidade humana. Mais segura, tranquila e feliz é a vida duma família socialmente solidária, que a vida duma família muito rica de património conseguido à custa da miséria alheia.

 

Camilo Mortágua

(Julho de 2015)

 

publicado por Elisabete às 15:44
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Terça-feira, 7 de Janeiro de 2014

Marina Ginestà

Éramos periodistas y nuestra profesión era que no decayera nunca la moral, difundíamos el lema de Juan Negrín “con pan o sin pan, resistir”. Y nos lo creíamos.

  

Nascida a 29 de Janeiro de 1919, em Toulouse, Marina Ginestà cedo se muda, com seus pais para Barcelona, onde passa a fazer parte das juventudes do PSUC (Partido Socialista Unificado da Catalunha).

Em 1936, com outros companheiros, organiza a chamada Olimpíada Popular, em resposta aos Jogos Olímpicos de Berlim.

Depois do insucesso do golpe de estado de 18 de Julho de 1936 contra o governo da II República Espanhola e do início da Guerra Civil, surge a Revolução Social na Catalunha. As Juventudes Socialistas instalam-se no Hotel Colón, entretanto abandonado pelos clientes. É dos seus telhados que o fotógrafo Hans Gutmann a fotografa, a 21 de Julho de 1936, tendo ela apenas 17 anos, transformando-a num símbolo da Guerra Civil.

Como jornalista e tradutora, traduz Mijail Koltsov, correspondente do diário PRAVDA (URSS) e, com ele, entrevista o líder anarquista Buenaventura Durruti, crítico de Estaline.

Pouco antes do fim da guerra é ferida e evacuada para Montpellier.

Quando a França é ocupada pelos nazis, ruma ao México. Exila-se na República Dominicana. Em 1946, vê-se obrigada a abandonar o país, perseguida pelo ditador Rafael Trujillo.

Nos anos 60 do século passado, volta a Barcelona. Residia, actualmente, em Paris, onde morre a 5 de Janeiro de 2014. 

Fonte Wikipédia

publicado por Elisabete às 14:20
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Sábado, 4 de Janeiro de 2014

CONFISSÃO DA IMPOTÊNCIA TEMPORÁRIA

Ouvi há pouco umas declarações na rádio de Freitas do Amaral sobre o OE. Muito impressionante. Tive a sensação de que estava a ouvir aquilo que querem fazer passar pela opinião apenas da 'esquerda radical': "[o OE] não é proporcional, nem é progressivo. É regressivo. É tempo de dizer basta! Se não ainda vem aí uma ditadura". Sobre isto falarei em baixo. Ontem a entrevista de Jorge Miranda no Público mostrava igualmente a total incompreensão do governo do que é um estado de direito e um tribunal constitucional.

De outro modo, as análises sobre a diminuição dos manifestantes, as dez hipóteses colocadas pelo editorial do mesmo jornal na edição de hoje, sublinham a crescente dificuldade daqueles que continuam a protestar nas ruas em juntar multidões. Não sei se estão certas ou erradas as tais dez hipóteses. Mas uma coisa é certa: a resistência nas ruas tem limites - o cansado, o desânimo, a fadiga natural após dois anos e meio de tortura - face aos reduzidos efeitos produzidos.

O que é pior é que as declarações que referi, correm a meu ver o mesmo risco: serem quase inúteis, do mesmo modo que este texto que escrevo será (quase) inútil. E podemos regressar ao tema da ditadura. A ditadura não vem aí. A ditadura já cá está. Quando escrevi há um mês e tal que Passos Coelho não se demitiria nem com um canhão de um Chaimite de Salgueiro Maia apontado à cabeça, usei uma linguagem "inapropriada", tal como Soares quando disse que este governo tinha "delinquentes" - sendo uma evidência que tem alguns. Trata-se de um novo tipo de ditadura. Primeiro tem um suporte institucional-bancário da UE que estará para durar. Segundo, traduz um aprisionamento do aparelho de estado pela quadrilha chefiada por Passos e Portas, com o padrinho Cavaco por trás a assegurar "o bom funcionamento das instituições" tendo os bolsos com o rendimento das acções por convite do BPN. Só por si isto é uma vergonha. O PR. Como se não chegasse, agora lá está Machete - outra vez tudo legal - para nos mostrar de que forma a delinquência financeira está no topo do estado. Por isso é que lançam ferocidade contra o Tribunal Constitucional - o único órgão que ainda não demoliram - com o miserável apoio da Sra Lagarde, do Sr. Barroso, e doutros senhores dos bancos ex-fugitivos ao fisco. Mesmo contra a letra dos tratados europeus que os suportam. Não se acredita nesta conjugação tenebrosa de factores.

Mas não podemos esquecer os outros países (tendência que temos em larga escala). Em que país é que as manifestações de facto gigantescas produziram resultados? Na Grécia? Em Espanha? Parece-me que não produziram. Exprimiram repúdio e revolta, por vezes com violência, é certo, mas não conseguiram inverter as políticas comandadas de Bruxelas. Quando as expectativas eram grandes e os resultados foram reduzidos ou nulos é compreensível que haja alguma desmobilização. Por isso é normal que isso ocorra. Desculpem mas é normal. Não é preciso analisar muito, excepto na medida em que possa ajudar a reflectir sobre os momentos das suas convocatórias, em lugar de lançar acusações "a quem não está". Uma coisa é ser "revolucionário profissional" - conheci alguns - outra coisa é ter um emprego, um trabalho, uma casa, tudo aquilo que sempre foi duro e difícil para muitos e ainda por cima reservar energia suficiente para ir para as ruas muitas vezes com resultados que podem encher a alma de alguns mas que não se traduzem em mudanças reais. Se se traduzissem julgo que muito mais gente iria. É uma questão simples de avaliação intuitiva das consequências das acções. Para que é que serve? será a pergunta que muitos farão. É sábio não responder com acusações, porque se poderia devolver outra pergunta: E se tivesse estado um milhão de pessoas? Seria diferente?

A quadrilha que está no poder, que até enfurece mesmo gente da direita clássica, não tem escrúpulos, nem valores, nem vergonha. Tudo que diga respeito a dinheiro lhes é suficiente como argumento. A mentira e a demagogia é-lhes constitutiva. Não sei o que irá acontecer a curto prazo. Suspeito que o "Basta" de Freitas do Amaral terá as mesmas consequências do "Basta" de Arménio Carlos e muitos outros. Nenhumas. Reparem: eu também acho que Basta, já há muito tempo. Mas os nossos vários Basta não derrubam quadrilhas no poder que, legitimadas pelo voto em tempos de mentiras, se julgam legitimadas para tudo. E o tempo das revoluções clássicas já lá vai, até ver. Até ver. Historicamente, se nos colocarmos na União Soviética dos anos 30, no Chile de Pinochet, na Argentina dos coronéis, na Itália de Mussolini, ou na Espanha de Franco, saberemos o horror que deve ter sido ter de continuar a viver naqueles locais - apesar das suas diferenças - nesses longos anos. Uns morreram, fuzilados, outros fugiram e exilaram-se, outros, talvez com menos sorte, ficaram e tiveram de sobreviver como puderam. E alguns aproveitaram para enriquecer. Como agora por toda essa Europa fora. Se não for antes em 2015 iremos correr com esta quadrilha, seja como for e para o que for.

O problema é aquilo que de criminoso fizeram entretanto. Uma vez cortada, é impossível recolocar a cabeça de Luís XVI no seu antigo lugar.

Fica o lastro do irreconstituível.
António Pinho Vargas 
publicado por Elisabete às 22:15
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Quarta-feira, 13 de Novembro de 2013

Andanças para a Liberdade II

Esta apresentação, que aqui deixo escrita, sobre o livro do amigo e companheiro Camilo Mortágua, é a continuação do texto que fiz sobre o 1º volume das Andanças que trata do período entre 1934 a 1961.

Trata-se do resumo do livro, tal como o seleccionei, mas quis dar a “verbe” pessoal da narrativa ao autor e daí as longas citações.

Não é nem um estudo literário nem uma crítica histórica. É, antes de mais, uma ficha de leitura que utiliza retalhos da história de vida, escrita pelo seu próprio autor. É assim um resumo descritivo.

Pretendo, com este texto, fazer uma apresentação de cerca de meia hora como se tratasse de um clube de leitura dos meus tempos de juventude, em que um dos participantes fazia o resumo dum livro e a partir daí desenvolvia-se um debate. Isto era, naqueles tempos do fascismo, uma maneira de improvisarmos uma “catedral proletária”, conceito que no séc. XIX, nos meios operários, veio a gerar as conhecidas universidades populares.

Este livro do Mortágua, história de vida e história de ensino, tem a singularidade de ser um extraordinário documento para o entendimento da luta antifascista.

E, para melhor saborear este texto vivido, é necessário ouvir o testemunho directo do seu autor. A sua escrita, tão rica de imagens e de oralidade, torna esta prosa imprescindível para compreender a profundidade de uma experiência de vida, de suor e de lágrimas mas também de humor, coragem e amor que aqui vamos conhecer.

  Na recensão sobre o primeiro volume escrevi que, por detrás da linguagem coloquial e espontânea de Camilo Mortágua, a oralidade presente na sua narrativa surpreendia pela profundidade que ela revelava.

Camilo Mortágua usa uma metodologia perspicaz que lhe permite um alargamento da consciência a que Platão se refere num dos seus diálogos filosóficos. Assim como Platão pretende chegar à consciência pela capacidade de distanciamento do instinto, das emoções e da inteligência com o socorro dessas três componentes antropológicas do “Eu”, Camilo Mortágua utiliza os três elementos que constituem o que ele designa por “CAAC” (Colectivo de Auto Análise Comportamental) e que se refere aos seus três heterónimos que lhe permitem uma tomada de consciência mais ampla e reflexiva: “Come e Cala”, o “Batata” e “Zé Ninguém”.

Para obter esta consciência mais ampla e reflexiva, Camilo Mortágua escuta a vivência integral do seu ser: o instinto, as emoções e a inteligência, obtendo assim olhares diversificados para ver e prever as situações. Procura explicar a sua própria viagem. Assim, tal como Platão na sua metáfora sobre a articulação complementar do “coche”, dos “cavalos”, do “cocheiro” e do “rei”, também Camilo Mortágua sabe que para uma maior consciência é necessário dialogar com os vários heterónimos que constituem a sua própria personalidade complexa. 

A comparação metafórica de Platão é a seguinte:

  1. O “coche”, instinto, é o corpo mecânico em que cada um de nós se desloca;
  2. Os “cavalos” são as emoções, força viva dos afectos contraditórios e temperamentos desiguais que marcham nestes animais atrelados ao veículo;
  3. O “cocheiro”, inteligência intelectual, harmoniza as funções múltiplas do “coche”, dos “cavalos” e dos “arreios” (rédea e chicote) próprias da sua competência.
  4. O “rei”, que se encontra dentro do veículo, é o “eu superior” ou seja, a consciência reflexiva que ilumina a marcha e dá sentido à viagem a fazer.  

Este segundo volume começa em 1961. “1961 O Ano Que Mudou Portugal” como escreveu João Céu e Silva é também o ano em que uma grande mudança se operou em Camilo Mortágua.

“29 de Janeiro de 1961”, como escreve Camilo Mortágua, “era um domingo luminoso. Um fim de tarde cinematográfico.” Como se pode ver, esta escrita transporta os factos históricos para um cenário real que nos surge agora como uma espécie de filme de suspense.

A força das imagens, a sedução encantatória dos ambientes e a acção permanente deste enredo vivenciado, transforma-nos a nós em personagens do próprio filme dos acontecimentos.

 

…num mar calmo azul celeste, pintalgado de faíscas de branca espuma, um ou outro pássaro esvoaçando em busca de abrigo para a noite, o Santa Liberdade, a baloiçar muito docemente, quase tão quieto como se estivesse ancorado no cais de Alcântara, quieto mas livre, em águas internacionais, uma meia centena de milhas ao largo do Recife.

Reunidos à proa num canto do deck superior (eu e os inseparáveis companheiros do meu “colectivo de auto análise comportamental” – CAAC) desfrutávamos da leve brisa que até nós trazia os acordes e as palavras da canção que amenizou os nossos dias de incertezas e encantou os animados bailes deste que foi, para a maioria dos passageiros, um inesperado e emocionante cruzeiro e, para os mais românticos e ousados, apesar do imprevisto, uma inesquecível viagem no barco do amor. (MORTÁGUA, 2013, 21)

É neste contexto que o embevecido poeta Camilo Mortágua desperta ao som do “Samba canção” de Dolores Duran que ouvia do grande salão onde decorria o animado baile: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier para enfrentar a noite do meu bem”.

Essa tomada de consciência surge rapidamente. Retomado o triálogo do colectivo de auto análise comportamental, a narrativa vai transformando esta história de vida cada vez mais empenhada na acção política do assalto ao Santa Maria. Esta operação de primeiro plano na panorâmica histórica é-nos apresentada com um contexto das chefias desta espantosa operação revolucionária, pioneira na história da revolução – a tomada de um barco.

Galvão respondia pelos portugueses e, pelos espanhóis, respondiam os Sottomayor e o Junquera de Ambia. Em seguida assistimos às visitas que chegam para observar e divulgar o sucesso da operação.

Os americanos chegam no “monstro cinzento com grandes números pintados de branco.” Era um submarino da esquadra americana com o contra-almirante Smith, representante do Presidente Kennedy. Vinha entabular conversa com o chefe Galvão, “Sandokan das Caraíbas” como lhe chamara uma senhora americana que viajava a bordo do Santa Maria.

Depois, Camilo relata ainda o nome dos comandos que tomaram o Santa Maria e traça-lhes o perfil profissional, analisa diferenças pertinentes nas chefias e tem tempo para narrar a lírica história de um amor entre uma jovem de 18 anos, a Magda, que pretendia ficar com o seu namorado, um dos companheiros do grupo de Camilo Mortágua, já depois do desfecho da operação. Prestimoso e elegante, Camilo Mortágua aconselha-a a partir, juntando-se assim aos outros passageiros que desembarcaram.

A atmosfera romântica finaliza esta epopeia do barco Santa Maria e Santa Liberdade com a citação de Natália Correia que chamou ao Santa Maria “pedaço da terra transportuguesa, longo símbolo e prenúncio da libertação do seu povo”.

A nostalgia saudosista percorre também a comoção de Camilo Mortágua a 3 de Fevereiro de 1961, quando disseram adeus ao Santa Maria.

 

“Naquela hora, pareceu-me um barco triste. Já não era aquele Santa Maria que entrara no porto do Recife adentro engalanado de brilhantes luzes e bandeirinhas coloridas.” (Idem, pág. 34)

 

Esse tempo no Brasil teve festa e regozijos. Os homens do Santa Maria eram disputados por toda a gente. Bailes e galas carnavalescas do Rio fizeram deste período um tempo de felicidade.

Porém, as andanças para a liberdade são feitas de claro e escuro, de sobressaltos e euforias. Por isso veio também o lado cinzento das revoluções. A narrativa desta audaciosa e prometaica operação dá lugar à soturnidade da noite, das quezílias e das traições. As divergências pessoais entre os exilados Galvão e Delgado são aqui relatadas. É com uma elegância acutilante que ele descreve essa situação. É um pano de fundo histórico que ensina a amadurecer, a conhecer homens e situações. E é assim que ele vai descrevendo a sua própria transformação. Por isso, este livro é também uma história de vida que é história de ensino para si próprio e para nós leitores. E, na monotonia triste daqueles dias, vai surgir a presença de Palma Inácio que lhe proporciona uma nova etapa na sua vida.

Segue-se então a viagem para Marrocos. Chegados aqui, fixam-se em Tânger. A casa é perto do Café Zagora onde a PIDE e seus acólitos rondam e observam o paradeiro dos revolucionários que se preparam para uma nova operação. Entre confusões e indecisões Palma Inácio revela o grito do canto do homem de José Régio que Mortágua cita:

 

Livre não sou, que nem a própria vida mo consente, mas a minha aguerrida teimosia é quebrar, no dia-a-dia um grilhão da corrente (Idem, pág. 73)

 

Foi decidido o novo plano da batalha, que Henrique Galvão denominou a operação “Vagô” escrevendo também o famoso panfleto que vai ser lançado de avião sobre Lisboa. A cena da tomada do avião que iria sobrevoar Lisboa é digna dum filme de acção. Depois de várias peripécias com pistolas e passaportes no aeroporto de Tânger, entram num “superconstelation” da TAP.

 

Quando o Palma deu sinal, levantou-se e dirigiu-se para a cabine de pilotagem. Segui-o. Entramos os dois. Atrás de nós Amândio e os outros companheiros posicionaram-se para impedir o acesso à cabine.

Meus senhores, muito bom dia, diz o Palma, em nome do Capitão Henrique Galvão queremos alterar o plano deste voo. Ou obedecem e tudo se passará normalmente, ou cedem-me o comando, obrigados pela força das nossas armas. Espero que a vossa colaboração seja pronta e sem hesitações.

Tínhamos fechado a porta da cabine atrás de nós e o Palma, de arma em punho, num tom muito calmo, de pé, olhando de cima para baixo, tinha-se dirigido ao Comandante e Auxiliares, sentados de costas para nós, nos seus respectivos postos.” (Idem, p.78)

 

 

 

Esta operação permitiu uma acção de larga propaganda que muito contribuiu para o reforço do antifascismo. Os panfletos lançados sobre Lisboa foram, como diz o Mortágua, foguetes a anunciar o princípio do fim da era do ditador Salazar e o princípio da tão desejada era democrática.

