Em Drancy, no meio da balbúrdia, Dora encontrou o pai, ali internado desde Março. Nesse mês de Agosto, como nas Tourelles, como no depósito de presos da Prefeitura de Polícia, o campo enchia-se todos os dias de uma torrente cada vez mais numerosa de homens e mulheres. Chegavam da zona livre aos milhares, nos comboios de mercadorias. Centenas e centenas de mulheres, a quem haviam separado dos filhos, vinham dos campos de Pithiviers e de Beaune-la-Rolande. E quatro mil crianças chegaram, por sua vez, a 15 de Agosto e nos dias seguintes, depois das suas mães terem sido deportadas. Os nomes de muitas delas, escritos à pressa nas roupas à partida de Pithiviers e de Beaune-la-Rolande, já não eram legíveis. Criança sem identidade nº 122. Criança sem identidade nº 146. Menina de três anos. Nome próprio: Monique. Sem identidade.
Por causa da aglomeração no campo e prevendo os comboios que viriam da zona livre, em 2 e 5 de Setembro as autoridades decidiram enviar os judeus de nacionalidade francesa de Drancy para o Campo de Pithiviers. As quatro raparigas que haviam chegado no mesmo dia que Dora às Tourelles – todas com dezasseis ou dezassete anos: Claudine Winerbett, Zélie Stohlitz, Marthe Nachmanowicz e Yvonne Pitoun – também integraram este comboio de cerca de mil e quinhentos judeus franceses. Acalentavam certamente a ilusão de que seriam protegidos pela sua nacionalidade. Dora, que era francesa, poderia igualmente deixar Drancy com eles. Não o fez por uma razão que é fácil de adivinhar; preferiu ficar junto do pai.
Pai e filha deixaram Drancy a 18 de Setembro, com outros mil homens e mulheres, num comboio para Auschwitz.
A mãe de Dora, Cécile Bruder, foi presa em 16 de Julho de 1942, o dia da grande rusga, sendo internada em Drancy. Reencontrou aqui o marido durante alguns dias, quando a filha estava nas Tourelles. Cécile Bruder foi libertada de Drancy a 23 de Julho, sem dúvida porque nascera em Budapeste e as autoridades ainda não tinham dado ordem para deportar os judeus oriundos da Hungria.
Ter-lhe-á sido possível visitar Dora nas Tourelles, numa quinta-feira ou num domingo desse Verão de 1942? Foi novamente internada no Campo de Drancy a 9 de Janeiro de 1943, e partiu no comboio de 11 de Fevereiro de 1943 para Auschwitz, cinco meses depois do marido e da filha.
No sábado de 19 de Setembro, o dia seguinte à partida de Dora e do pai, as autoridades de Ocupação impuseram um recolher obrigatório em represália contra um atentado que havia sido cometido no Cinema Rex. Ninguém tinha o direito de sair desde as três horas da tarde até ao outro dia de manhã. A cidade estava deserta, como que para assinalar a ausência de Dora.
Desde então, a Paris onde procurei reencontrar o seu rasto permaneceu tão deserta e silenciosa como nesse dia. Caminho através das ruas vazias. Para mim, elas continuam assim, mesmo ao entardecer, à hora dos engarrafamentos, quando as pessoas estugam o passo em direcção às entradas do metropolitano. Não consigo deixar de pensar nela e de sentir um eco da sua presença em certos bairros. Uma noite destas foi perto da Gare do Norte.
Ignorarei para todo o sempre de que modo ela passava os dias, onde se escondia, qual era a sua companhia durante os meses de Inverno aquando da sua primeira fuga e no decurso das poucas semanas de Primavera em que se escapulira de novo. Eis o seu segredo. Um pobre e precioso segredo que os carrascos, os decretos, as autoridades ditas de Ocupação, o depósito de presos, as casernas, os campos, a História, o tempo – tudo o que nos macula e nos destrói – não puderam roubar-lhe.
Patrick Modiano, Dora Bruder
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