Coliseu do Porto com casa cheia e ao rubro
José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto: juntos no Porto, no Coliseu.
Três cantos diferentes, unidos por um mesmo caminho de comprometimento e fidelidade a um ideal. Hoje como ontem.
O Porto rendeu-se, ontem à noite, a estes três homens, à sua música, àquilo que significam.
Quanto a mim, há anos que não me sentia assim: uma enorme emoção obrigou-me a recuar no tempo e devolveu-me alguma esperança. Esta é, de facto, a minha gente. A gente que rejeita o conformismo e os homens de sucesso, egoístas e indiferentes. A gente que defende os que dormem na valeta, os que não têm acesso à cultura e a uma vida com dignidade. A gente solidária e generosa com quem sonhei, um dia, transformar o meu país.
Sei que a situação é, hoje, muito diferente. Sei que as pessoas mudaram. Sei que eu própria amadureci e já não acredito em milagres. Mas também sei que enquanto houver alguém que se emociona, canta, vibra e chora em comunhão, nem tudo está perdido. E esta noite foi UM MILAGRE! Recuei trinta anos. Voltei à pureza inicial, ao rio quente da fraternidade, à vontade de não desistir, à certeza de que vale a pena continuar a lutar por aquilo que quero para mim e para os outros. Senti-me viva, verdadeiramente viva, como naqueles dourados tempos de Abril.
Obrigada, Fausto!
Obrigada, Sérgio!
Obrigada, Zé Mário!
Continuaremos juntos a avisar e a animar a malta!
Para a Cris, com carinho.
Pode alguém ser quem não é?
- Senhora de preto
diga o que lhe dói
é dor ou saudade
que o peito lhe rói
o que tem, o que foi,
o que dói no peito?
- É que o meu homem partiu
- Disse-me na praia
frente ao paredão:
Tira a tua saia
dá-me a tua mão
o teu corpo, o teu mar
teu andar, teu passo
que vai sobre as ondas, vem!
Pode alguém ser quem não é?
Seja um bom agoiro
ou seja um bom presságio
sonhei com o choro
de alguém num naufrágio
não tenho confiança
já cansa este esperar
por uma carta em vão
por cá me governo
escreveu-me então
aqui é quase Inverno
aí quase Verão
mês d’Abril, águas mil
no Brasil também tem
noites de S. João e mar.
Pode alguém ser livre
se outro alguém não é
a corda dum outro
serve-me no pé
nos dois punhos, nas mãos
no pescoço, diz-me:
Pode alguém ser quem não é?
Sérgio Godinho
As certezas do meu mais brilhante amor
As certezas do meu mais brilhante amor
vou acender, que amanhã não há luar
eu colherei do pirilampo um só fulgor
que me desculpe o bom bichinho de o roubar
Assobiando as melodias mais bonitas
e das cidades descrevendo o que já vi
homens e faces e os seus gestos como escritas
do bem, do mal: a paz, a calma e o frenesi
Se estou sozinho é num beco que me encontro
vou porta a porta perguntando a quem me viu
se ali morei, se eu era o mesmo, e em que ponto
o meu desejo fez as malas e fugiu
Já de manhã, vai parecer tudo tão diferente
não é do vinho, nem do sono, ou do café
é só que o olho por olho, dente por dente
nos deixa o rosto assemelhado ao que não é
Não vás contar-lhes desse abraço derradeiro
nem que mudei a fechadura mal saíste
quero o teu rosto devolvido por inteiro
o desse dia em que me vi no que tu viste
Não vás tomar à letra aquilo que te disse
quando te disse que o amor é relativo
se o relativo fosse coisa que se visse
não era amor o porque morro e o porque vivo
Não vás contar que mudei a fechadura
Não vás contar que mudei a fechadura
nem revelar que reclamei dos teus anéis
o amor dura, se durar, enquanto dura
e o vento voa à procura de papéis
O vento passa à procura dum engano
e quando encontra presa fácil na cidade
bate à janela, e redemoinha, e causa dano
naquilo que é suposto ser nossa vontade
Já de manhã, vai parecer tudo tão diferente
não é do vinho, nem do sono, ou do café
é só que o olho por olho, dente por dente
nos deixa o rosto assemelhado ao que não é
Não vás contar-lhes desse abraço derradeiro
nem que mudei a fechadura mal saíste
quero o teu rosto devolvido por inteiro
o desse dia em que me vi no que tu viste
Não vás tomar à letra aquilo que te disse
quando te disse que o amor é relativo
se o relativo fosse coisa que se visse
não era amor o porque morro e o porque vivo
Sérgio Godinho, Escritor de Canções