Regressam então novamente a Marrocos e depois, num compasso de espera, aguardam de novo o retorno ao Brasil. Camilo conta as dificuldades que vão sofrer com os vistos e as burocracias, revelando assim os compromissos da política internacional com Salazar. Nesta contenda sobressai a figura de Henrique Galvão que Camilo Mortágua reverencia. Contrariando a maior parte das posições assumidas por outros democratas, Camilo Mortágua considera Galvão como um consequente combatente e também um esforçado anticolonialista. A carta que Henrique Galvão escreveu a Camilo Mortágua revela realmente um dirigente bastante consciente das problemáticas tortuosas do processo revolucionário.

De 1965 a 1967 uma nova etapa se vai desenrolar na notável peripécia que é a sua vida. Parte para França vindo do Brasil. Aí refere o contexto da vida dos exilados com as suas facções, o seu lado escuro e luminoso. Relata duma forma realista a vida dura dos emigrantes, as misérias e alegrias contadas com uma inaudita capacidade narrativa, com comoção, nostalgia e compreensão humanista.

No meio de alguma agrura vai surgir de novo, na vida de Camilo Mortágua, como se de um paradigma luminoso se tratasse, a figura heróica de Palma Inácio. Juntam-se também Luís Benvindo e António Barracosa.

Realiza-se então a portentosa operação da Figueira da Foz relatada por Camilo Mortágua de forma épica e cheia de humor. Trata-se duma empresa de génio, de audácia e virtuosismo, duma iniciativa que vai permitir auto-sustentar um processo revolucionário através duma acção exemplar.

Camilo Mortágua resume assim a ideia: “A audácia torna o impensável possível.”

Esta operação foi um ato com contratempos, temores mas também riscos e audaciosas soluções. A sorte e o azar, o contexto envolvente e a iniciativa pessoal metamorfoseiam-se. E assim, os revezes da situação são por vezes promissoras “chances” de vitória. Este grupo revolucionário experimenta esta alquimia de transformar o negativo em positivo.

 

Se bem me recordo a nossa entrada no banco não teve nada a ver com aquelas cenas que se vêem nos filmes. Cara destapada, trajados normalmente, entramos como o faziam os clientes normais. Palma, eu, Barracosa e Benvindo, não sei se exactamente por esta ordem, uma vez colocados nas posições previamente combinadas, ficando um de guarda à porta para não deixar ninguém sair, mas permitir a entrada a quem quisesse entrar. O Palma anunciou ao que íamos e precisou a natureza política do ato, convidando os responsáveis a abrir imediatamente a casa forte …

Um dos gerentes, com um sorriso nos lábios disse: Não se pode abrir a casa forte porque falta uma pessoa que está ausente. São precisas três chaves e de momento só cá estão duas… Após um ligeiro parpadear colectivo, o Palma, com um ar tranquilo respondeu: Não faz mal, nós esperamos!

E esperamos aproximadamente 15 minutos em tempo real. Todo o tempo do mundo para quem o viveu, ou pelo menos o tempo suficiente para fazer minuciosa revisão do vivido e uma resignada perspectivação muito incerta do futuro imediato. Coisa insólita, o meu “caco” manteve-se absolutamente mudo e quedo, cada um tratando de cumprir com a maior concentração possível a missão que lhe estava destinada. Ao Palma e ao Barracosa competia-lhes manter os gerentes na ordem desejada e entrar dentro da casa forte, ensacar a mercadoria e entregar a cada um de nós um saco (apesar das inúmeras análises feitas durante a preparação, persistiam grandes dúvidas sobre o volume e o peso do “papel”); ao Benvindo, assegurar que quem se apresentasse à porta tinha de entrar e ninguém podia sair. A mim, a função de fechar na casa de banho quem entrasse e olhar atentamente para o conjunto.

Quando a terceira chave chegou com o gerente ausente, quem mais respirou de alívio foram os próprios funcionários do Banco. Posto ao corrente da situação, lá se convenceu que não tinha alternativa e a pesada porta do “tesouro” foi escancarada… Feita a “limpeza”, o Palma voltou a falar. Depois de voltar a insistir na natureza política do assalto e de felicitar todos os presentes pelo seu comportamento responsável que em muito ajudaria a causa da liberdade do nosso Povo, recomendou-lhes o seguinte: “As nossas vidas vão ficar dependentes do vosso comportamento nas próximas duas horas. As nossas mas também as vossas e a dos vossos filhos que neste momento são acompanhados por companheiros nossos. Mantenham-se quietos e dentro do Banco, sem qualquer tentativa de alarme. E assim tudo correrá bem para todos. O primeiro que ultrapassar a porta de saída, durante as próximas duas horas corre risco de vida. Não arrisquem a vossa vida pela ditadura”. 

Cada um com a sua carga ao ombro, um de cada vez, lá fomos saindo da” mercearia” com os nossos “sacos de batatas”. Passada a porta, dobrando à esquerda, e percorrendo os tais trinta passos pelo passeio até ao carro que nos esperava depois da esquina, saudando pelo caminho o polícia de segurança com quem nos cruzávamos, a andar para cá e para lá na sua rotina de todos os dias… O Ângelo Cardoso aguardava sentado no banco de trás do carro para abrir portas e dar rápida entrada ao Benvindo, condutor designado para o percurso até o aeródromo de Cernache. Com os cinco instalados e a mercadoria acondicionada na ampla bagageira, partimos por volta das 15h30.

Observando à nossa volta, nada se tinha passado de anormal. Comecei a acreditar que nos safaríamos daquela. Passados uns dez minutos, numa curva da estrada, com densa vegetação, a uns dez quilómetros da partida o Cardoso disse: “É aqui.” Com a viatura ainda em andamento saltou para a berma da estrada e atrás dele foi um saco, saco do qual mal podíamos ter adivinhado que alguns meses mais tarde, viriam a esvoaçar “ao vento que passa” pela recta de Mira e em outros pontos do País, como passarinhos enviados do céu, bilhetes de conto de reis! Consequências de andanças outras, que por serem essencialmente alheias, a memória não pode registar. 

Sem percalços, chegamos ao aeródromo de Cernache. Ali paramos o carro perto da avioneta e o Palma dirigiu-se ao guarda que já conhecia de anteriores visitas. Acompanhando pediu para encher o depósito, enquanto nós esperávamos um pouco distantes do hangar que servia de residência ao guarda e sua família.

Como não havia tempo a perder, perante a sua estranheza pela nossa atitude algo nervosa e inquieta, logo ali se explicou do que se tratava. Para lhe evitar complicações futuras o melhor seria ele e a mulher deixarem-se amarrar, para ficarem quietos o tempo suficiente até chegarmos ao nosso destino que evidentemente não dissemos qual era.

Sentaram-se em duas cadeiras às quais foram “atados”. Coube-me a mim “prender” a senhora, coisa que jamais tinha feito. A situação complicou-se quando o bebé começou a chorar. Então… vá lá… não se enerve, quer ver? Chegamos a cadeirinha do bebé para a senhora e deixamos-lhe um braço livre para lhe poder dar o biberão. Assim podiam ficar sossegados…

Quando o “desvio” da avioneta foi conhecido e a polícia ligou o caso ao assalto ao Banco, se a memória não me falta lá por volta das 7h da tarde, já o “passarinho tinha poisado” numa larga pista improvisada acabada de rasgar para mais uma urbanização turística algarvia em Vila do Bispo, não muito longe de Sagres, lugar cimeiro da preparação de outras e mais importantes andanças dos portugueses.(Idem, pp.174, 175).

 

A dupla, Palma Inácio e Camilo Mortágua, revelava-se complementar. O pragmatismo e a vivência rural davam a Camilo Mortágua uma sabedoria que corrigia e agilizava a competência, a coragem e a destreza de Palma Inácio.

Diríamos estar face a um tipo “pícnico”, à Sancho Pança, o Camilo Mortágua e a um tipo mais “esquizotímico”, à D. Quixote, o Palma Inácio.

Essas polaridades temperamentais vão manifestar-se quando, de regresso a Paris, Palma Inácio e Camilo Mortágua contactam de novo os históricos democratas. Porém, Camilo Mortágua considerava Emídio Guerreiro como um velho tartufo enquanto Palma Inácio se deixava impressionar pelo passado e pela prosápia do político burguês.

No entanto, Mortágua, apesar das diferenças entre ambos nunca abdicou da sua fidedigna amizade a Palma Inácio.

  

O Palma, meu companheiro por ponderada opção mútua, minha força de “frape”, minha garantia da possibilidade de se fazer aquilo que se pensasse, meu comandante e nosso eficaz executante, homem inteiro e por isso teimoso à sua maneira, de poucas palavras, serenamente determinado, capaz de compreender muito mais do que dava a entender, incorruptível no seu amor à vida e à liberdade, avesso a proibições e práticas redutoras das liberdades individuais, amante dos prazeres da vida, apreciando a liberdade como o maior deles; configurador absoluto do modelo das suas relações humanas e amorosas; nada adiantava pretender corrigir-lhe os defeitos. (Idem, p.186)

 

Nasce então a “LUAR” que inicia esta relação matricial com o enfeudamento ao “famigerado conselho superior” constituído por “líderes políticos da velha guarda”.

E assim, como diz Mortágua, “esses oportunistas de gabarito, viam-se já líderes duma organização revolucionária, protagonistas da história do combate contra a ditadura, sem para isso terem mexido uma palha.”

Por isso o Conselho Superior tutelou, daí em diante, a vida da LUAR. Essa tutela compreendia, bem entendido, a gestão dos dinheiros conseguidos na operação Mondego – Figueira da Foz – que se revelara uma árdua e arriscada operação.

Com este contexto, “o bando dos 4” (Mortágua, Palma, Barracos e Benvindo) retoma o ímpeto revolucionário que os animava e no portentoso ano de 1968, planeiam e organizam a operação do assalto à Covilhã. O projecto e a organização desta operação, a tomada da cidade da Covilhã por algumas horas, revelou diferentes concepções e sensibilidades, em particular a postura de Hipólito dos Santos, referenciada no seu livro “Felizmente Houve a LUAR” e de Camilo Mortágua.

Camilo escreverá:

 

Discordei, não porque a acção me parecesse politicamente incorrecta ou mal pensada mas simplesmente porque em meu entender era demasiado exigente para os meios e recursos de que dispúnhamos. Quando, pela primeira vez estávamos na posse de um lote razoável de armamento, quando o nº de adesões crescia rapidamente e exigia enquadramento apropriado, quando se iniciava pela primeira vez a criação e bases de apoio no interior do País, arriscar tudo numa só acção parecia-me um autêntico suicídio. Como quem continuava a assegurar os contactos com o Guerreiro era o Palma e os recursos eram arrancados a conta-gotas, entendi e disse-o na altura, que as boas regras da condução da luta aconselhavam a nunca arriscar tudo o que se tem numa só acção, porque a exiguidade de meios aumentava os riscos, e, no caso de falhar, o processo sofreria um retrocesso difícil de recuperar. Se mantivessem a decisão estava disposto a colaborar em tudo o que me fosse solicitado, mas não contassem comigo para participar directamente.

Esta decisão comunicada ao Palma e em conversa a sós, a seu pedido, não foi divulgada para não dificultar o recrutamento dos operacionais necessários.

O bom senso não imperou, a decisão do assalto à Covilhã foi mantida ocasionando o desastre que só a fuga do Palma veio, ano e meio depois, permitir dar continuidade à luta, abrindo uma outra fase, completamente diferente das anteriores, com novos militantes operacionalmente identificados com os métodos do Palma, na maioria jovens irreverentes e destemidos, sem contudo conseguir novos sucessos politicamente úteis. Acompanhei à distância os preparativos da acção e dispus-me a deslocar-me até à fronteira franco-espanhola para, a partir daí poder prestar o apoio à retirada que me foi solicitado…

Por este desastre, são responsáveis o Palma, por não ter compreendido que a sua autoconfiança tinha limites e a operação requeria meios de que não dispúnhamos e capacidades colectivas de decisão e acção que ele sozinho não podia resolver. Mas mais responsável a meus olhos, o padrinho Guerreiro por negar os meios necessários ao alcance de tão importante objectivo. (Idem, pp. 201 a 203)

 

Este desastre, de que fala Camilo Mortágua, levou à prisão de muitos companheiros, embora alguns tivessem conseguido escapar.

Perante esse desastre Mortágua não perde a capacidade de assumir novas responsabilidades. Procura apoio para os operacionais que restaram dessa acção falhada. A “Caparica”, porto de abrigo revolucionário da LUAR, era uma quinta nos Pirenéus Orientais que o seu amigo Silva Martins lhe arranjara para poder encontrar sustentabilidade aos companheiros com mais dificuldades de integração no exílio, prosseguindo assim com a formação do grupo de resistência.

Neste porto de abrigo dos Pirenéus o treino não era igual ao que se fazia, anos antes, no Brasil e que jocosamente Camilo Mortágua relata neste seu livro com o título “Matando a galinha”. Nesse capítulo, Mortágua e os companheiros iam treinar para os lados de Niterói, com sacos cama, cordame para armar abrigo à cubana e fogões de campismo. Eram fins-de-semana em que se obtinham batatas-doces e galinhas gordas que tentavam alvejar a tiro.

Na Caparica o pessoal alojava-se na quinta “daqueles neo-rurais idealistas do retorno à terra”. Os donos viviam austeramente criando cabras e vivendo do produto da quinta. Comiam-se cogumelos dos bosques vizinhos. E a formação era submetida à disciplina da sobrevivência.

Entretanto, com a própria experiência de Mortágua num kibutz de Israel, quando aí esteve durante algum tempo, despertara-lhe o seu gosto rural da infância.

O trabalho de sobrevivência e a nova aprendizagem de vida concreta obrigam o pessoal a adaptar-se aos condicionalismos. Porém, não demorou muito tempo para que a situação mostrasse a fragilidade desta opção. A dificuldade em manter o sigilo necessário e a facilidade de integração na vida comum da sociedade francesa, aceleraram a procura de outras alternativas para o grupo português que acabou por largar essa Tebaida “pouco adaptada para pessoas ilegais ou manifestamente inadaptadas para suportar a tensão de um tal contexto”.

A breve prazo dar-se-ia, em Portugal, a fuga de Palma Inácio da prisão.     

A ausência irreparável de Palma Inácio, que foi preso, só viria a ser superada quando em 8 de Maio de 1969 fugiu das instalações da PIDE, no Porto, onde estava detido.

 

O grande general de si próprio tinha ganho mais uma batalha. Cerrando as grades da prisão, quebrando mais um grilhão da sua corrente. O seu feito dava-nos novo alento e novas responsabilidades e tarefas…(Idem, pág. 312)

 

O romantismo e a coragem indomável de Palma Inácio levam-no de novo para o comando da acção directa da revolução inacabada. Mas também, diante do desespero deste seu fiel companheiro, Mortágua descreve a sua premonitória intuição dum outro desastre que se avizinha. Muitas conversas se estabeleceram entre Mortágua e Palma Inácio. Pairava na mente de Mortágua a prudência e a cautela em torno do infiltrado Castelo Branco, o “canário”, que não lhe inspirava confiança. Essa desconfiança sobre Castelo Branco era também partilhada pelo “Azevedo” (Hipólito dos Santos) que descreve essa questão no livro já citado.

Contudo, Palma Inácio desvalorizava os erros cometidos e sobretudo queria desesperadamente continuar uma luta que estava por terminar. Escreve então Mortágua:

 

Depois de lhe apresentar frontalmente as minhas reservas quanto à possibilidade de ser possível continuar sem outra disciplina organizativa, concordou comigo, mas era evidente que concordava para não ter de aprofundar uma conversa que o aborrecia. No final, sem grande insistência da minha parte, concordou com a minha proposta: “Sempre que precisasse de mim para o apoiar a ele ou à LUAR, ficava à disposição, demitia-me de todas as responsabilidades de direcção e só não aceitaria participar directamente e automaticamente em acções sem prévia discussão das mesmas.”

Compreendeu perfeitamente o alcance do acordo e nunca mais me falou de planos operacionais. Víamo-nos uma ou duas vezes por semana, pedia aquilo que necessitava e que eu podia fazer no âmbito da papelada, falávamos de tudo e do bom tempo, sabendo ele que eu sabia da evolução das acções da LUAR sem nunca abordarmos directamente o sujeito.

A última observação que lhe fiz na altura, continuava de pé: “No dia em que sinceramente estejas disposto a funcionar dentro de um esquema organizativo com responsabilidades colectivas e individuais bem definidas, diz-me e conta comigo. (Idem, pág. 217).  

 

Qual cavaleiro andante imbuído pelos seus ideais, Palma Inácio será novamente preso. Nostálgico e triste na sua solidão ao ver partir o amigo, Camilo Mortágua prevê mais uma batalha desfavorável. Mas novo sol brilhará. Veio finalmente o 25 de Abril de 1974 e foi a festa do regresso.

 

Chegamos a Vilar Formoso por volta da meia-noite do dia 30 de Abril e a Lisboa ao romper da mais bela aurora da minha vida. Da minha e, certamente de todos os que encheram as estradas da Europa a caminho da pátria em festa de todas as organizações de todos os comités. Trotskistas, maoistas, comunistas de todas as tendências e inspirações, cruzavam-se, saudavam-se, abraçavam-se como nunca tinham feito.

Entramos no posto de controlo da fronteira, vários ao mesmo tempo, em festa, já esquecidos das tremuras, sustos e angústias “de ontem”, olhando os guardas como quem diz, vêem… somos diferentes, estão perdoados.

Os carros buzinavam, cada grupo cantando livremente a sua canção, as canções que tinham animado os tempos da longa e sofrida espera. (Idem, pág. 219)

 

À laia de conclusão deste segundo volume de Camilo Mortágua, aguardamos a narração do terceiro volume que importa para completar as memórias da extraordinária aventura do 25 de Abril, história de esperanças, cravos e gaivotas esvoaçando no céu azul de Portugal. História também feita de mudanças. E agora, com esta ameaça cinzenta dum quotidiano com Troikas e FMIs onde já se ouvem, felizmente, as vozes que vêm de longe, como as de Camilo Mortágua e que incitam a continuar a luta, podemos concluir que só persistindo é que se pode vencer.

Sem temor excessivo nem exaltação incauta, Camilo Mortágua é o exemplo do lutador que soube fazer do seu espírito crítico, da sua modéstia e das suas tenazes convicções, a força consciente que proporciona a verdadeira coragem para a revolução.

O percurso que Camilo Mortágua nos deixa nestes dois volumes das suas andanças, mostra como na sua aprendizagem de vida, de revoltado se tornou revolucionário.   

 

Jacinto Rodrigues

 




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Sexta-feira, 27 de Setembro de 2013

UM SOL ENGANADOR

1  Em lugar de agregar municípios ou freguesias dos grandes centros urbanos, o Governo extingue freguesias do interior — que, em muitos casos representam o último resquício da função social e política do Estado. Assistindo, sem nada fazer, ao contínuo despovoamento do país interior, fecha mais linhas férreas, tribunais, centros de saúde e escolas, invocando razões orçamentais e demográficas tornadas então inevitáveis. E, a troco de 600 milhões de euros, avança para nos tornar o único país do mundo sem correios públicos, dando aos felizes vencedores da privatização dos CTT uma licença bancária de bónus, que eles irão acrescentar às poupanças geradas com o encerramento de inúmeras estações de correios — gerindo um serviço público essencial à unidade territorial do país com uma irrebatível lógica de mercearia. Aos CTT, irá, em próximas oportunidades, acrescentar a TAP, as Águas, a Caixa, a parte rentável da CP e os Estaleiros de Viana (deliberadamente inviabilizados pelo senhor ministro da Defesa). E a juntar ainda ao que já privatizou por completo: aeroportos, produção e distribuição de energia eléctrica. Privatiza-se o que dá dinheiro, mantém-se público e financiado por swaps e PPP o que perde dinheiro.

E, enquanto assim desmantela o que demorou décadas ou séculos a construir, enquanto dá ordem de expulsão ao interior e entrega as terras abandonadas às celuloses e aos incêndios, que depois piedosamente lamenta, o “Governo de Portugal” (como eles gostam de ostentar nos pins das lapelas) trata de liquidar também qualquer veleidade de futuro, enquanto nação independente. Pela primeira vez desde que há memória, as Universidades públicas têm milhares de vagas sem candidatos, porque só há dois destinos para os licenciados portugueses: engrossar o lote dos quase 40% de desempregados jovens, ou emigrar, seguindo a sugestão do próprio Governo e o aliciante convite da srª Merkel, pronta a receber de braços abertos jovens engenheiros, investigadores ou enfermeiros, licenciados com o dinheiro dos contribuintes portugueses e de que a Alemanha tanto precisa para nos poder continuar a dar lições de superioridade económica, num espaço económico dito comum mas onde as regras do jogo estão viciadas à partida. Em Alqueva sobra água sem destinatários porque o tão apregoado regresso à terra não encontra agricultores em condições financeiras para o fazer, nem sequer se a água for oferecida. É como uma casa a ser abandonada aos poucos, divisão por divisão.

Em contrapartida, porque o Governo não soube, não estudou, não foi capaz e já não tem margem social para lançar qualquer reforma séria do Estado excedentário, desinveste no que devia ser proibido desinvestir: a ciência e a investigação científica, o ensino do inglês, as novas tecnologias e as energias alternativas ao petróleo que não temos (e onde a Alemanha de Merkel vai investir biliões, financiada a custo zero, pois que o mal dos pobres é sempre uma oportunidade para os ricos). Num país que já se tornou um caso de referência internacional como o que mais aceleradamente está a promover a desigualdade social, onde os sintomas de desagregação do tecido social são campainhas de alarme a tocar que só os idiotas e os gananciosos não escutam, onde o simples facto de ter um emprego já é olhado como privilégio, o “Governo de Portugal” — um indecente concubinato ideológico entre rapina fiscal e liberalismo saloio — estuda agora a sedutora tentação de liquidar a escola pública através do “cheque-ensino”, sepultando cem anos de um princípio republicano essencial a um país civilizado.

Depois de ter falhado todas as metas orçamentais que o resgate visava conseguir; depois de ter assaltado e liquidado a economia civil para ocultar a dimensão do falhanço das políticas orçamentais ditadas pela troika e a que miseravelmente se submeteu; depois de ter extinguido uma classe média que tão a custo se formou e agora sufoca sob impostos — enquanto as nossas 20 majors se aliviam desse patriótico fardo sob a protecção dos nossos parceiros comunitários Luxemburgo e Holanda (o país onde o arrogante presidente do Eurogrupo, Djasselboem, é simultaneamente ministro das Finanças, dando-nos lições de austeridade enquanto nos rouba impostos); depois de ter feito regredir os índices de bem-estar a dez anos atrás e ter hipotecado o futuro de uma geração, temo que o Governo esteja agora a desmantelar os alicerces de um Estado-nação que demorou 870 anos a erguer. Talvez sem o saber, talvez por cegueira, talvez por absoluta e trágica impreparação e incompetência. Pouco importam as razões, importa é a dimensão da tragédia.

2  Após nove em cada dez Prémios Nobel de Economia o terem dito, após os estudos do FMI e numerosos outros organismos o terem demonstrado, o PSD parece começar, enfim, a vislumbrar a desgraça do caminho que a troika nos impôs e a que o seu cavaleiro andante Passos Coelho tão alegremente se entregou. Ele, porém, ainda não: por ignorância e maus conselhos. Prefere acreditar nos que lhe garantem que tudo o que de mau está a acontecer ainda é culpa de José Sócrates, e mesmo quando alguém lhe tenta explicar racionalmente que só para pagar o serviço da dívida (que ele não faz senão aumentar) era preciso que o PIB crescesse 4% ao ano e só a partir daí é que a economia poderia crescer, ele encolhe os ombros e repete as frases feitas que aprendeu com os nossos génios económicos que lhe fizeram a cabeça, depois de terem aprendido a técnica no Goldman Sachs ou outras escolas do crime. Havia, sim, outro caminho, mas teria sido preciso alguém com dimensão para o escolher e o impor. Desgraçadamente, o que se abateu sobre nós foi uma tempestade perfeita: Passos Coelho no Governo, Seguro na oposição, Cavaco na Presidência e Merkel na Europa.

3  Estive um mês sem escrever, condição mínima de sobrevivência para quem escreve nas outras 48 semanas do ano. A pausa serve para reflectir sem a pressa de concluir. Serve para observar, para ver melhor — como sempre se vê melhor de fora. Vi os incêndios do Verão, os oito mortos, a área mais ardida da última década — conforme era elementarmente previsível. Segui o entusiasmo patriótico com as cagarras das Selvagens e as 200 milhas de mar circundante que os seus detritos nos poderão acrescentar, a favor de uma inexistente frota pesqueira — reflexo da nossa ancestral crença nos Eldorados que hão-de brilhar à flor da água ou além dela. Assisti ao regresso à cena televisiva do inefável quarteto sindical Bettencourt Picanço/Nobre dos Santos/Ana Aivola/Mário Nogueira, o sinal infalível de que até este Verão luminoso chegou ao fim. Vi como o há muito defunto partido maoista do dr. Garcia Pereira, o único cadáver político ressuscitável ciclicamente por via eleitoral, conseguiu — com a ajuda da lei, da CNE ou da simples estupidez — banir o debate político eleitoral da imprensa, confundindo tempos de antena para a propaganda com tempos de informação para os eleitores. Mais um obstáculo de monta para a campanha do independente (e meu amigo, para que conste), Rui Moreira, que, no Porto, já tem de enfrentar um dr. Menezes que congrega os grandes empresários e artistas, o PSD e os seus comentadores televisivos, o Porto Canal e o FC Porto, que esbanja dinheiro e oferece um porco assado e um concerto do Quim Barreiros em cada bairro e promete três pontes, um túnel, impostos mais baixos, rendas sociais mais baratas e muitas outras coisas, umas ditas outras murmuradas, enquanto jura que não deixará o Porto como deixou Gaia — isto é, arruinado. Vejo António Costa, em Lisboa, sem oposição à altura, frente a um adversário que afirma que estão de acordo em tudo o que é essencial — como se não houvesse nada a dizer de tudo o que não foi feito por Lisboa. E vejo, entre muitas outras pelejas dignas de nota, a luta de gangues pela Câmara de Oeiras. Quanto ao desfecho no Tribunal Constitucional da arrastada questão da transposição dos autarcas para lá do prazo para um outro concelho, não consegui compreender a indignação da boa gente com a “ambiguidade” da lei e a condescendência do tribunal: se o povo está indignado com os salta-pocinhas, tem um bom remédio para demonstrar a sua insatisfação — votar contra eles.

E assim, tudo isto tendo visto e ouvido, e sobre tudo isto reflectido, guardo destas quatro semanas de pausa a memória de um Verão como talvez não viva outro, iluminando um país todavia perdido. Mas sim, era, ainda é, possível fazer melhor. Mas não apenas com outro governo: com outra gente.


MIGUEL SOUSA TAVARES

 

 



 



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Quinta-feira, 26 de Setembro de 2013

Novas formas de escravatura do Capitalismo

A morte de Moritz Erhardt e o erro de Keynes


Ainda não se sabe ao certo a causa da morte de Moritz Erhardt, um jovem de 21 anos, estagiário no Bank of America Merrill Lynch, em Londres no mês passado. Erhardt, um estudante alemão que havia terminado recentemente um semestre de intercâmbio na faculdade de negócios da University of Michigan, estava a aproximar-se do final de um estágio de Verão, de sete semanas, no renomado banco, quando desmaiou ao tomar banho, na sua residência, no leste de Londres. Os relatórios indicaram que ele sofria de epilepsia e deve ter tido convulsões. Esta é uma trágica história. O que a torna ainda mais atroz é a revelação da fatigante agenda de Erhardt nas semanas que antecederam a sua morte. (As convulsões epilépticas também podem ocorrer devido a exaustão).

Tentando conseguir a aprovação do seu chefe, Erhardt trabalhou até de madrugada oito vezes em duas semanas, dizem os colegas. Nas noites que antecederam sua morte, trabalhou até às seis horas da manhã por três dias seguidos. Erhardt estava empregado na divisão de investimentos bancários, que é notável, mesmo para os parâmetros degoladores da City of London e de Wall Street, pelas horas de trabalho esperadas dos trabalhadores. “Eu vejo muitas pessoas andando por aí, com os olhos avermelhados e bebendo cafeína para poder passar por isso, mas elas não reclamam, pois a recompensa pode ser muito boa”, disse um estagiário ao The Independent. (Na sua declaração, o Bank of America Merrill Lynch disse que não poderia comentar estas afirmações sobre as horas de trabalho de Erhardt e que aguarda os laudos pós-morte).

Excesso de trabalho: a possível causa da morte de Erhardt pode ser relativamente rara, mas não é nenhuma novidade. Apenas há alguns meses, um rapaz de 24 anos, em Beijing, sofreu uma paragem cardíaca por ter trabalhado excessivamente durante um mês. No Japão existe até um termo para este fenómeno, e o ministério da Saúde fez um grande esforço para reduzir o número de casos. A morte de Erhardt mostra um curioso fenómeno, que destaca a natureza do trabalho e do lazer e as razoáveis expectativas que as pessoas possuem de ambos.

 

Moritz Erhardt: no seu sector, são quase inevitáveis as jornadas de 80 horas semanais

 

Em 1930, John Maynard Keynes escreveu um ensaio chamado Economic Possibilities for Our Grandchildren (Possibilidades Económicas para os Nossos Netos), no qual previu que, com o avanço das tecnologias e o consequente aumento da produtividade, poderíamos trabalhar muito menos para satisfazermos as nossas necessidades. No espaço de um século, estimou Keynes, ninguém deveria trabalhar mais do que quinze horas semanais. O argumento parece quase ingénuo, na medida em que 2030, a data estimada por Keynes, se aproxima.

As horas de trabalho no mundo desenvolvido de facto caíram drasticamente nas primeiras décadas do século XX, graças às inovações industriais (como o próprio Keynes testemunhou). O declínio diminuiu nas décadas seguintes e, desde os anos 1980, as horas de trabalho estagnaram na média de quarenta horas semanais. Hoje, nenhum lugar, no mundo desenvolvido, está perto da projectada semana de trabalho de quinze horas de Keynes. Mesmo assim, no final do século XX, a média anual de horas trabalhadas era quase metade em relação ao século anterior, principalmente pela drástica mudança no início do século. Isto conduziu a um aumento nas actividades de lazer: prática de desporto, viagens, televisão, etc.

No entanto, os 10% do topo dos assalariados “não compartilharam muito deste ganho no lazer”, escreveu Robert Fogel, um historiador económico, em 1994. Ao invés disso, estas pessoas bem pagas, notou ele, estavam trabalhando próximo dos padrões do século XIX: 3200 horas por ano, comparadas com o actual padrão de 1800 horas.

 Isto é surpreendente, se se pensar – como fez Keynes – que as pessoas preferem as horas de lazer e que passariam menos tempo trabalhando, se ganhassem dinheiro suficiente para trabalhar menos. Por outras palavras, parece fazer sentido que pessoas que ganham muito dinheiro trabalhariam menos e não mais.

Ao contrário, é o oposto que tem acontecido. Na verdade, o salário de 4.200 dólares por mês de Erhardt não o colocaria na categoria de Fogel do topo dos 10% dos assalariados. Mas não há dúvida de que, se ele tivesse vivido e continuado a trabalhar num banco de investimentos, os seus rendimentos teriam aumentado exponencialmente. Além disso, Erhardt pertencia a um meio em que as horas de trabalho pouco diminuem conforme se sobe na carreira corporativa. Alexandra Michel, professora assistente na U.S.C. Marshall School of Business, entrevistou mais de quinhentos sócios de bancos para um artigo sobre a cultura no local de trabalho: no seu primeiro ano de trabalho, todos os entrevistados disseram trabalhar mais do que oitenta horas por semana; no quinto ano, este número permaneceu nos 97%. “É como se fosse uma experiência psíquica em que a luz está sempre acesa,” disse um sócio a Michel sobre o seu ambiente de trabalho. “O único marco temporal são os turnos das secretárias”.

 

  

Como é que Keynes, cujas previsões já se mostraram tão acertadas, errou nesta?

A resposta talvez tenha a ver com o facto de a cultura dos locais de trabalho – incluindo as horas que as pessoas trabalham – não são estabelecidas pelos trabalhadores, mas pelos empregadores. Estes, preferem contratar um número menor de trabalhadores que conseguem trabalhar um longo período do que pagar menos e dividir o trabalho, pelo simples motivo de que da primeira forma é mais rentável, escreveram Robert e Edward Skidelsky no livro How much is enough? (Quanto é o bastante?). O resultado, de acordo com os autores, é que o mercado de trabalho está agora “dividido entre os que são obrigados a trabalhar mais tempo do que querem e os que não conseguem trabalhar o suficiente.”

A solução mais simples, argumentam, seria reduzir gradualmente o número de horas dos empregados. Esta solução, provavelmente, não anima os empregadores, é claro. Mas muitos se perguntam, à luz destas conclusões, se uma cultura de trabalho que reconhecesse os objectivos dos empregadores do mesmo modo que as necessidades dos trabalhadores poderia ter ajudado a evitar a tragédia da morte de Erhardt.

 

RUTH MARGALIT

[Tradução de Cristiana Martin, com aproximação minha ao português de Portugal] 

 

http://www.leituras.eu/out.php?u=http://outraspalavras.net/posts/a-morte-de-moritz-erhardt-e-o-erro-de-keynes/



publicado por Elisabete às 12:44
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Domingo, 15 de Setembro de 2013

O que faz falta?

 
UM GOVERNO DE TRAIÇÃO NACIONAL

 

A história e a política estão cheias de grandes tiradas, de declarações que mudaram o rumo do mundo e que inflamaram o desejo e o sonho de milhões durante décadas ou séculos. “Obviamente, demito-o!” “De l”audace, toujours de l”audace, encore de l”audace!” “We shall fight on the beaches…” “Os proletários não têm nada a perder senão as suas grilhetas!”…

E há também frases aparentemente banais que, por uma conjugação de circunstâncias, conseguem mudar o curso dos acontecimentos. O fim do senador republicano americano Joseph McCarthy foi ditado quando, durante um das famosas audições no Senado, o advogado do Exército dos EUA Joseph Nye Welch lhe perguntou simplesmente, com um ar de profundo desdém, “Have you no sense of decency?” Uma pergunta que bastou para os americanos – havia 20 milhões a seguir a transmissão televisiva em directo – adquirirem a consciência de que aquele arruaceiro pomposo era apenas um pequeno traste à procura de poder. O homem não merecia senão desprezo.

O que é espantoso é como, na actual situação política portuguesa, há tão pouca gente a fazer a mesma pergunta a todos e a cada um dos membros do Governo português, de cada vez que abrem a boca, quando é tão evidente que essa gente é apenas, como McCarthy, um bando sem escrúpulo, sem noção de decência, sem respeito pela lei, sem apego à democracia e com um profundo desprezo pela vida dos cidadãos e uma subserviência criminosa em relação aos interesses financeiros internacionais. Há decência nos swaps? Na destruição da escola pública? Na humilhação dos pobres? Na destruição da universidade? No aumento do desemprego a que chamam flexibilização? Na destruição da administração pública a que chamam requalificação?

Não têm o sentido da decência? Não. Não têm, não querem ter e têm raiva a quem tem.

 

Parece uma caricatura? Parece. Mas isso é apenas porque o Governo de Passos Coelho é de facto uma caricatura, um excesso de mentiras e pouca-vergonha, uma organização de rapina que governa sem qualquer escrúpulo. Aquele conjunto é de facto caricatural. Portas é caricatural. Mota Soares é caricatural. Maduro é caricatural. Passos Coelho é caricatural como todas as pessoas sem escrúpulos são caricaturais. Porque é que as enormidades que diz não são denunciadas como as enormidades que são? Porque é que se acha aceitável este estilo de títere tiranete? Porque há uma reserva de boa vontade nas pessoas que lhes diz que as coisas talvez não sejam tão más como parecem e que as pessoas podem não ser tão desprovidas de princípios morais e de sentimentos como parecem na televisão. Há sempre pessoas que levam a sua magnanimidade até à estultícia. E os Passos Coelhos deste mundo contam com isso. Com isso, com os crédulos que podem convencer a continuar a votar em si e com os moluscos que os servem no Parlamento.

É assim que este Governo fora-da-lei pode continuar a roubar aos milhares de milhões os portugueses, roubando-lhes os bolsos, os empregos, as pensões, os ordenados, os subsídios, os serviços públicos que eles pagam, o património que construíram, as empresas públicas que são de todos, destruindo o progresso que se alcançou nas últimas décadas apenas para poder enriquecer ainda mais os muito ricos e para poder aniquilar os resquícios de soberania que possam teimar em existir, espalhando a miséria e reduzindo os portugueses à inanição e à subserviência.

O que temos é um Governo não de salvação mas de traição nacional. De traição às suas promessas eleitorais, às suas juras de tomada de posse, às instituições democráticas e aos compromissos da civilização que todos abraçámos, de traição ao povo, espremido e vendido barato para enriquecer os credores.

E, no entanto, os portugueses não se movem. Ou quase não se movem. As acções do bando de malfeitores que se apoderou do Governo com falsas promessas parece tão inconcebível que parece impossível que alguém as leve a cabo sem que haja fortíssimas razões de interesse público, ainda secretas. Imagina-se que deve haver aí alguma racionalidade. Talvez o que o Governo diz da austeridade seja verdade. Talvez seja justo matar os pobres à fome para pagar aos bancos.

Custa a acreditar que alguém possa ser tão desonesto, tão insensível, com um tal ódio aos mais fracos. Pensamos que isto não é possível, que a lei nos protege, que a filosofia nos protege, que a história nos protege, que a decência que temos o direito de esperar dos outros nos protege.

Mas a história está cheia de exemplos destes. Durante anos ninguém acreditou que Hitler quisesse exterminar os judeus, ninguém acreditou que Pol Pot tivesse dizimado um quarto da população do Camboja. E na sombra destes grandes ditadores sempre houve pequenos velhacos, pequenos capatazes como Passos Coelho ou Mota Soares que fizeram o trabalho sujo apenas para terem as migalhas da mesa do poder. Há racionalidade na acção do Governo, mas é a racionalidade do saque, do roubo descarado, da tirania da oligarquia. A decência está fora da equação.

 

JOSÉ  VÍTOR MALHEIROS

 

 

 

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Quarta-feira, 11 de Setembro de 2013

Abrindo o Baú

AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1976

 

As primeiras eleições presidenciais, após o 25 de Abril de 1974, realizaram-se a 27 de Junho de 1976.

 

Candidatos:

 

António Ramalho Eanes

Otelo Saraiva de Carvalho

Pinheiro de Azevedo

Octávio Pato

 

 Otelo ficou em segundo lugar com 792 760 votos (16,59%)

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

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Segunda-feira, 9 de Setembro de 2013

A narrativa neoliberal não foi de férias

O colapso que estamos a viver foi gerado ao longo de mais de uma década por mecanismos socioeconómicos criadores de endividamento público e privado

 

O discurso de Passos Coelho no Pontal foi mais um episódio de propaganda política, só possível porque as televisões perderam a vergonha. A pretexto de informação em directo, fizeram a transmissão na íntegra de um discurso de comício. Nada que espante, porque hoje a televisão desempenha um papel central na construção de uma narrativa hegemónica da crise, um discurso simples sobre as suas origens, os seus responsáveis e as transformações do Estado que nos farão sair dela. Para executarem o seu projecto político, os partidos que nos governam precisam, no mínimo, de uma generalizada resignação dos cidadãos. A forma mais eficaz de a produzir consiste em criar uma larga maioria de fazedores de opinião (jornalistas, economistas, politólogos, deputados, políticos senadores) que sustente nas televisões a mesma narrativa da crise, a narrativa neoliberal.

O buraco em que caímos - forte e prolongada quebra na produção, desemprego de massa, mais fome e pobreza, crescimento da dívida pública em bola de neve, redução de salários, pensões e prestações sociais, pesado aumento de impostos sobre as famílias - é um fenómeno de interpretação complexa. Aliás, não pode haver uma interpretação indiscutível desta crise, ou de qualquer realidade sociocultural, já que não temos acesso a essa realidade a não ser através de conceitos, teorias, valores, ideologias. Não sendo a realidade um produto das nossas mentes, como sugere um certo construtivismo pós-moderno, ainda assim a narrativa de uma crise é uma mediação essencial porque tem causalidade própria. Quando é politicamente validada, torna-se a fonte inspiradora das decisões de reconfiguração do Estado e das políticas que lançam a sociedade numa nova e duradoura trajectória.

O colapso que estamos a viver foi gerado ao longo de mais de uma década por mecanismos socioeconómicos criadores de endividamento público e privado (sobretudo este) que, num país de economia frágil e sem moeda própria, se tornaram insustentáveis. Por isso, a crise atinge mais a periferia sul da zona euro. A interpretação neoliberal deste processo explora o senso comum e faz sentido para a maioria das pessoas - "o nosso despesismo sustentou durante décadas um Estado social incomportável, o que nos conduziu a mais uma crise. Vamos na terceira intervenção do FMI, mas, agora dentro do euro, temos mesmo de fazer aquilo que já não é adiável, reduzir o Estado social focando-o nos mais necessitados".

Esta narrativa integra sem dificuldade alguns factos que chocam o cidadão comum (casos de endividamento para consumo, muita formação profissional ineficaz, obras públicas de duvidosa utilidade, distribuição de empregos no Estado e empresas públicas, corrupção de vários tipos, etc.) ligando-os a má gestão do Estado, "a causa" da crise. É uma narrativa muito forte porque é plausível para o cidadão comum sem formação específica. Assim sendo, seria de esperar que as esquerdas tivessem investido fortemente na elaboração de uma alternativa, até porque a política de austeridade que tem sido seguida produziu uma calamidade social. Infelizmente, apenas foram produzidas narrativas parcelares sem consistência global. Uma contranarrativa teria de explicar em linguagem simples e popular que o endividamento foi gerado pela perda do escudo e que isso conduziu ao crédito fácil e à desindustrialização do país. Teria de dizer que com o euro perdemos as políticas de que precisamos para ir mais além no desenvolvimento. Teria de dizer também que perdemos a liberdade para decidir sobre as diversas vertentes do Estado social porque essas escolhas já estão feitas e inscritas nos tratados, as que a Alemanha aceitou ou mesmo impôs. Teria de dizer que não temos futuro dentro do euro.

Em Agosto, a narrativa neoliberal não foi de férias.

 

JORGE BATEIRA

Economista (Jornal i)

 

 

 

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Quinta-feira, 1 de Agosto de 2013

FUNDO DE ESTABILIZAÇÃO FINANCEIRA DA SEGURANÇA SOCIAL

O Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social é uma corda no pescoço dos pensionistas

 

 

A estrutura da Segurança Social é superavitária por estar estruturada sobre as contribuições - sempre foi até aqui, aliás, o único sector do Orçamento do Estado sem défices -, e porque tem uma relação directa com a riqueza produzida pela força de trabalho. Não só em Portugal. Calcula-se que 1/3 de toda a riqueza mundial diz respeito a fundos da segurança social. Só será insustentável se o número de desempregados e precários continuar a subir, uma vez que são trabalhadores que não descontam ou não descontam o suficiente para garantir os que já não estão a trabalhar.

Antes de se demitir, o ex-ministro das Finanças, Vítor Gaspar, fez um último acto. Somando agora à questão laboral que referi a descapitalização do fundo por uso indevido (ajuda humanitária ao Kosovo por exemplo) às dívidas (quase 9 mil milhões de euros), a autorização da utilização do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) em investimentos com dívida pública até 90%. A esta operação chamou o "Wall Street Journal" pela mão do colunista Stephen Fidler "repressão financeira" (11/7/2013).

Creio que esta medida será uma corda no pescoço dos reformados e pensionistas. Actualmente o valor do FEFSS é de cerca de 10 mil milhões de euros. Até aqui, 55% deste fundo estava investido em dívida pública portuguesa ou dívida garantida pelo Estado (nesta última definição pode estar dívida tóxica como a do BPN), 25% em dívida pública de outros estados da OCDE e 17% em acções de empresas estrangeiras.

A Segurança Social é um fundo superavitário, as contribuições eram suficientes para pagar pensões de velhice e os superavits, entre 2% e 4% das contribuições, eram colocados num regime de capitalização, o FEFSS, com o intuito de, segundo a lei, "contribuir para a sustentabilidade do sistema previdencial".

Mas o que é afinal o FEFSS? Estará ele a contribuir para a sustentabilidade da Segurança Social? O FEFSS é uma parte do salário tirada das contribuições dos trabalhadores em nome de uma promessa futura. A promessa de que? quando não houver dinheiro para pagar as pensões através das contribuições se utiliza este fundo. É um mau negócio, é um péssimo serviço público.

Em primeiro lugar porque os investimentos em títulos são altamente arriscados porque dependem das crises cíclicas (desvalorização cíclica da propriedade), mas sobretudo investir em títulos da dívida pública significa investir em algo que hoje vale pouco mais que o papel em que está impresso. Na verdade alguém acredita que, no actual estado da economia, estes títulos serão resgatados daqui a dez anos pelo seu valor?

Em segundo lugar, porque à medida que o FEFSS investe em títulos do Estado português, ainda que este fundo cresça, ele vai delapidando as contas públicas portuguesas. Porque a dívida pública é uma renda fixa que depende do pagamento de um juro. Esse juro é garantido por uma massa de recursos que depende, para a sua "credibilidade nos mercados", do corte de salários e pensões. Isto é, quanto mais se cortam as pensões e os salários, mais o Estado arrecada e transfere recursos públicos para mãos privadas sob a forma de rendas fixas (juros da dívida, PPP, etc.).

Finalmente, a haver uma renegociação da dívida, ela vai assim recair também nas reformas dos trabalhadores, que foram parcialmente investidas na própria dívida.

Esses recursos, enquanto não são utilizados, podiam servir para reduzir os problemas de habitação da população, por exemplo. Em vez de se endividarem com um banco, os trabalhadores (parte deles) pediam à Segurança Social um empréstimo. Uma espécie de empréstimo dos trabalhadores aos trabalhadores, entendidos aqui no sentido amplo de "aqueles que vivem do salário". Em vez desta escolha, decide-se financiar a banca, que por sua vez financia, com custos muito mais altos, os trabalhadores para adquirem casa. Este é um exemplo, entre outros, de que o fundo da segurança social pode ter uma gestão que seja do interesse público. Não me parece porém que esse interesse público possa ser realizado pelos mesmos que o têm gerido e delapidado.

 

Raquel Varela (*)
Jornal i online (26 JULHO 2013)

 

(*) Historiadora, coordenadora de "A Segurança Social é Sustentável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal" (Bertrand, 2013)

 

publicado por Elisabete às 15:29
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Domingo, 21 de Julho de 2013

A crise está a atacar estruturas civilizacionais

 

E se os portugueses, fartos de verem o seu futuro roubado, optassem em referendo pelo fim do país? É desta situação-limite que parte Despaís", o novo romance de Pedro Sena-Lino, situado em 2023. "Espelho negro" do país, e não "uma sátira à conjuntura portuguesa actual", o livro é uma "resposta" do autor a quem conduziu o país à presente situação.

 

Há uns anos este seu romance seria considerado pós-apocalíptico. Hoje, quando muito, é hiper-realista. Só esta transformação diz muito do estado a que chegámos enquanto país?

Mais do que pós-apocalíptico ou hiper-realista, tentei criar um romance seguindo os princípios da história virtual: alterando apenas alguns factores. Comecei a escrevê-lo há quase três anos, com uma enorme pausa pelo meio. Talvez isso explique a “transformação” de que fala. Para mim, foi um exercício quase matemático: como a manutenção de algumas variáveis e a alteração de outras podia gerar essa situação. Hoje fala-se no “segundo resgate”, no romance já vamos no quinto. Mas o que me importa mais é perguntar se de facto o conceito de país, assente no princípio de estado-nação, ainda faz sentido. E sobretudo, se serve aos cidadãos. Veja: a crise está a atacar as estruturas civilizacionais: cada um está preocupado consigo, e a União Europeia consigo própria. Mas quem estão a ser atacados são os Estados fracos e periféricos. Eles estão a servir-nos como representantes do bem comum, como “agregação” de cidadãos, como explicava Rousseau? Criámos o Estado e defendemo-lo durante gerações porque assegurava o bem comum e o progresso de cada um e de um todo. Será o caso hoje? Essa é a pergunta de biliões de euros.

 

Com a deterioração crescente das condições económicas sociais e políticas de Portugal, admite que o cenário de dissolução do país descrito no livro possa ter lugar muito antes de 2023?

Sou um escritor, não sou vidente (como parece que o são muitos comentadores políticos). Aliás, essa caricatura dos comentadores é uma das linhas de força da ironia que constrói o romance: nem terminam uma frase! Numa sociedade cultivada, os comentadores contribuem com o seu conhecimento e a sua análise para alargar a consciência da opinião pública; não para confundir e acirrar, para manipular segundo programas pessoais, como parece ser o caso em Portugal. É um espelho da falta de qualidade da nossa auto-reflexão. Todavia, o romance quer ser uma espécie de espelho negro: o que podemos fazer, o que podemos alterar, para que isto não seja possível? A uma crise que nos roubou o futuro e nos prendeu a um presente imediato de sobrevivência, estamos a responder a ela com as mesmas armas. A questão deve ser, parece-me: já não somos soberanos praticamente em nada; o estado-nação português, associação de todos os portugueses, está a ser destruído pelo financeirismo, “é um nome vazio que responde pela dívida”, como diz uma das personagens do livro. Não poderemos fazer voltar esta crise de identidade e soberania a nosso favor? Estive há anos num congresso no meio dos Estados Unidos, e muitas pessoas me diziam: «Ah, a União Europeia, um Parlamento, uma moeda comum; isto para nós é um milagre, como é que vocês venceram milénios de guerras e se uniram!». Não vemos isto. A Europa unida é uma potência poderosíssima, sobretudo porque o seu poder assenta num conjunto de valores civilizacionais e culturais. É isto que estão a tentar atacar, e é contra isto que creio, como criador europeu que sou, que deveremos criar uma solução. Que já não nasce dos políticos, mas que deve nascer, entre outros aspectos, da mais velha aliança da Europa: a do povo com a arte.

 

O projecto de “Despaís” nasceu, antes de mais, da sua insatisfação enquanto cidadão pelo rumo que o país tem seguido?

Como criador (e como cristão) pergunto-me todos os dias sobre o que posso fazer pelo meu tempo. Os criadores mantêm o enorme espaço entre a realidade e a ideia, entre o quotidiano e a memória, entre a ficção e o real. É nesse tremendo espaço que se transcende o presente limitado, e se constrói o futuro. Quero deixar claro que o objectivo deste romance não é uma provocação. Mas que se insere numa linha bem mais clara do meu programa de trabalho enquanto romancista. O que pretendo fazer com o romance, com este e os que se lhe seguirem, é questionar o significado de objectos civilizacionais que consideramos inquestionáveis: em 333, o que é um livro e as redes que estabelece, e como essas redes e esse poder simbólico se mantêm para além do desaparecimento do próprio livro. Em Despaís, com o próprio objecto que é um país assente no conceito de Estado-nação. Num próximo romance, o conceito de estadista, de cabeça e representante do Estado, como produto autofágico do próprio Estado.

 

Não teme ser acusado de catastrofista? Afinal, ao longo de quase um milhar de anos foram muitas as crises por que o país já passou, algumas das quais provocaram mesmo perdas de independência...

Portugal tem inscrito na sua história um movimento duplo, estaticidade e expansão: de resignação, de deixar andar, e outro de saída de crise. Portugal resolveu sempre isso concebendo a expansão como territorial, com uma dinâmica imperial. Não é o caso agora, essas estruturas acabaram, mas continuam fantasmaticamente activas. Trata-se de saber utilizar esta crise para recriar totalmente o país. Muito que se passa hoje é bem maior do que uma crise financeira da qual temos culpas muito limitadas: é uma crise de identidade nacional. Portugal não resolveu os seus complexos imperiais, tal como a Grécia, a Espanha e Itália: são estes países, no furacão da crise, que têm de repensar-se. Máquinas estatais pesadas, alimentadas por complexos de superioridade esmigalhados e que produzem fantasmas extremamente poderosos. Ainda mais fatalmente, no caso português, são os países de que foi potência colonial que agora compram o país. Todo o imperialismo é um boomerang – os Estados Unidos ainda não compreenderam isso, e não terão estrutura para viver essa situação quando lhes chegar. Grande parte da situação actual revela que Portugal não superou o seu complexo imperialista: ou arrumam-se oito séculos de conquista, na Península Ibérica e depois pelo Oceano fora, em trinta anos de uma revolução pacífica e cordata, nem marxista nem social-cristã? Ou nesta social-democracia sul-europeia, um fantasma assassino e híbrido, que não funcionou nem em Espanha, nem em Itália, muito menos em Portugal. O Estado, diz Engels, é um produto de uma sociedade num certo estádio de desenvolvimento. Gerámos esta III República nos escombros do Estado Novo e da Descolonização, com teorias vagas e improvisadas de Democracia e Desenvolvimento. Não trabalhámos o fim do império. Passámos do complexo de superioridade colonial que o Estado Novo aumentou, para um complexo de inferioridade europeu que alimentou uma sociedade sempre ansiosa de ter ilusões de riqueza para compensar os seus complexos. Eduardo Lourenço estudou-o n’ O Labirinto da Saudade. Agora estamos a vivê-lo. O país foi-nos devolvido na sua dimensão de condado portucalense ingerível, dependente de um poder maior – a União Europeia – e da vigilância de outras entidades. Somos um protectorado. Outro aspecto. Veja os grandes momentos da história da Europa: há sempre obras de arte que impulsionaram esta mudança. Espero que este livro possa ser um grão de areia na engrenagem.

 

O livro não possui um protagonista, pelo menos no sentido que habitualmente lhe conferimos, mas sim vários. Portugal acaba por ser, nesse sentido, o verdadeiro protagonista deste romance?

Portugal, sim, mas enquanto estado-nação. Repare que no romance, quando é proposto o referendo, este não assenta sobre o fim da “República Portuguesa”, ou sobre o sistema parlamentar, mas assim mesmo num sentido genérico: o fim de Portugal. Quis com isto ironizar com a distância que os Portugueses têm hoje do sistema político. De tal forma vivemos uma crise de representação, de tal forma disruptiva, que as fronteiras entre o país e o modelo de Estado que temos estão esbatidas. A personagem principal, por isso, é Portugal como Estado-nação, asfixiado por uma crise e também pelo seu excessivo sistema de mitos.

 

Há acusações bastante certeiras e severas à classe política. A provocação com que o livro vem rotulado advém também daí?

Impreparação, servilismo, incapacidade de servir a causa pública: foram estes os traços de identidade dos políticos que desenhei no romance. Qualquer semelhança com a realidade é uma wake-up call. Mas também pergunto: o que acontece a um cidadão que rouba outro? Que rouba um banco? É julgado e preso. O que acontece a um servidor do Estado que rouba o Estado, ou seja, o conjunto de todos os cidadãos? Vai para uma empresa pública repetir o feito. Qual é o crime pior? E a punição? Como veículos do poder do Estado, a pena deveria ser bem superior.

 

O exercício de encontrar equivalentes na política portuguesa actual dos personagens do livro faz sentido? Dito de outro modo: qualquer semelhança não é mera coincidência?

Um romance é uma obra de arte, como a Torre de Belém, uma canção de David Bowie, ou a Gioconda. Encontrar num quadro de Da Vinci ou nos Concertos Brandenburgueses de Bach os senhores Sidónio Pais ou Helmut Köhl fará sentido?

 

Das várias medidas de austeridade que têm vindo a ser adoptadas, quais as que, como cidadão, lhe pareceram mais chocantes?

Não posso responder a essa questão. Deve perguntar aos economistas, responsáveis pela verdadeira ciência oculta assente em previsões e modelos que falhou redondamente nas últimas dezenas de anos. Já reparou que neste momento vivemos num sistema económico financeirista onde não sabemos quais são os limites da ficção e da realidade? Onde acaba a economia real e onde começa a economia virtual? Pergunto-me também o que é a economia real: é a bolsa de valores, são os mercados informáticos, irreais, da dívida, ou o resultado do trabalho de um cidadão integrado num grupo? O que devemos fazer é retraçar o caminho que nos levou até aqui. Fomos escravizados com um modelo de crescimento falso, que levou a um consumismo que agora nos mata. As pessoas pensavam gerar a sua segurança, e agora é uma prisão, como acontece com o mercado imobiliário. Isso levou a um predomínio do ter pelo ser, do parecer pelo ser, que se liga de uma forma particularmente agressiva em Portugal pelo complexo imperial que está longe de ser resolvido. Porém, uma nota apenas: o ataque aos pensionistas é inqualificável. Repare: o Estado guardou uma parte do trabalho mensal dos trabalhadores durante anos, como guardião do bem comum. E agora retira esse valor para pagar os seus excessos. Diga-me se isto faz sentido. Quando, ainda para mais, são as reformas dos pensionistas que estão a segurar a economia: quantos pais pagam as rendas dos filhos, quantos avós as escolas dos netos? Quantas famílias almoçam e jantam à mesa dos avós?

 

 

 

Vive na Alemanha, país que, aos olhos da opinião pública, surge como um dos responsáveis pela aplicação da austeridade aos países do Sul. Impera a ideia entre os alemães de que estes povos são pouco trabalhadores e que a situação actual é consequência de excessos vários cometidos ao longo de muitos anos?

A Alemanha é uma realidade sócio-política complexa. O muro ainda impera de formas permanentes, duráveis e inimagináveis. Quero dizer com isto que não podemos fazer generalizações de um país sobre outro, porque não há uma voz única, e no caso alemão, isto é ainda mais uma dinâmica irresolvida. Temos a ideia de que a reunificação foi automática, quando é um processo lento; como temos a ideia de que Portugal viver apenas com o seu território europeu é uma coisa simples, quando viveu alastrado pelo oceano fora quase o triplo do tempo do que viveu apenas no seu território europeu. É certo que a Alemanha foi a responsável pela 2ª guerra mundial, com excessos inqualificáveis. Mas também é certo que fizemos pagar à Alemanha uma conta de dezenas de anos. O alemão comum é rigoroso no seu trabalho, nas suas contas, no respeito pelo próximo: numa economia de moeda comum, é demasiado pedir isso aos outros vizinhos? É igualmente importante separar povo e Estado. Nunca me senti, mas nunca, discriminado por ser Europeu do Sul. Em Berlim, todas as diferenças são operativas, constrói-se a partir delas. Acho, porém, bem mais relevante pensarmos que há outro tipo de diferenças culturais; que são factores que contribuem para esta crise, como a herança do catolicismo e do protestantismo, como concepções diferentes do que é o Estado. Uma União enfrenta estas diferenças.

 

Tudo o que temos vindo a assistir nos chamados países sob assistência financeira vem provar que não só a solidariedade entre os países da UE é uma miragem, como o próprio conceito de construção europeia não passa de uma utopia?

Pelo contrário: este é o momento para uma construção europeia alargada. Se a Comissão organizasse um grande referendo europeu a perguntar pelo reforço de poder das instituições europeias eleitas democraticamente, não duvide de uma esmagadora resposta positiva. Em Berlim, convivo com muitos expatriados: sou mais próximo de um alemão da antiga RDA do que de um americano; de um polaco do que de um brasileiro, de um finlandês do que de um mexicano. A maioria dos cidadãos europeus de 35-40 anos para baixo considera-se, sem problemas, mais “europeia” do que “alemã”, “francesa” ou “portuguesa”. Por outro lado, assistiremos a um cenário assustador nas próximas eleições europeias, em que os partidos contra a UE correm o risco de terem uma representação enorme no Parlamento Europeu. Mas, claramente, isto não é uma votação contra a UE, mas contra o que os nossos políticos entendem da UE, e dela fizeram. A haver uma revolução europeia, é pela integração, não pela desagregação.

 

Politicamente sempre foi muito activo ou os acontecimentos dos últimos anos fizeram despertar essa atenção?

Não sou politicamente activo. Intervenho como artista, com a consciência de que tenho de servir o meu tempo e os meus semelhantes com o meu trabalho.

 

Aos que dizem que não há alternativa à austeridade o que responde?

Uma história: o médico disse ao meu sobrinho de 13 anos que tinha de perder peso para poder crescer. Mas também não lhe disse para arrancar o estômago. Estamos a ser demasiado maniqueístas nesta crise: ou austeridade ou investimento. Não é essa a questão, mas sim: planificação. Estamos num mercado comum. O que é que Portugal pode fazer bem e que a Europa não tem? Veja como o Marquês de Pombal percebeu isso no século XVIII.

 

Em termos formais, “Despaís” é um romance substancialmente diferente do anterior, “333”. Era a especificidade deste livro em concreto que exigia o tom que acabou por adoptar (menos experimental e mais directo) ou é consequência de uma mudança natural enquanto autor?

Tenho, como já referi, um objectivo programático como romancista. Porém, quando crio cada livro, espero que seja o livro a determinar o tom que pretende. O livro deve ensinar-me como posso eu servi-lo melhor. Os livros não nos pertencem nunca: sou mais um maestro do que um compositor, a seguir a pauta de uma ideia complexa que surgiu da minha experiência e do tempo em que vivo. Lembro-me sempre do célebre maestro Leopold Stokowski (o único maestro que falou com o Mickey Mouse, em Fantasia de Walt Disney), que dizia que não dirigia a orquestra, mas a seguia. Posso porém confidenciar que este livro correspondeu a uma série de equilíbrios difíceis que tentei articular. A ironia é um meio, não é um fim em si. Isso aprendi com os experimentalistas portugueses, como Ana Hatherly e Alberto Pimenta.

 

Vários escritores, como Miguel Real têm defendido que os intelectuais estão alheios dos problemas sociais, “dormitando narcisisticamente na sua concha”. O seu livro é um contributo no sentido de provar que há quem esteja alerta?

Miguel Real tem produzido uma obra não apenas ensaística que é de uma importância fulcral para a consciencialização de algumas ideias que andam arredadas da produção artística nacional. Essa sua chamada de atenção, como outras, parece-me de uma pertinência fulgurante. Porém, como notou Pierre Bourdieu, a “ilha sagrada da arte” está em muitos aspectos refém da sociedade capitalista, de uma Economia que deixou de ser “uma coisa em si” para tornar-se “uma coisa por si”. A crise actual pede também uma reformulação do que é o conceito de artista, como o próprio Bourdieu estudou relativamente à mudança que nesse campo se operou do século XIX para o Modernismo. O que quero dizer é que, se termos como “arte realista” deixaram de fazer sentido, a missão social do escritor também. Estes últimos 40-50 anos foram de pura apropriação da arte pelo mercado, que se estendeu ao papel dos escritores. Chegou o momento em que os produtores artísticos produzam não só obras, mas uma nova identidade para o artista. Ainda não sei o quê nem como, mas é para mim certo que neste momento de descivilização, em que perdemos a cada dia séculos de conquistas pelo bem comum, o artista deve desmontar os próprios princípios da civilização. Mas tudo está ainda por inventar, e é essa a grande força da Europa: reinventar-se do nada depois de cada devastação.

 

Entrevista de Sérgio Almeida (Jornal de Notícias)

publicado por Elisabete às 23:07
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Sexta-feira, 12 de Julho de 2013

A década ruminante

 

 

A anorexia que se tornou sinónimo de sucesso atinge agora a política e todas as outras áreas da criação humana – porque a política, quando existia, era principalmente uma actividade criativa, exigindo a capacidade de análise do real, a imaginação e o risco necessários, por exemplo, a um projecto de arquitectura.

A austeridade alimentar é apenas uma das consequências dessa pavorosa doença juvenil: a causa prende-se com uma obsessão pela perfeição que apaga tudo quanto existe no mundo, e a própria humanidade.

O anoréctico começa por sentir um êxtase de prazer no controle absoluto sobre o seu corpo; o sofrimento da privação transforma-se em celebração do poder absoluto.

O esboroamento do Bloco de Leste amoleceu a política, bem como a dificuldade em lidar com a nova ameaça dos fundamentalismos religiosos, imunes a qualquer negociação racional e apostados numa via de extermínio do inimigo.

E isso moldou uma geração de governantes tecnocratas, que se agarram aos números como se neles estivesse a verdade e a luz. Ironicamente, os números explodiram, demonstrando que a bomba do capitalismo selvagem é ainda mais mortífera que as da Al Qaeda.

Pensar-se-ia que a guerra iniciada pela especulação financeira internacional há alguns anos faria ressuscitar a política, mas não foi isso que aconteceu: o mundo vergou-se ao império dos banqueiros.

A Europa desmorona-se porque, em vez de enfrentar a guerra aberta pela especulação financeira, submete-se aos seus ditames e abdica dos seus princípios, abandonando os seus cidadãos e a própria noção de cidadania que a criou.

Os governantes que vingam são os que falam grosso às populações e gaguejam, deslumbrados, perante os senhores do dinheiro.

O desemprego endémico e o extermínio do Estado Social não são caminhos para o bem-estar nem para a tranquilidade das nações.

Isto já foi amplamente provado pela História e é lembrado agora por variados economistas – e, no entanto, a Europa persiste na receita da anorexia global. Acresce que a anorexia vai esvaziando a imaginação e desfazendo as conexões com o real: não produz mais do que uma interminável ruminação sobre o vazio.

No cinema como nas outras artes, sucedem-se as cópias de cópias: a enésima versão das histórias de há 50 anos, ou a sequela da sequela da sequela do grande sucesso da década de 80.

O documentário e o espectáculo da barbárie em espaço fechado substituem, nas televisões, a ficção e o pensamento. Nas editoras, substituem os directores literários por gestores de marcas. E a política substitui as ideias pela subserviência aos mercados.

Dizemos: «Já não há líderes como antigamente». Então o que se passou? Morreram todos, ou foram afastados – da política, dos jornais, das televisões?

No mundo da anorexia, os não-anorécticos são excrescências inestéticas.

A esquerda e a direita não importam, porque nada importa para além do mando e do controle.

O que resta da esquerda embarca no discurso anoréctico, tido como o único ‘sério’ e ‘responsável’, para provar que não se perdeu na tolerância extrema face ao fundamentalismo islâmico, que de facto a perdeu. O que resta da direita tenta remendar os buracos da sofreguidão neo-liberal com a cola-tudo da caridade e das boas intenções. Mas a anorexia é uma doença mortal.

 

Inês Pedrosa, in SOL, 12 Julho 2013

 

 

publicado por Elisabete às 15:52
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Domingo, 23 de Junho de 2013

CRÓNICA, 24

 

Cada vez mais somos governados por pessoas que acham que governar é apenas administrar e gerir. Nomeadamente administrar e gerir um orçamento. Saídos de cursos de economia e gestão onde há muito se abandonou a dimensão social e política, acreditam mesmo que governar é gerir o estado, como quem gere uma empresa ou um orçamento doméstico.

Esta ausência aparente de ideologia é, obviamente, a forma mais perniciosa de ideologia. A que deixa o senso comum guiar as decisões, sendo que o senso comum – a “cultura”, vá, e nisso sou um antropólogo algo sui generis – é a ideologia dominante, defendendo os interesses dominantes.

Quando chegam ao governo, convencidos de que vai ser canja, são confrontados com dificuldades. Entram então em cena os camaradas de partido – ou simplesmente a gente de partido, já que a tendência é para contratar governantes-administradores fora dos mesmos – que os avisam de que “há também a política”.

Só que a política a que se referem é, na verdade, a “politiquice”, o jogo de equilíbrios, influências e favores das disputas por poder dentro dos partidos enquanto máquinas de carreiras.

Eventualmente fartos disso, os “técnicos” abandonam o barco, depois de muita destruição, e regressam às empresas ou ao ensino da economia e da gestão (dantes era mais o direito, mas na realidade a diferença não é muita) enquanto suposta neutralidade objetiva. Lá fica a gente de partido órfã, até à chegada de um novo messias da tecnicalidade.

O que nem os técnicos nem a gente de partido percebem é que em momento algum estiveram a fazer política. Só gestão ou politiquice. Fazer política é, desde logo, “fazer” ética, aplicar valores, implementar uma visão do mundo. Nunca ouvimos, nem ouviremos (salvo exceções freelance) dos tais técnicos ou da tal gente de partido, afirmações sobre ética, valores e visões.

Desde logo – e, se calhar, por fim – porque nem a filosofia, nem as humanidades, nem as ciências sociais (e, sobretudo, a economia enquanto ciência social) lhes foram ensinadas. Talvez por isso mesmo estas sejam desprezadas e progressivamente afastadas das prioridades educativas e de política científica – pois se não servem para nada, isto é, para a gestão do orçamento vista como tecnicalidade ou o exercício da política visto como profissão e carreira…

A check list de tarefas para a construção e gestão de um orçamento e para a construção e gestão da governação deveria começar com dois itens: que valores defendemos?; e que tipo de sociedade imaginamos ser justa? A política ou é ética (no sentido estrito da palavra, não apenas no sentido corriqueiro de “comportamento honesto) ou não é nada.

P.S.: Talvez as eleições presidenciais sejam a oportunidade que nos resta, nesta paisagem política deplorável, para recuperar estes sentidos de política. Uma eleição uninominal presta-se mais à avaliação dos valores, opções éticas e imaginação do social de um candidato ou candidata. Espero que, no campo progressista, apareça um homem ou uma mulher com a capacidade de nos inspirar. Não se trata de desejar a chegada de salvadores ou salvadoras providenciais, com todos os perigos demagógicos inerentes, mas sim da necessidade de exemplos que contrariem o perigoso desgosto com a política que se estabeleceu.
 
Miguel Vale de Almeida
 
publicado por Elisabete às 12:27
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Segunda-feira, 20 de Maio de 2013

CONTRA O ESQUECIMENTO…

 

Até ao outro lado da sala de paredes nuas e brancas contavam-se 18 passos. Rafael sabia a distância de cor. Fazia o mesmo caminho, para um lado e para o outro, centenas de vezes por dia. Indefinidamente. Além de uma mesa, duas cadeiras e dois falsos quebra-luzes que escondiam microfones e altifalantes, nada mais havia naquele espaço. Quando virava as costas ao pide que o vigiava para o impedir de dormir e se dirigia para o outro lado, andava o mais vagarosamente que conseguia. Naqueles 18 pequenos passos, um pé logo a seguir ao outro, fechava os olhos e dormitava. Na sua cabeça, a contagem não podia parar. Ao 17º sabia que estava a pouco mais de dois palmos da parede. Andava mais um, batia ao de leve no cimento frio, abria os olhos e iniciava o caminho contrário.

Foi assim durante 31 dias e 31 noites. Quando viu pela primeira vez a sombra das grades reflectida na parede, ao nascer do Sol, sentiu-se invadido pelo vazio. Depois, “por defesa e por sobrevivência”, habituou-se.

A sensação de dominar o espaço dava-lhe algum conforto. O conforto possível num pesadelo. Quando o mudaram para outra sala de interrogatório, sentiu que lhe destruíam a casa. “Era quase rigorosamente igual, mas havia pormenores como uma mancha no chão ou uma racha na parede que não o eram exactamente.” Não estavam no mesmo sítio onde era suposto estarem, no sítio que ele já conhecia e sabia indicar de olhos fechados. Nem eram exactamente 18 os passos que separavam as duas paredes e lhe permitiam, por um minuto, adormecer. A mudança, que se tornou frequente, arrasava a réstia de equilíbrio e lucidez que tanto se esforçava por manter. Nesses momentos, as alucinações assaltavam-no; mais do que nunca, dominavam-no.

Das tomadas de electricidade via sair gases de várias cores que se acumulavam no chão, uns ao lado dos outros, sem se fundirem. Com medo de sufocar e morrer intoxicado, Rafael agitava a perna no ar e dava pontapés naquelas nuvens para que se esfumassem e desaparecessem. As paredes transformavam-se em enormes engrenagens, máquinas de destruição prestes a esmagarem os que lhe eram mais próximos. Amigos e familiares tentavam, em vão agarrar-se ao que podiam, mas as mãos escorregavam-lhes e eles caíam desamparados nas turbinas metálicas que, lenta e dolorosamente, os faziam desaparecer. Tudo se passava à frente dos seus olhos e ele, desesperado, assistia. Correu para a parede e tentou parar as máquinas com as próprias mãos. Com os dedos, arranhou o cimento até as unhas lhe sangrarem. Gritava, pedia ao pide que o ajudasse a salvar os que morriam. Nada acontecia. Impotente perante o sofrimento dos amigos, Rafael desejou que também ele fosse engolido. Com a força que lhe restava, atirou-se de cabeça. “Acordou” da alucinação com dois inspectores a agarrarem-no para que não se matasse, tal era a violência com que, uma e outra vez, batia com o crânio na parede.

Nos primeiros dias de tortura, Rafael “estava constantemente a levar tareia”. Ao início, todos os dias. Várias vezes ao dia. Queimaram-lhe as mãos com pontas de cigarro e “faziam quase um concurso para ver quem batia da forma mais cruel, com chicotes, fios eléctricos, cassetetes e matracas”. A um dos inspectores, com pronúncia alentejana, sempre com sapatos de tacão e calças demasiado curtas, ganhou um ódio particular. Nos interrogatórios, os pides revezavam-se em turnos. O alentejano chegava muitas vezes bêbedo. Dava-lhe pontapés no tendão de Aquiles e um dia deslocou-lhe o joelho esquerdo. Rafael esteve seis dias sentado numa cadeira com um inchaço na perna que o impedia de andar.

Ganhou-lhe uma raiva descontrolada. Uma vez, mal o inspector entrou na sala para começar o turno, correu para ele, deitou-o no chão e apertou-lhe a garganta. Perante os gritos, outros agentes correram em auxílio. Agarraram-no, tentaram tirá-lo de cima do outro, mas não conseguiram. Rafael parecia possuído por uma força sobre-humana. “Estava capaz de o comer vivo.” Sem meios para travar o ataque, os outros partiram-lhe uma cadeira na cabeça. Caiu para o lado, inanimado, e só assim o largou.

Não tinha o mesmo ódio a todos os agentes. “Havia os pides velhos, de cinquenta e tal anos, muito brutos, fanáticos e terríficos, mas havia alguns mais novos que pareciam não ter sido ainda completamente convertidos. Os rudes nunca interrogavam. Entravam só para bater.”

Menos de uma semana depois de ser preso, no final de Setembro de 1973, os inspectores Santos Costa e Inácio Afonso, dois dos mais temidos, arrastaram-no uma noite, […] para um carro, com mais dois agentes, e seguiram pela Marginal até à Boca do Inferno, em Cascais. […] e ameaçaram atirá-lo se insistisse em não falar. Rafael continuou calado. A pergunta, repetida vezes sem conta, era sempre a mesma. Onde estava Palma Inácio, o fundador e líder da LUAR (Liga de União e de Acção Revolucionária), uma das mais importantes organizações de luta armada a surgir em Portugal para combater o Estado Novo.

Carismático e misterioso, Hermínio da Palma Inácio era, para muitos, uma figura quase mítica. E, para a PIDE, um dos principais alvos a abater. Em 1961, o ex-militar da Força Aérea desviou um avião da TAP que fazia a ligação Casablanca- Lisboa, sobrevoando a baixa altitude várias cidades do país, incluindo a capital, para lançar perto de cem mil panfletos de apelo a uma revolta popular contra a ditadura. Participou, também, no assalto à delegação do Banco de Portugal da Figueira da Foz, onde foram roubados cerca de trinta milhões de escudos para financiar as operações de luta contra o regime.

Preso em 1968, quando tentou tomar a cidade da Covilhã, com outros cinquenta operacionais da LUAR, Palma Inácio foi condenado a 15 anos de prisão, mas conseguiu evadir-se da cadeia do Porto nove meses depois, numa fuga particularmente humilhante para a PIDE. Palma Inácio serrou as grades com lâminas que a irmã conseguiu fazer-lhe passar e que a polícia política, apesar de avisada de que existiam, nunca conseguira encontrar nas sucessivas revistas à cela.

Para Rafael Galego, Palma Inácio era um líder mas também um amigo. Rafael envolveu-se no combate à ditadura muito antes de o conhecer. A luta estava-lhe no sangue. Cresceu em Trás-os-Montes, no concelho de Montalegre, junto à fronteira com a Galiza, para onde o pai foi destacado como encarregado de obra na construção de uma barragem. Viviam isolados de povoações, num bairro construído apenas para os trabalhadores da obra. Solidária com a oposição, a família ajudou muitas vezes emigrantes clandestinos e refugiados políticos a darem o salto para Espanha. Davam-lhes farnel e dormida, escondendo-os da polícia. Em 1958, tinha Rafael 8 anos, o pai participou activamente na campanha de Humberto Delgado para as eleições presidenciais. Ao irmão, nascido nesse ano, deu o nome do candidato para o homenagear.

Como grande parte da população naquela época, Rafael acabou a 4ª classe e deixou os estudos. Aos 12 anos começou a trabalhar na barragem como “pinche”, um aprendiz de mecânica. Três anos depois, a construção acabou e a família mudou-se para Alverca. De dia, o miúdo magro e de corpo franzino trabalhava como metalomecânico na fábrica da Mague; à noite, frequentava um curso de formação para serralheiros. Nessa altura, ainda adolescente, juntou-se ao PCP. Pouco depois, com 19 anos, e como tantos que a família tinha ajudado em Trás-os-Montes, saltou a fronteira para fugir à guerra. Chegou a França sem dinheiro, sem conhecer ninguém, nem falar francês. Dormiu ao relento em bancos de jardim ou escondido no metro, nas noites mais frias. Sem conseguir arranjar trabalho, juntou-se a outros portugueses e partiu para o Luxemburgo. “Nem sequer sabia onde ficava o país.”

Desta vez, no entanto, a experiência correu bem. Alugou um quarto, encontrou emprego numa fábrica e juntou-se a um sindicato, ajudando a criar uma secção portuguesa na confederação de trabalhadores do Luxemburgo. Um dia, em 1971, foi abordado por um membro da LUAR para se juntar à organização. Rafael hesitou. “Mentalmente ainda estava ligado ao PCP.” Poucos dias depois, Palma Inácio encontrou-se com ele para o convencer. A amizade começou aí. Ganhou-lhe uma admiração e um respeito profundos. Foi-lhe fiel até ao fim.

Palma Inácio mudou-lhe o nome, deu-lhe um passaporte e uma carta de condução falsos e ensinou-lhe “tudo o que um guerrilheiro tem de saber”. Em França, para onde voltou a mudar-se, clandestino, Rafael era periodicamente chamado para treinos operacionais. Embrenhado no Bosque de Bolonha, aprendeu a lidar com radiotransmissores, teve formação em falsificação de documentos e treino de explosivos. Essa era, para ele, a parte mais fácil. Em miúdo, quando trabalhou com o pai na construção da barragem, já várias vezes tinha mexido em detonadores. Desta vez, no entanto, os professores não eram trabalhadores das obras, iletrados e pobres, mas “revolucionários profissionais”, como ele também queria ser.
 
 

No início de 1973, Rafael e outros quatro jovens que, com ele, tinham recebido treino estavam prontos. Sentiam-se preparados para qualquer missão que a Organização decidisse atribuir-lhes. Cansados do treino e dos simulacros, queriam actuar. Pediram a Palma Inácio para os deixar ir para Portugal. A luta pela democracia fazia-se lá. Não a dois mil quilómetros de distância, “em guerrilhas de café”. Em Julho desse ano, a LUAR decidiu enviá-los. Rafael e um controleiro, o chefe do grupo, foram de carro, transportando todo o equipamento: pistolas, metralhadoras, radiotransmissores, detonadores eléctricos e cargas explosivas. Os outros quatro meterem-se num comboio até Salamanca, onde o grupo voltou a reunir-se. Numa serra junto à cidade espanhola, abandonaram o carro e distribuíram uma pistola a cada um, escondendo o resto do material em sacos de mão. A ideia era saltarem a fronteira e entrarem em Portugal a pé, como tantos outros emigrantes.

O plano era esse, mas não foi o que aconteceu. Na aldeia raiana de Navasfrías, a poucos quilómetros de Portugal, foram interceptados pela polícia espanhola e encaminhados até ao posto para se identificarem. Era meio-dia e o calor apertava. Nas mãos, cada vez mais transpiradas pela temperatura e pela ansiedade, levavam sacos carregados de armamento. À entrada da esquadra, tiveram de pousá-los. Nesse momento, um dos agentes baixou-se e abriu o primeiro saco. Lá dentro estavam embrulhos que escondiam os detonadores. Não havia tempo para pensar. Antes do polícia ver o que era, Rafael puxou da pistola que trazia escondida nas calças. Foi tudo demasiado rápido. Assustados, os polícias fugiram para dentro do posto, onde o controleiro e um dos elementos do grupo estavam a ser identificados. Rafael e os restantes quatro fugiram, cada um na sua direcção.

Dois foram apanhados. O outro encontrou Rafael algumas centenas de metros à frente. Juntos, afastaram-se o mais que puderam da povoação e subiram uma montanha. Durante horas andaram perdidos no meio da serrania, sem mapas nem bússolas. Já a noite ia alta quando encontraram um pequeno cemitério isolado. Pelos nomes e pelas inscrições gravadas nas lápides, aperceberam-se de que já estavam em Portugal. Aliviados e exaustos, deitaram-se junto às campas.

Na manhã seguinte, caminharam até uma aldeia com casas de pedra, perdida no meio da serra da Malcata. Não viam ninguém. A aldeia parecia deserta. Junto a uma casa de dois andares, com o gado guardado no piso térreo, viram estacionado um carro com matrícula francesa, provavelmente, de um emigrante de visita à terra, nas férias de Verão. Podia ser a solução para um dos seus problemas mais imediatos. No bolso, Rafael tinha quinhentos francos que conseguira graças à sua guitarra, que vendera em Paris, antes de rumar a Portugal. O companheiro não tinha nada. Precisavam de trocar os francos por escudos para comprar um bilhete de comboio ou de camioneta até Lisboa. Traçaram uma história convincente para contar e combinaram que seria Rafael a fazer a conversa.

“Ó da casa!”, chamou. A senhora veio à porta e convidou-os a entrar. Ao emigrante, filho da dona, explicou que tinham planeado ir viver para França e que já tinham trocado o dinheiro para francos quando os avisaram de que o país estava a travar a entrada de novos emigrantes. Desistiram, mas ficaram com aquele dinheiro que em Portugal não lhes servia de nada. O emigrante aceitou, sem reservas nem perguntas, fazer-lhes o câmbio. Serviu-lhes café e pôs na mesa pão, presunto e queijo.

Não comiam há mais de um dia e “estavam mortos de fome”. Quando Rafael se preparava para se servir, o filho do emigrante, uma criança irrequieta com 2 ou 3 anos, simpatizou com ele e foi sentar-se ao seu colo. Rafael tinha a pistola escondida nas calças, entre a cintura e o fecho. Teve medo de que a criança, que não parava quieta, a descobrisse. Pôs uma mão sobre a arma e com a outra agarrou o miúdo. Não sobrava nenhuma para tirar uma fatia de pão. Ao seu lado, o companheiro não parava de comer. A dona da casa via-o com gosto a deliciar-se e insistiu para que também Rafael se servisse. Ele não tinha como. Agradeceu, mas recusou, dizendo que estava sem fome.

Deixou a casa de barriga vazia. Sempre por caminhos afastados da estrada, continuaram até encontrarem uma linha de comboio. Seguiram os carris até à estação e compraram dois bilhetes para o Porto. Para despistar a polícia, saíram na Guarda e apanharam outro comboio rumo a Lisboa. Quando chegaram à capital “eram dois pardalitos isolados, clandestinos e sem forma de entrar em contacto com a Organização”. Era o mais importante. Tinham urgência em avisar Palma Inácio da prisão dos companheiros em Espanha. Foram bater à porta de um padre que Rafael sabia pertencer à LUAR e que já tinha sido preso uns anos antes. Contou-lhe que o grupo fora desmantelado e que só restava ele e outro companheiro. Pediu-lhe para ir a França avisar o líder e dizer-lhe que ficaria a aguardar o contacto para uma nova missão. Separou-se do amigo, que partiu para a Covilhã, de onde era natural, e rumou a Alverca, que conhecia bem.

Nunca chegou a ser chamado para outra operação. Foi preso pouco tempo depois, em 23 de Setembro de 1973, exactamente um mês após o desaire de Navasfrías. Sabendo, pela vida que levava, que o mais provável era ser apanhado, Rafael tinha pedido há muito a Palma Inácio e a outros ex-presos políticos pertencentes à Organização para lhe descreverem, ao pormenor, as torturas e os métodos da PIDE. Quando foi capturado, julgava saber o que o esperava, mas foi, afinal, muito pior do que antecipara e do que as descrições o tinham feito imaginar. Esteve um mês em privação de sono, considerada uma das mais difíceis, dolorosas e perturbadoras formas de tortura. Um mês sem se lavar, a andar aos círculos numa sala, à mercê de alucinações agoniantes e espancamentos periódicos.

Durante todo esse tempo, trazia nas palmilhas 11 folhas de serrote para tentar escapar. Há muito que andavam com ele, dentro dos sapatos, para o caso de um dia ser preso e precisar. No primeiro mês, no entanto, estivera sempre vigiado por um pide, pelo menos. Quando, ao fim de 31 dias de tortura, o tiraram da sala de interrogatório e o levaram em ombros para uma cela no reduto norte, onde o depositaram e o fecharam sozinho, já não tinha como as usar. Destruído, meio louco, sem força e sem fé, era uma amostra de homem com 52 quilos, que mal conseguia pôr-se em pé.

Mas estava orgulhoso. Conseguira resistir. Mal sabia que ainda não tinha acabado. Depois de dois dias a dormir, quando pensava que o calvário chegara ao fim, arrastaram-no, novamente, para mais seis dias e seis noites de tortura do sono. Implorou para o mataram. “Era preferível morrer. Já não encontrava sentido para o sofrimento” em que se encontrava. Lembrava-se das ameaças na Boca do Inferno e desejava que o levassem outra vez e que o atirassem ao mar ou que acabassem com ele ali mesmo, com um tiro certeiro e misericordioso. “Estava capaz de contar a vida toda, o que sabia e o que não sabia. Mais um minuto e teria falado.” Nesse instante, porém, foram buscá-lo e levaram-no ao gabinete do chefe de brigada. Entrou e viu pendurado num cabide um casaco de flanela aos quadrados que tão bem conhecia. De imediato, percebeu que todo o sacrifício fora em vão. Palma Inácio, o seu líder, o amigo a quem jurou ser sempre fiel, tinha sido apanhado.

 

 

Joana Pereira Bastos, OS ÚLTIMOS PRESOS DO ESTADO NOVO,

tortura e desespero em vésperas do 25 de Abril
publicado por Elisabete às 15:01
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Segunda-feira, 18 de Março de 2013

Jornal FRONTEIRA

 

FRONTEIRA

 

Jornal legal, publicado em França, embora com morada belga, impresso em tipografia (Imp Maubert, Saint-Ouen). Esta dualidade de endereços deveu-se ao facto de o primeiro número ter sido feito na Bélgica, e estar previsto servir de órgão a um “centro cultural” em Bruxelas, que apoiaria a logística da LUAR. O responsável inicial era o padre Joaquim Alberto. Esse projecto falhou e a redacção foi deslocada para Paris. A intenção do grupo da Fronteira era publicar um número por mês, e depois passar para semanal, mas tal não foi conseguido (4 números em seis meses, em 1973, e dois em quatro meses até ao 25 de Abril). O jornal tinha uma tiragem de “vários milhares de exemplares”. Uma das razões para a elevada tiragem era atingir o número de exemplares necessários para a distribuição ser feita pelas Nouvelles Messageries de la Presse Parisienne (NMPP), ligada à CGT. Para além disso, era vendido nos mercados de Paris e à porta das fábricas, nos locais onde havia muitos emigrantes portugueses. Era igualmente distribuído na Bélgica, na Holanda, no Luxemburgo, na Inglaterra e na Alemanha, assim como alguns exemplares eram enviados para o interior de Portugal.

Ao abrigo da lei francesa e belga, os editores responsáveis eram, na França, Pierre Vidal-Naquet, e, na Bélgica, François Houtart. […]

O jornal era uma iniciativa da LUAR, que o financiava, e era dirigido na prática, desde o seu segundo número, por Fernando Pereira Marques, um membro da organização. Este, após cumprir pena de prisão pela sua participação na tentativa da LUAR de ocupar a Covilhã, em Agosto de 1968, e tendo sido libertado em 1971, estava em 1973 de novo ameaçado de prisão em Portugal, e foge para França, onde permaneceu até ao 25 de Abril de 1974. […] Entre os seus colaboradores contavam-se para além de Fernando Pereira Marques, Joaquim Alberto e Armando Ribeiro, todos da LUAR, os independentes Manuel Villaverde Cabral e Fernando Medeiros, Rodolfo Crespo, ligado à ASP, Gabriel Raimundo e João Vaz, que atuava como jornalista profissional. […]

A Fronteira cobre todos os temas da emigração: segurança social, acidentes de trabalho, racismo, luta contra a Circular Fontanet, greves. Mas cobre também os principais acontecimentos políticos ocorridos durante a sua publicação, a visita de Marcelo Caetano a Londres, as eleições de 1973, e inclui entrevistas e noticiário sobre os movimentos de libertação das colónias portuguesas. Porém, em certas matérias, vai mais longe do que os seus congéneres, como é o caso de um longo artigo sobre o aborto, a propósito do debate francês sobre a matéria.

[…]

 

 

 

O jornal é deliberadamente eclético no plano político, evitando envolver-se na conflituosidade verbal (e às vezes física) entre as organizações políticas que actuavam na emigração. […]

A orientação do jornal deu origem a uma discussão interna que se acentua nos finais de 1973 e em 1974. O jornal vai progressivamente precisando a sua orientação e assim respondendo às pressões sobre a sua “linha”. No número 4 publica-se um texto programático não assinado que demarca o jornal dos sectores mais moderados da oposição portuguesa, em particular o novel PS, com quem a LUAR mantinha relações:

 

[…]

A revolução a fazer em Portugal será popular ou não será revolução. Construirá o socialismo e não se limitará a continuar a exploração capitalista. Não há meios-termos; é tempo que os trabalhadores deixem de servir de carne de canhão para substituir patrões. A revolução será a conquista das fábricas pelos operários, dos campos pelos camponeses, e o fim da exploração do homem pelo homem”. [“O Poder Popular. Nunca a Unidade com os Patrões Conduz à Vitória, Fronteira, nº 4].

 

Esta discussão acelerou-se pela prisão de elementos da LUAR, alguns dos quais eram seus colaboradores (Gabriel Raimundo, por exemplo). Entre Setembro e Novembro de 1973, mais de uma dezena de membros da LUAR são presos em Espanha e em Portugal, incluindo o principal mentor da organização, Palma Inácio. Estas prisões, vindas na sequência de várias outras acções da LUAR abortadas pela PIDE, aceleraram a reflexão sobre a actuação da organização, e, por consequência, a linha programática do jornal. Em Janeiro de 1974, Fernando Pereira Marques elabora um documento intitulado “Por Uma Utilização Correcta de Novos Métodos de Luta. Pela Revolução Socialista”, que, segundo o seu autor, era o único “documento […] com um carácter mais amplo e de natureza programática” produzido antes do 25 de Abril pela LUAR. O texto partia de uma reflexão autocrítica sobre “uma certa tendência às acções especiais” que limitava a “expressão correcta de uma perspectiva política e ideológica”. Na sua elaboração participaram Armando Ribeiro e Rui Pereira.

Este debate é truncado pelo 25 de Abril e, após um hiato de vários meses, a Fronteira reapareceu, agora como Jornal da Liga de União e Acção Revolucionária. O jornal passou a ser “dirigido a todos os trabalhadores portugueses e não essencialmente aos emigrantes, como acontecia”, mas reafirmando algumas das suas linhas de orientação fundamentais:

 

Claro que tem de haver uma adaptação à situação criada pelo levantamento militar de 25 de Abril, no entanto, o Fronteira continuará a ser não um jornal partidário mas sim informativo, aberto à colaboração de todos aqueles que não estando connosco organicamente partilham da mesma perspectiva revolucionária e socialista. E isto porque, utilizando as mesmas palavras de Jean Paul Sartre, director do jornal francês Libération, consideramos que “os partidos falam por cima das massas, e o que nós queremos é ver as próprias massas falarem”. Queremos, pois, que o Fronteira seja um jornal através do qual os trabalhadores possam falar de si próprios, dos problemas concretos da sua situação na sociedade. Um jornal, enfim, ao serviço da emancipação de todos os explorados [Editorial, Fronteira, nº 7, 30 de Setembro de 1974].

 

O jornal publicou-se até 1975.

 

 

José Pacheco Pereira, As Armas de Papel

 

publicado por Elisabete às 18:45
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Segunda-feira, 18 de Fevereiro de 2013

2 DE MARÇO: texto de PAULO VARELA GOMES

 

A mais conhecida frase de Gandhi é:

 

«Não há qualquer causa pela qual esteja disposto a matar. Mas há causas pelas quais estou pronto a morrer.»

 

Estas palavras resumem a perspectiva de luta com que hoje se defrontam centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, mas em especial no Ocidente (Europa e continente americano). Estamos na última das extremidades: está em jogo a vida das pessoas. Primeiro seremos reduzidos à pobreza. Depois farão de nós o que bem lhes aprouver.

A maioria das pessoas no Ocidente já há duas ou três décadas percebeu aquilo que a esquerda ocidental mostra extrema relutância em aceitar: que não vale a pena nem é possível combater apenas por meios legais o capitalismo sustentado parlamentarmente.

A maioria das pessoas pensa que os políticos são uns aldrabões ou corruptos, que o sistema judicial está ao serviço deles e que só os ricos e poderosos se safam. O chamado «descrédito do sistema político», assunto sobre o qual se têm tecido profundíssimas reflexões, é simples de explicar: o sistema está desacreditado porque não merece crédito. As pessoas já perceberam. Uma parte delas continua a votar por desfastio, a outra vota com os pés.

A esquerda parece estar convencida de que escapará entre as gotas desta bátega torrencial de desilusões recorrendo à luta dentro do sistema: o discurso parlamentar, as eleições, a ocasional coluna nos jornais ou prestação televisiva, etc. Triste engano. A maioria das pessoas não distingue um deputado do PCP de um do PSD, para referir casos portugueses. Estão todos no mesmo sistema.

Dizer coisas como esta pode parecer o regresso a um dos mais velhos debates da esquerda ocidental: como combater o sistema capitalista e o seu parlamentarismo? A partir de dentro ou a partir de fora?

Parece, mas não é. Pela primeira vez desde o século XIX, o sistema não tem alternativa nem teórica nem prática, quer dizer, não pode ser substituído. Mas têm alternativa os seus governos e regimes mais injustos e corruptos. É indispensável resistir-lhes, desgastá-los, desregular-lhe os mecanismos de funcionamento, derrubá-los.

Para resistir desta maneira não se pode agir apenas com os meios que o sistema permite. Quando se convoca a greve geral nº 354, a grande manifestação nº 1723, ou se assina o manifesto nº 10 655, só se está a desacreditar a greve geral, a manifestação e o manifesto, respectivamente.

Todavia, as greves e as manifestações podem atingir uma dimensão verdadeiramente surpreendente se pararem de facto o país, se encherem de facto as cidades. É por isso que vale a pena investir em manifestações como a de 15 de Setembro ou a de 2 de Março próximo. Para surpreender e assustar os poderosos.

Deve pensar-se que a resistência armada ao sistema está sem qualquer dúvida na ordem do dia e será uma realidade mais cedo do que tarde. Todavia, é muito perigosa tanto do ponto de vista ético como político. O passado demonstrou-o muitas vezes.

Mais importante e efectiva é a resistência desarmada, a resistência passiva. É preciso seguir o lema de Gandhi.

Em vez de termos cinco mil pessoas em frente de S. Bento, é preciso ter cinquenta mil, deitadas nas escadas em levas sucessivas, sofrendo as cacetadas da polícia, aguentando os canhões de água, sendo presas.

Há cinquenta mil pessoas em Portugal dispostas a isto?

Não me parece. Nem sequer cinco mil.

E porquê?

Por muitas razões que todos conhecemos e uma que nos recusamos a reconhecer: porque a esquerda é vítima do seu servilismo parlamentar e acredita só poder existir enquanto tiver lugares no parlamento e aparecer na televisão ou nos jornais a apertar a mão do PR. De facto, a esquerda não promove e até condena a resistência passiva. A primeira coisa que diz um sindicalista ou dirigente da esquerda após convocar uma manifestação é que será «pacífica». A primeira exclamação que lhe sai da boca mal alguém se agita é «calma camaradas!»

Esta é a responsabilidades negativa da esquerda.

Olhemos agora para as suas responsabilidades positivas:

É sua estrita obrigação política e ética apoiar, promover e assumir o rosto da resistência passiva. Se o fizer dará o exemplo e a resistência poderá crescer. Para isso, os seus representantes, e com eles os intelectuais de esquerda e os independentes que estão contra o sistema, terão que estar prontos para resistir.

Se não há cinquenta mil pessoas dispostas a aguentar em frente do Parlamento, há dezenas de deputados que deveriam estar dispostos a: boicotar activamente sessões parlamentares, impedindo o Parlamento de funcionar; não pagar impostos e incitar ao não pagamento; sentar-se numa linha férrea em ocasião de greve dos comboios, etc., etc., etc.

Perdiam o mandato? Iam presos?

Nas presentes circunstâncias, vivendo nós sob um regime ilegítimo eticamente e tirânico politicamente, o lugar mais honroso onde podem estar Jerónimo de Sousa ou Catarina Martins é a prisão.

(Pessoalmente, sentir-me-ia muito mais contente comigo mesmo e com este texto se tivesse saúde para agir em conformidade com o que aqui escrevi.)

 

http://aventar.eu/author/bloggerconvidado/

publicado por Elisabete às 10:01
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Sábado, 10 de Novembro de 2012

OPERAÇÃO VAGÔ: Desvio de avião da TAP

 

No dia 9 de Novembro, Amândio Silva, Camilo Mortágua, Fernando Vasconcelos, João Martins, Maria Helena Vidal e Palma Inácio partiram de Tânger para Casablanca, já de noite, com os carros completamente às escuras durante cerca de dez quilómetros, para não serem detectados pelos agentes da PIDE ou outros.

 

 

 

No dia 10, no aeroporto de Casablanca, os seis foram entrando como passageiros, levando seis mil panfletos (denunciando a farsa eleitoral que se devia realizar dois dias depois) nas suas malas, que não foram abertas, como tinham verificado ser habitual. Era um voo directo para Lisboa, que deveria partir às nove horas e um quarto e ter uma duração de hora e meia. Ao aproximarem-se de Lisboa foi desencadeada a operação de tomada de controlo do avião, depois de Maria Helena ter retirado da sua cinta as cinco pistolas que levava. Tudo decorreu discretamente, graças à determinação de Palma Inácio, que rapidamente convenceu o comandante do avião e a restante tripulação a fazerem o que ele lhes ordenasse.

 
 

Sobrevoou Lisboa a baixa altitude largando panfletos em catadupa, que desciam lentamente no centro de Lisboa, perante o olhar espantado de toda a gente, depois iniciou o regresso a Marrocos não sem, pelo caminho, largar ainda panfletos sobre o Barreiro, Seixal, outras localidades da Margem Sul e Faro.

Aterraram em Tânger três horas depois da sua partida de Casablanca. Tinham à sua espera Henrique Galvão, muitos jornalistas e autoridades marroquinas que lhes asseguraram um estatuto de asilo provisório até se encontrar um país que os recebesse, que acabou por ser o Brasil.

A Operação Vagô decorreu como previsto e teve um grande impacte na imprensa mundial, voltando a denunciar o regime de Salazar.

 

José Hipólito Santos, A Revolta de Beja

publicado por Elisabete às 11:29
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Quarta-feira, 7 de Novembro de 2012

CARTA ABERTA A ANGELA MERKEL

6 de Novembro de 2012

 

CARTA ABERTA A ANGELA MERKEL

 

Cara chanceler Merkel,

 

Antes de mais, gostaríamos de referir que nos dirigimos a si apenas como chanceler da Alemanha. Não votámos em si e não reconhecemos que haja uma chanceler da Europa. Nesse sentido, nós, subscritores e subscritoras desta carta aberta, vimos por este meio escrever-lhe na qualidade de cidadãos e cidadãs. Cidadãos e cidadãs de um país que pretende visitar no próximo dia 12 de Novembro, assim como cidadãos e cidadãs solidários com a situação de todos os países atacados pela austeridade. Pelo carácter da visita anunciada e perante a grave situação económica e social vivida em Portugal, afirmamos que não é bem-vinda. A senhora chanceler deve ser considerada persona non grata em território português porque vem, claramente, interferir nas decisões do Estado Português sem ter sido democraticamente mandatada por quem aqui vive.

 

 

Mesmo assim, como o nosso governo há algum tempo deixou de obedecer às leis deste país e à Constituição da República, dirigimos esta carta directamente a si. A presença de vários grandes empresários na sua comitiva é um ultraje. Sob o disfarce de "investimento estrangeiro", a senhora chanceler trará consigo uma série de pessoas que vêm observar as ruínas em que a sua política deixou a economia portuguesa, além da grega, da irlandesa, da italiana e da espanhola. A sua comitiva junta não só quem coagiu o Estado Português, com a conivência do governo, a privatizar o seu património e bens mais preciosos, como potenciais beneficiários desse património e de bens públicos, comprando-os hoje a preço de saldo.

Esta interpelação não pode nem deve ser vista como uma qualquer reivindicação nacionalista ou chauvinista – é uma interpelação que se dirige especificamente a si, enquanto promotora máxima da doutrina neoliberal que está a arruinar a Europa. Tão pouco interpelamos o povo alemão, que tem toda a legitimidade democrática para eleger quem quiser para os seus cargos representativos. No entanto, neste país onde vivemos, o seu nome nunca esteve em nenhuma urna. Não a elegemos. Como tal, não lhe reconhecemos o direito de nos representar e menos ainda de tomar decisões políticas em nosso nome.

E não estamos sozinhos. No próximo dia 14 de Novembro, dois dias depois da sua anunciada visita, erguer-nos-emos com outros povos irmãos numa greve geral que inclui muitos países europeus. Será uma greve contra governos que traíram e traem a confiança depositada neles pelas cidadãs e cidadãos, uma greve contra a austeridade conduzida por eles. Mas não se iluda, senhora chanceler. Também será uma greve contra a austeridade imposta pela troika e por todos aqueles que a pretendem transformar em regime autoritário. Será, portanto, uma greve também contra si. E se saudamos os nossos povos irmãos da Grécia, de Espanha, de Itália, do Chipre e de Malta, saudamos também o povo alemão que sofre connosco. Sabemos bem que o Wirtschaftswunder, o “milagre económico” alemão, foi construído com base em perdões sucessivos da dívida alemã por parte dos seus principais credores. Sabemos que a suposta pujança económica alemã actual é construída à custa de uma brutal repressão salarial que dura há mais de dez anos e da criação massiva de trabalho precário, temporário e mal-remunerado, que aflige boa parte do povo alemão. Isto mostra também qual é a perspectiva que a senhora Merkel tem para a Alemanha.

É plausível que não nos responda. E é provável que o governo português, subserviente, fraco e débil, a receba entre flores e aplausos. Mas a verdade, senhora chanceler, é que a maioria da população portuguesa desaprova cabalmente a forma como este governo, sustentado pela troika e por si, está a destruir o país. Mesmo que escolha um percurso secreto e um aeroporto privado, para não enfrentar manifestações e protestos contra a sua visita, saiba que essas manifestações e protestos ocorrerão em todo o país. E serão protestos contra si e aquilo que representa. A sua comitiva poderá tentar ignorar-nos. A Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu podem tentar ignorar-nos. Mas somos cada vez mais, senhora Merkel. Aqui e em todos os países. As nossas manifestações e protestos terão cada vez mais força. Cada vez conhecemos melhor a realidade. As histórias que nos contavam nunca bateram certo e agora sabemos serem mentiras descaradas.

 

Acordámos, senhora Merkel. Seja mal-vinda a Portugal.

 

Subscritores/as:

 

Alexandra Pereira, artista plástica, activista PIIGS United In London Group
Alexandre Lopes de Castro, jornalista
Alfredo Barroso, escritor
Alice Brito, advogada
Alice Vieira, escritora e jornalista
Alípio de Freitas, jornalista, professor, Associação Abril, Associação Mares Navegados
Ana Campos, médica
Ana Carla Gonçalves, professora, activista
Ana Feijão, arquitecta paisagista, activista Precários Inflexíveis
Ana Luísa Amaral, poetisa, escritora, professora
Ana Maria Pinto, cantora lírica, activista
Ana Nicolau, realizadora
Andy Storey, professor University College Dublin, Debtireland (Irlanda)
António Costa Santos, jornalista, escritor
António José Lourenço, dirigente associativo, ecologista
António Mariano, estivador, Sindicato dos Estivadores
António Melo, jornalista
António Monteiro Cardoso, jurista, professor universitário
António Pedro Dores, sociólogo, presidente da ACED
António Pedro Vasconcelos, realizador
António Serzedelo, Opus Gay
Belandina Vaz, professora, Protesto dos Professores Contratados e Desempregados
Bruno Cabral, realizador, dirigente CENA - Sindicato
Bruno G. M. Neto, coordenador de Advocacy, Medicos del Mundo
Carlos Antunes, resistente anti-fascista
Carlos Costu, activista 15M London (Reino Unido)
Carlos Mendes, músico
Chris Nineham, secretário nacional Counterfire (Reino Unido)
Clare Solomon, vice-presidente Coalition of Resistance (Reino Unido)
Costas Lapavitsas, professor de Economia na SOAS - Universidade de Londres (Grécia)
Costas Todoulos, activista Jubillee Debt Campaign London (Grécia)
Dan Poulton, escritor e comentador (Reino Unido)
Daniel Oliveira, jornalista
Eduarda Dionísio, reformada, Casa da Achada
Eduardo Costa Dias, sociólogo, Centro de Estudos Africanos, ISCTE
Eric Toussaint, presidente CADTM – Comité pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (Bélgica)
Esther Vivas, activista social (Estado Espanhol)
Eugénio Rosa, economista
Fátima Rolo Duarte, designer gráfica
Fernando Rosas, historiador
Feyzi Ishmail, doutoranda SOAS, activista Counterfire (Reino Unido)
Filipe Tourais,técnico de economia e finanças no Instituto Politécnico de Coimbra
Francisco Calafate Faria, investigador, activista London Against Troika
Francisco Frazão, programador de teatro
Frederico Aleixo, activista SOS Racismo
Guadalupe Portelinha, professora, Associação Abril, Associação Mares Navegados
Guadalupe Simões, enfermeira, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros de Portugal
Helena Neves, professora universitária, activista feminista
Helena Pato, professora, Associação Não Apaguem a Memória
Inês Lourenço, investigadora CRIA
Irene Flunsel Pimentel, historiadora
Isabel do Carmo, médica
Joana Amaral Dias, psicóloga
Joana Campos, bolseira de investigação, activista Precários Inflexíveis
Joana Manuel, actriz, activista
Joana Saraiva, actriz, activista
Joana Villaverde, artista plástica
João Alexandre Grazina, tesoureiro, Associação Abril
João Camargo, engº ambiente, activista Precários Inflexíveis
João Leal, antropólogo, FCSH
João Reis, actor
Jorge Costa, jornalista
John Rees, escritor, autor do livro “Imperialism and Resistance” (Reino Unido)
José António Fernandes Dias, professor universitário, director do Africa.cont
José Gabriel Pereira Bastos, antropólogo, professor universitário aposentado
José Gema, fotógrafo
Lucía Gomes, advogada
Lucília José Justino, professora e activista dos direitos humanos
Luís Bernardo, historiador, ATTAC
Luís Marques, antropólogo, ex-director da Director Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo
Luís Moutinho, Doutor em Química (UP), Professor Auxiliar no Instituto Superior de Ciências da Saúde – Norte
Luís Varatojo, músico
Luísa Ortigoso, actriz
Luísa Oliveira, socióloga, ISCTE, CIES
Magda Alves, socióloga, activista feminista
Manuel Grilo, professor,vice-presidente do SPGL
Manuel Loff, historiador
Manuela Góis, activista feminista
Manuela Tavares, activista feminista
Marco Marques, engº florestal, activista Precários Inflexíveis
Margarida Ferreira, activista Occupy London
Margarida Paredes, antropóloga, escritora
Margarida Vale de Gato, professora, tradutora, poeta
Maria da Paz Lima, socióloga, docente universitária do ISCTE-IUL
Maria Isabel Barreno, escritora
Maria Teresa Horta, escritora
Michel Gustave Joseph Binet, Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa
Micol Brazzabeni, bolseira pos-doc, assembleia Popular da Graça
Miguel Cardina, Investigador CES
Miguel Tiago, geólogo
Myriam Zaluar, jornalista, activista Precários Inflexíveis
Natalia Lopez, activista 15M London (Reino Unido)
Nuno Ramos de Almeida, jornalista
Paula Marques, actriz, assessora autárquica
Paula Nunes, produtora
Paulo Granjo, antropólogo, ICS
Paulo Raposo, antropólogo, docente ISCTE-IUL, investigador do CRIA
Pedro Abrantes, investigador CIES-ISCTE/IUL
Raquel Freire, realizadora, activista social
Ricardo Morte, empresário
Roberto Santandreu, fotógrafo
Ronan Mcnern, activista Occupy London (Reino Unido)
Rui Bebiano, historiador, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais e Centro de Documentação 25 de Abril
Rui Dinis, músico, activista
São José Lapa, actriz, encenadora
Sam Fairbairn, secretário nacional Coalition of Resistance (Reino Unido)
Sérgio Vitorino, activista Panteras Rosa
Teresa Xavier, doutoranda, activista socialista
Tiago Mota Saraiva, arquitecto
Victor Olmos, activista 15M London (Reino Unido)
Virginia Lopez Calvo, activista 15M London (Reino Unido)
Vítor Nogueira, economista e activista dos direitos humanos

Organizações:

PIIGS United in London Group
Londres Contra a Troika
Occupy London
Greece Solidarity Campaign Coalition of Resistance (CoR)
15M London Assembly/ Real Democracy Now London
Coalition of Resistance (CoR)
Solidarity With The Greek Resistance - London
Wake Up (London)
ATTAC España
Grupo de Trabajo de Economía Sol del 15M de Madrid
Asamblea de Trabajadorxs de la UNIVERSIDAD AUTÓNOMA DE MADRID

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Sábado, 27 de Outubro de 2012

Era possível acabar com esta crise já

 

 

Era possível acabar com esta crise já. Se “eles” quisessem [Paul Krugman]

 

Os instrumentos económicos existem mas a opinião política dominante proíbe o fim da crise. Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, apela ao fim dessa corrente austeritária, sacrificial e assassina de empregos. Ana Sá Lopes leu e gostava de assinar por baixo

 

Nestes últimos três anos caiu-nos uma depressão em cima da cabeça, e o que fizemos? Procurámos culpados. O “viver acima das nossas possibilidades” e “os malefícios do endividamento” são duas cantigas populares dos últimos anos. E, no entanto, antes de a crise ter rebentado na América e de se ter propagado à Europa, o nível de endividamento de alguns dos países do sul da Europa, como Portugal e Espanha, tinha vindo a reduzir-se. Os gráficos estão lá e mostram que sim (como mostram que o gigante alemão também está fortemente endividado). Mas porque é que as pessoas não querem acreditar nisto? Nem sequer apreender o facto de terem sido “praticamente todos os principais governos” que, “nos terríveis meses que se seguiram à queda do banco de investimento Lehman Brothers, concordaram em que o súbito colapso das despesas do sector privado teria de ser contrabalançado e viraram-se então para uma política orçamental e monetária expansionista num esforço para limitar os danos”? A Comissão Europeia e a Alemanha estavam “lá”. E, de repente, tudo mudou.

Uma das maiores dificuldades de lidar com esta crise é, em primeiro lugar, o facto natural de tanto o cidadão comum como Jesus Cristo não perceberem nada de finanças, a menos quando lhe vão ao seu próprio bolso (ou perde o emprego). A outra é o poder da narrativa do “vivemos acima das nossas possibilidades”, aquilo a que Krugman chama a “narrativa distorcida” europeia , “um relato falso sobre as causas da crise que impede verdadeiras soluções e conduz de facto a medidas políticas que só pioram a situação”. Krugman ataca “uma narrativa absolutamente errada”, consciente de que “as pessoas que apregoam esta doutrina estão tão relutantes como a direita americana em ouvir a evidência do contrário”.

Três quartos do livro-manifesto “Acabem com esta crise já” é dedicado aos Estados Unidos, pátria de Krugman. Mas tendo em conta o nosso “interesse nacional”, centremo-nos no que diz sobre a Europa.

Krugman refuta a explicação popular e maioritária sobre a situação actual na Europa – países sob tutela de troika e pedidos de resgate à média de dois por ano. “Eis, então, a Grande Ilusão da Europa: é a crença de que a crise da Europa foi essencialmente causada pela irresponsabilidade orçamental. Diz essa história que os países europeus incorreram em excessivos défices orçamentais e se endividaram demasiado – e o mais importante é impor regras que evitem que isto volte a acontecer”.

Krugman aceita que a Grécia (e Portugal, “embora não à mesma escala") incorreu em “irresponsabilidade orçamental”, mas recusa a “helenização” do problema europeu. “A Irlanda tinha um excedente orçamental e uma dívida pública reduzida na véspera do deflagrar da crise (...) A Espanha também tinha um excedente orçamental e uma dívida reduzida. A Itália tinha um alto nível de endividamento herdado das décadas de 1970 e 1980, quando a política era realmente irresponsável, mas estava a conseguir fazer baixar de forma progressiva o rácio do endividamento em relação ao PIB”. Ora um graficozinho do FMI demonstra que, enquanto grupo, “as nações europeias que se encontram actualmente a braços com problemas orçamentais conseguiram melhorar de forma progressiva a sua posição de endividamento até ao deflagrar da crise”. E foi só com a chegada da crise americana à Europa que a dívida pública disparou. Explicar isto aos “austeritários” é uma tarefa insana. Diz Krugman: “Muitos europeus em posições-chave – sobretudo políticos e dirigentes na Alemanha, mas também as lideranças do Banco Central Europeu e líderes de opinião espalhados pelo mundo das finanças e da banca – estão profundamente comprometidos com a Grande Ilusão e nada consegue abalá-los por mais provas que haja em contrário. Em consequência disso, o problema de responder à crise é muitas vezes formulado em termos morais: as nações estão com problemas porque pecaram e devem redimir-se por via do sofrimento”. Ora é esta exactamente a história que nos conta o governo e que é, segundo Paul Krugman, “um caminho muito mau para se abordar os problemas que a Europa enfrenta”.

Ao contrário do que muita gente possa pensar, Krugman não é um perigoso socialista. E, céus, até defende a austeridade (alguma, mas não esta). Vejam como ele explica a crise espanhola, que considera a crise emblemática da zona euro: “Durante os primeiros oito anos após a criação da zona euro a Espanha teve gigantescos influxos de dinheiro, que alimentaram uma enorme bolha imobiliária e conduziram a um grande aumento de salários e dos preços relativamente aos das economias do núcleo europeu [Alemanha, França e Benelux]. O problema essencial espanhol, do qual derivam todos os outros, é a necessidade de voltar a alinhar custos e preços. Como é que isso pode ser feito?”. O Nobel explica: “Poderia ser feito por via da inflação nas economias do núcleo europeu. Imagine-se que o BCE seguia uma política de dinheiro fácil enquanto o governo alemão se empenhava no estímulo orçamental; isto iria implicar pleno emprego na Alemanha mesmo que a alta taxa de desemprego persistisse em Espanha. Os salários espanhóis não iriam subir muito, se é que chegavam a subir, ao passo que os salários alemães iriam subir muito; os custos espanhóis iriam assim manter-se nivelados, ao passo que os custos alemães subiriam. E para a Espanha seria um ajustamento relativamente fácil de fazer: não seria fácil, seria relativamente fácil”.

Ora, esta maneira “relativamente fácil” de resolver a crise europeia tem estado condenada (vamos ver o que se segue ao novo programa de compra de dívida do BCE, criticado pelo presidente do Bundesbank) pela irredutibilidade alemã relativamente à inflação, “graças às memórias da grande inflação ocorrida no início da década de 1920”. Krugman lembra bem que estranhamente “estão muito mais esquecidas as memórias relativas às políticas deflacionárias do início da década de 1930, que foram na verdade aquilo que abriu caminho para a ascensão daquele ditador que todos sabemos quem é”.

O que trama as nações fracas do euro (como Espanha e Portugal) é, não tendo meios de desvalorizar a moeda – como fez a Islândia no rescaldo da crise com sucesso – estão sujeitas ao “pânico auto-realizável”. O facto de não poderem “imprimir dinheiro” torna esses países vulneráveis “à possibilidade de uma crise auto-realizável, na qual os receios dos investidores quanto a um incumprimento em resultado de escassez de dinheiro os levariam a evitar adquirir obrigações desse país, desencadeando assim a própria escassez de dinheiro que tanto receiam”. É este pânico que explica os juros loucos pagos por Portugal, Espanha e Itália, enquanto a Alemanha lucra a bom lucrar com a crise do euro – para fugir ao “pânico” os investidores emprestam dinheiro à Alemanha sem pedir juros e até dando bónus aos alemães por lhes deixarem ter o dinheirinho guardado em Frankfurt.

Se Krugman defende que “os países com défices orçamentais e problemas de endividamento terão de praticar uma considerável austeridade orçamental”, defende que para sair da crise seria necessário que “a curto prazo, os países com excedentes orçamentais precisam de ser uma fonte de forte procura pelas exportações dos países com défices orçamentais”.

Nada disto está a acontecer. “A troika tem fornecido pouquíssimo dinheiro e demasiado tardiamente” e, “em resultado desses empréstimos de emergência, tem-se exigido aos países deficitários que imponham programas imediatos e draconianos de cortes nos gastos e subidas de impostos, programas que os afundam em recessões ainda mais profundas e que são insuficientes, mesmo em termos puramente orçamentais, à medida que as economias encolhem e causam uma baixa de receitas fiscais”. Conhece esta história, não conhece?

 

Ana Sá Lopes [24 Set 2012]

 

publicado por Elisabete às 16:05
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Sábado, 22 de Setembro de 2012

O sonho de Pedro Passos Coelho

Um terço é para morrer. Não é que tenhamos gosto em matá-los, mas a verdade é que não há alternativa. Se não damos cabo deles, acabam por nos arrastar com eles para o fundo. E de facto não os vamos matar-matar, aquilo que se chama matar, como faziam os nazis. Se quiséssemos matá-los mesmo era por aí um clamor que Deus me livre. Há gente muito piegas, que não percebe que as decisões duras são para tomar, custe o que custar e que, se nos livrarmos de um terço, os outros vão ficar melhor. É por isso que nós não os vamos matar. Eles é que vão morrendo. Basta que a mortalidade aumente um bocadinho mais que nos outros grupos. E as estatísticas já mostram isso. O Mota Soares está a fazer bem o seu trabalho. Sempre com aquela cara de anjo, sem nunca se desmanchar. Não são os tipos da saúde pública que costumam dizer que a pobreza é a coisa que mais mal faz à saúde? Eles lá sabem. Por isso, joga tudo a nosso favor. A tendência já mostra isso e o que é importante é a tendência. Como eles adoecem mais, é só ir dificultando cada vez mais o acesso aos tratamentos. A natureza faz o resto. O Paulo Macedo também faz o que pode. Não é genocídio, é estatística. Um dia lá chegaremos, o que é importante é que estamos no caminho certo. Não há dinheiro para tratar toda a gente e é preciso fazer escolhas. E as escolhas implicam sempre sacrifícios. Só podemos salvar alguns e devemos salvar aqueles que são mais úteis à sociedade, os que geram riqueza. Não pode haver uns tipos que só têm direitos e não contribuem com nada, que não têm deveres.

Estas tretas da democracia e da educação e da saúde para todos foram inventadas quando a sociedade precisava de milhões e milhões de pobres para espalhar estrume e coisas assim. Agora já não precisamos e há cretinos que ainda não perceberam que, para nós vivermos bem, é preciso podar estes sub-humanos.

Que há um terço que tem de ir à vida não tem dúvida nenhuma. Tem é de ser o terço certo, os que gastam os nossos recursos todos e que não contribuem. Tem de haver equidade. Se gastam e não contribuem, tenho muita pena... os recursos são escassos. Ainda no outro dia os jornais diziam que estamos com um milhão de analfabetos. O que é que os analfabetos podem contribuir para a sociedade do conhecimento? Só vão engrossar a massa dos parasitas, a viver à conta. Portanto, são: os analfabetos, os desempregados de longa duração, os doentes crónicos, os pensionistas pobres (não vamos meter os velhos todos porque nós não somos animais e temos os nossos pais e os nossos avós), os sem-abrigo, os pedintes e os ciganos, claro. E os deficientes. Não são todos. Mas se não tiverem uma família que possa suportar o custo da assistência não se pode atirar esse fardo para cima da sociedade. Não era justo. E temos de promover a justiça social.

O outro terço temos de os pôr com dono. É chato ainda precisarmos de alguns operários e assim, mas esta pouca-vergonha de pensarem que mandam no país só porque votam tem de acabar. Para começar, o país não é competitivo com as pessoas a viverem todas decentemente. Não digo voltar à escravatura - é outro papão de que não se pode falar -, mas a verdade é que as sociedades evoluíram muito graças à escravatura. Libertam-se recursos para fazer investimentos e inovação para garantir o progresso e permite-se o ócio das classes abastadas, que também precisam. A chatice de não podermos eliminar os operários como aos sub-humanos é que precisamos destes gajos para fazerem algumas coisas chatas e, para mais (por enquanto), votam - ainda que a maioria deles ou não vote ou vote em nós. O que é preciso é acabar com esses direitos garantidos que fazem com que eles trabalhem o mínimo e vivam à sombra da bananeira. Eles têm de ser aquilo que os comunistas dizem que eles são: proletários. Acabar com os direitos laborais, a estabilidade do emprego, reduzir-lhes o nível de vida de maneira que percebam quem manda. Estes têm de andar sempre borrados de medo: medo de ficar sem trabalho e passar a ser sub-humanos, de morrer de fome no meio da rua. E enchê-los de futebol e telenovelas e reality shows para os anestesiar e para pensarem que os filhos deles vão ser estrelas de hip-hop e assim.

O outro terço são profissionais e técnicos, que produzem serviços essenciais, médicos e engenheiros, mas estes estão no papo. Já os convencemos de que combater a desigualdade não é sustentável (tenho de mandar uma caixa de charutos ao Lobo Xavier), que para eles poderem viver com conforto não há outra alternativa que não seja liquidar os ciganos e os desempregados e acabar com o RSI e que para pagar a saúde deles não podemos pagar a saúde dos pobres.

Com um terço da população exterminada, um terço anestesiado e um terço comprado, o país pode voltar a ser estável e viável. A verdade é que a pegada ecológica da sociedade actual não é sustentável. E se não fosse assim não poderíamos garantir o nível de luxo crescente da classe dirigente, onde eu espero estar um dia. Não vou ficar em Massamá a vida toda. O Ângelo diz que, se continuarmos a portar-nos bem, um dia nós também vamos poder pertencer à elite.


José Vítor Malheiros, in Público [11 de Setembro de 2012]

 

publicado por Elisabete às 20:01
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